Parte integrante da cultura popular japonesa, os ōni, vulgarmente designados por “ogres” ou “demónios”, podem ter tanto um lado aterrorizador, como também uma função protetora. Neste artigo falamos em particular de um destes demónios, os namahage, considerados a versão nipónica do “papão” ocidental.
Originários da península de Oga, os namahage são a imagem de marca de toda a prefeitura de Akita, na região de Tohoku. O seu nome provém da expressão “namomi hagi”, que no dialeto de Akita significa “pelar bolhas”, isto porque a função dos namahage é a de castigar pessoas preguiçosas, especialmente crianças, que ganham as ditas bolhas por estarem sentadas sem fazer nada. O seu aspeto é bastante particular e distinguem-se facilmente de outros ōni – vestem capas de palha (kede), as suas máscaras são de cor vermelha (associada ao género masculino) ou azul (associada ao feminino), e carregam consigo um cutelo japonês (deba-bōchō), um balde de madeira (teoke), e um gohei, uma espécie de cetro xintoísta que é representativo do estatuto divino dos namahage.
Andando sempre aos pares (um “azul” e um “vermelho”), e perguntam, em voz aterrorizadora, onde andam os “bebés chorões” e as crianças que não obedecem aos pais. No último dia de cada ano, jovens da cidade de Oga vestem-se de namahage e “invadem” a casa dos habitantes, que escondem as crianças para que os demónios não as apanhem. Entretanto, os pais oferecem-lhes bastante comida e sake, de modo a apaziguar estes ogres. Depois desta oferenda, os namahage ficam satisfeitos, abençoando o lar em vez de levar as crianças.
Apesar de parecer uma experiência aterradora, na verdade a visita dos namahage é bastante divertida e estimada por todos os habitantes, que são um elemento indissociável da cultura regional de Akita desde há gerações. Existem imensas lendas de cariz xintoísta que tentam explicar como surgiram estes ogres. Porém, a mais conhecida e contada pelos locais é a de como estes conseguiram ludibriar os monstros e salvar-se das suas diabruras.
Reza esta lenda que, há muitas centenas de anos, a então aldeia de Oga era aterrorizada pelos namahage, que lhes estragavam as colheitas e roubavam as suas mulheres. Para pôr um fim a este flagelo, os aldeões fizeram uma aposta com os ogres: se estes conseguissem construir numa só noite uma escadaria de mil degraus que ligasse o templo no topo do monte à aldeia, teriam permissão para levar uma mulher por dia, caso contrário deixariam de espalhar o caos na população. Nessa mesma noite, os namahage lançaram-se ao trabalho e, quando terminaram o 999º degrau, ouviram o canto do galo que anuncia a alvorada, perdendo assim a aposta. O que eles não sabiam é que o dito canto foi simulado por um dos aldeões, salvando assim a aldeia e evitando mais calamidades.
Esta escadaria de 999 degraus existe de fato em Oga, e ao seu redor se realiza o Namahage Sedo Matsuri, ou Festival dos Namahage, todos os anos no segundo fim-de-semana de fevereiro (altura de frio e neve muito intensos na região). Novamente, jovens habitantes da região vestem-se de namahage e descem a imensa escadaria, que começa num complexo de templos e santuários xintoístas e termina no recinto do festival. Ao descer, perguntam pelo meio da multidão, na sua voz mais ameaçadora, “Onde estão os preguiçosos??”, ou “Há aqui crianças mal-comportadas??”. Depois de passarem por toda a audiência, dirigem-se para um palco onde fazem um pequeno teatro cómico, que retrata a sua tradição do Ano Novo. De seguida dão início a um impressionante espetáculo de taiko, que dura cerca de meia hora, e após esta performance fazem uma dança ritual à volta de uma grande fogueira, mais perto das pessoas que estão a assistir. A noite termina com um novo cortejo pela audiência, regressando os demónios para o templo no topo do monte de onde vieram. É sinal de boa sorte se, durante as festividades, alguém conseguir tirar uma palha da capa de um destes demónios sem que este repare.
Não é só neste festival que a presença dos namahage se faz sentir nos dias de hoje. Por toda a prefeitura de Akita se veem estes ogres – como souvenirs, decorações da cidade, e até os Izakaya locais recebem a sua visita durante o horário das refeições, entretendo os clientes enquanto estes jantam. Em Oga, existe um museu dedicado exclusivamente a estas criaturas e que serve como marco da importância desta tradição e a apresenta desde os seus primórdios. Lá expostas estão máscaras de namahage artesanais com centenas de anos e de diversas regiões, esculpidas por artesãos locais desde há gerações, arte que se mantém viva no presente. Também dão aos seus visitantes a oportunidade de se vestirem a rigor como estes ogres, com todos os acessórios que os caraterizam.
Hoje em dia, os namahage são um símbolo muito acarinhado e representantes máximos de Akita no Japão e no mundo, e não as criaturas demoníacas que a sua lenda nos poderia fazer pensar. Por isso, se alguma vez forem a Akita, fiquem atentos, não vá um namahage castigar-vos por não os terem visitado mais cedo!