Já há algum tempo que não escrevo sobre as minhas aventuras ‘halloweenescas’ por aqui, e está na altura de remediar essa situação. Quando há três anos – fogo, já passaram três anos – inaugurei a rubrica Pedro vs Medo com o arrepiante Audition de Takashi Miike, pretendia ano após ano, ou mesmo de forma mais recorrente, discorrer sobre a minha apreciação pelo cinema de horror asiático…. falhei redondamente!
Todos os anos, pelo menos por alturas do Halloween, faço por ver algo que me deixe em pele galinha ou escondido debaixo dos cobertores. Há alguns anos que essa aventura se centra quase exclusivamente nas produções orientais e delas não devo sair tão cedo. Ora, este ano de 2023 não é excepção. Tenho várias escolhas em cima da mesa, mas esta segunda entrada no Pedro vs Medo recai sobre a primeira que assisti e que me tocou de tal forma que tive que vir tirar as teias à rúbrica. Vamos então conversar sobre A Tale of Two Sisters.
A Tale of Two Sisters de Jee-Woon Kim – Pedro vs Medo
A Tale of Two Sisters é um filme de 2003 que conta com a realização de Jee-Woon Kim. O realizador sul-coreano tem uma filmografia curiosa e, depois de ter visto este filme – o segundo seu a que assisti depois de I Saw the Devil – fiquei imediatamente convencido a mergulhar no currículo. A Tale of Two Sisters não é a sua primeira longa-metragem, mas é talvez a que mais ondas fez no ocidente. Aliás, basta realizar uma pesquisa rápida pela web sobre os melhores filmes asiáticos em geral, e de horror em particular, para verificar isso mesmo, já que o título tem praticamente lugar cativo em todas as listas. Agora que o vi, entendo perfeitamente o porquê.
A realização e casting são o claro destaque deste filme, mas não deve ser de todo descurado o trabalho da edição, cinematografia, banda sonora e mistura de som. É, a par de outros belos exemplares do género, um filme cujo requinte na execução das componentes mais invisíveis ao espectador, serve de holofote às estrelas da produção. Mais abaixo irei expandir sobre isto, mas por agora comecemos por uma breve, e spoiler free, sinopse.
A Tale of Two Sisters | Uma breve e enganadora sinopse:
A Tale of Two Sisters começa, curiosamente, ou não, com as duas irmãs, Su-mi e Su-yeon, a chegar a casa. Claramente, estiveram afastadas por um bom tempo, algo relacionado com saúde, e o lar parece agora familiar e desconhecido ao mesmo tempo. Ao entrar em casa, são prontamente recebidas pela sua “nova mãe”, a nova companheira do seu pai, Eun-joo. A interação parece bizarra e plástica, mas, parece natural tendo em conta a natureza do relacionamento. Contudo, claramente algo se passa na casa: seja pelo lugar em si, seja na mente dos residentes. A noite traz consigo pesadelos bem reais e muita inquietação, exacerbada pelas crescentes tensões entre pai, filhas e madrasta, que elevam a estranheza a um ponto de ruptura. Posso quase garantir que este belo exemplar de arte cinematográfica deixará todo o espectador à beira do assento, num estado transitório entre choque, surpresa e tristeza.
Sinto que fui parco na descrição do enredo, mas a fim de evitar estragar a surpresa a quem fique com a curiosidade de ver filme, limitei-me a dar apenas um amuse bouche do seu setting, assentando a minha apresentação a um resumo light do que acontece desde o primeiro segundo do runtime até ao início da primeira manhã na casa.
A Tale of Two Sisters | Um Holofote para Duas Atrizes:
A longa-metragem possui um elenco relativamente contido, essencialmente centrado nos quatro habitantes da casa, aos quais se junta o ocasional “visitante”. Isto, para mim, até podia ser um problema em termos de actuação porque cada performance individual se encontra sob maior escrutínio já que a nossa atenção se concentra em menos personagens, mas não tenho nada de negativo a apontar. Ainda assim, mesmo sem falhas do elenco no seu todo, tenho que aplaudir de pé duas performances mesmo especiais que elevam o filme ao merecido estatuto que atingiu: Im Soo-jung enquanto Su-mi, e Yum Jung-ah enquanto Eun-joo.
É justo dizer, depois de assistir à longa-metragem, que as duas atrizes enchem a tela e mais do que compensam o reduzido elenco. De Soo-jung, vemos a performance de uma jovem magoada, a travar uma luta inglória para fazer o seu pai entender que a madrasta não é a pessoa certa, e a doce protetora da sua tímida irmã mais nova. Há claramente algo mais por detrás da sua dor, algo que nos é escondido pelo filme, mas que antevemos tratar-se do motivo da sua ausência da casa. De Jung-ah, vemos uma mulher apaixonada à beira da ruptura, tentando estreitar a distância que a separa das enteadas, ao mesmo tempo que tenta alimentar a chama do romance com o marido (pai das irmãs), que parece cada vez mais distante e frio.
O que temos então são duas mulheres que não se suportam, envergando máscaras cada vez mais pesadas, tentando preservar/salvar aquilo que é mais importante para ambas. Por tudo isto, o que assombra a casa, parece exacerbado pelo instinto protector de uma, e pela solidão da outra. A conclusão do filme passa então por estas duas personagens, através de performances progressivamente mais explosivas, que ganham brilho nas nuances de interpretação de cada uma das atrizes.
A Tale of Two Sisters | Uma Questão de Paciência:
Aludi no começo desta reflexão sobre A Tale of Two Sisters que este reconhecido e aclamado título da filmografia de Jee-Woon Kim assentava em dois pilares essenciais: realização/produção e casting. Falei do elenco, e agora chegou a altura de falar do que se passa fora da tela, mas que tanto impacta o que nela vivemos.
Quando há anos analisei Audition, falei sobre como o terror asiático tem a capacidade arrepiante para penetrar na nossa mente, e de como as abordagens a conceitos, também explorados nas produções ocidentais, pareciam ter um cariz mais pessoal, algo que parecia ser a chave para habitarem os nossos sonhos (e pesadelos). Desde então, vi mais filmes dentro do género, mas creio que foi após visualizar esta contida e poderosa rendição ao grande ecrã, que entendi mais sobre o “poder” magnetizante que está por detrás do horror asiático: a paciência.
Um tópico muito debatido nos filmes de terror, e que é, neste momento, o saco de pancada da crítica ao género, é o uso exagerado de jump scares, e de como filmes que sabem como os fazer, ou que não dependem deles para produzir o mesmo efeito, se superiorizam dos demais. É uma troupe que tem a sua origem num passado longínquo da história do cinema do medo, e que permanece até aos dias de hoje. Embora a mim me dê igual se é usada ou não, desde que o filme tenha substância e não se resuma a ela, a verdade é que sinto que o horror é mais eficaz e penetrante se não tivermos um súbito “megafone e holofote” a indicar de onde ele vai chegar. É aqui que surge a questão da paciência nos títulos do oriente no geral, e neste em particular.
Assistindo a um filme de terror, o nosso cérebro está formatado para a estranheza: uma wide/long shot que se mantém por mais tempo do que devia; um ângulo de câmera que foca um canto escuro aparentemente inconsequente; b-roll de uma casa silenciosa à noite; uma reverse-shot de alguém a espreitar para debaixo de algo. Exemplos destes não acabam, e todos eles estão neste filme, e, quase sem falha, o que pensamos que vai acontecer ou não acontece, ou não acontece quando e como pensamos. Há uma paciência assinalável da parte do realizador em segurar a tensão nas suas mãos durante o maior tempo possível. Nem por um instante senti que havia a pressa de mostrar algo para tentar agarrar a audiência. A corda torce, torce, torce e parece prestes a rebentar, mas não rebenta quanto esperamos, o que faz com que cada twist, susto e suster de respiração surja das maneiras mais inusitadas. Não querendo estragar a vossa experiência, há cenas em que o próprio filme nos desafia a prever o que vai acontecer, e outras até onde o que temos que temer já lá está e parece que o realizador só está à espera que nos apercebamos disso para continuar a ação. Fiquei rendido.
A Tale of Two Sisters | Em Conclusão:
Olhando para este subtítulo podem perguntar vocês algo como: Então, mas o filme é perfeito? Não tem nenhum ponto negativo? As perguntas são legítimas, mas para mim, o filme superou expectativas, muito porque em vez de se preocupar em ser um filme de terror, se preocupou em ser um filme que conta uma boa história; uma história que tem terror nela trazido pelas peças em jogo. Isto é importante de sublinhar, já que o filme não parece ter sido construído com o pressuposto de nos tingir as cuecas, mas sim de nos deixar a pensar, ao mesmo tempo que nos deixa desconfortável com o desenrolar da narrativa.
Posto isto, recomendo o filme? Sim. Para toda a gente? Não. Mais do que não recomendar para toda a gente, nem sei se o recomendo para qualquer fã de filmes de terror, já que aquilo que o filme tenta vai além do convencional, muito por força da paciência que falei acima. Agora, se querem ver um filme cuidadosamente realizado, brilhantemente representado e que, em cima disso tudo, vos mete a cabeça à roda mesmo antes dos twists, então sim, A Tale of Two Sisters é uma recomendação de ouro.
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Se querem ver um filme cuidadosamente realizado, brilhantemente representado e que, em cima disso tudo, vos mete a cabeça à roda mesmo antes dos twists, então sim, A Tale of Two Sisters é uma recomendação de ouro.
Os Pros
- Mestria na realização.
- Performances, sobretudo de Im Soo-jung e Yum Jung-ah.
- Controlo da tensão e paciência na edição.