Alice in Borderland deu-nos uma perspetiva demasiado real do mundo em que vivíamos, em pleno primeiro ano de pandemia – dezembro de 2020. O centro desolado de Tóquio foi um choque para um mundo que cambaleava entre confinamentos, quarentenas e os golpes que a maleita do novo século infligia.
A premissa, aparentemente simples – empurrados para uma cidade abandonada, os sobreviventes devem competir numa série de jogos mortais -, ganhou terreno (e nome) com esta segunda temporada e o mundo apocalíptico de Borderland tornou-se no jogo derradeiro, no infinito labirinto de sobrevivência com apenas um objetivo em vista: regressar ao mundo real.
Muito do tempo em Alice in Borderland é passado em mundos diferentes: aquele em que as personagens se encontram a batalhar para ganhar uns meros dias extra de vida nos seus vistos, e aquele para o qual as mesmas querem voltar. O primeiro é uma Tóquio abandonada em grande escala, depois de uma grande chuva de fogo de artifício que propela uma pequena fração dos seus cidadãos sem rumo, a vaguear pelas ruas. Arisu e os seus amigos refugiam-se numa casa de banho pública, inconscientes do que se passara e quando saem, revela-se perante eles uma metrópole vazia.
Alice in Borderland 2 – Será que o jogo finalmente acabou?
Arisu faz parte de um coletivo de personagens que procura manter-se vivo nesta dimensão distópica, em que cada cidadão engana a morte através da participação de, ironicamente, jogos da morte, que a cidade oferece. Cada jogo corresponde a uma carta do baralho: espadas, paus, copas e ouros.
Paus representam o trabalho em equipa, copas são jogos do foro psíquico, ouros desafiam a inteligência individual e espadas são competições físicas. Quanto maior a carta em termos numéricos, mais complexo é o jogo.
Na primeira temporada, as personagens jogam apenas com cartas numeradas. Na segunda temporada, entram as cartas com figuras (a dama, o valete, o rei e o joker), e os cidadãos deparam-se com outros competidores mais perigosos, como é o caso do Rei de Espadas.
Em constante limbo entre a luta pela sobrevivência e o perigo iminente da morte, Arisu questiona-se sobre o verdadeiro valor da vida humana. A cada jogo em que participa, a possibilidade de perder os seus amigos cresce cada vez mais, até se, eventualmente, concretizar. Para Arisu, torna-se difícil ser-se altruísta ou egocêntrico para simultaneamente salvar os seus amigos e ganhar o jogo, à medida que cada desafio corrompe com as suas próprias regras e manipula as emoções de cada participante.
A primeira temporada foi principalmente uma história de sobrevivência: a descoberta das regras daquele purgatório em forma de Tóquio; e a luta apenas pelo amanhã, ainda não pelo ontem, na cidade que sempre conheceram.
Na segunda temporada, Arisu, Usagi e os outros descobrem rapidamente que o motivo dos jogos em si não era tanto defrontar os seus competidores, mas sim privá-los da sua verdadeira pessoa e afastá-los do mundo real para o qual tentavam voltar. Os jogos foram manufaturados especialmente para expor a verdadeira natureza de cada individuo.
Os jogos desta temporada introduzem um conjunto de “bosses”, que participam ativamente nos jogos que apresentam. Isto significa que Arisu, Usagi, Chishiya, Kuina e Ann só podem avançar na sua viagem se derrotarem estes jogadores mais experientes, que tenham conhecimento sobre a dimensão na qual estão emprisionados – Borderland.
No jogo Osmose, Ginji Kyuma, o excêntrico Rei de Paus, questionou as crenças de cada participante, especialmente as de Arisu, no que toca ao ajudar o próximo quando a sua própria sobrevivência está em risco, e questionando quais os seus motivos para o protagonista e os seus amigos reiterarem aquele mundo como sendo o falso.
Arisu e Usagi viram mais tarde, no jogo Cheque-mate, com a Rainha de Espadas, como as pessoas facilmente se despiam das suas morais ao primeiro sinal de perigo. Usagi participara com uma criança, Kota, e os outros competidores empatizaram com o destino do menino, mas não estavam dispostas a protegê-lo quando este fora revelado como sendo o líder da equipa visitante. Usagi conseguiu convencer os outros cidadãos de que participar nos jogos não era simplesmente uma questão de vencer ou perder, mas sim de manter as ínfimas réstias de humanidade que ainda restavam nos seus corações.
Chishiya foi a personagem que mais surpreendeu, quando participou em dois jogos altamente importantes: Confinamento Solitário e Concurso de Beleza. No primeiro jogo, o Valete de Copas desenhou o desafio de maneira a expor a desonestidade e a covardia dos participantes, onde cada cidadão teria que confiar no outro para lhe dizer qual era o símbolo que carregava no colar.
Já em Concurso de Beleza, criado pelo Rei de Ouros, um homem chamado Kuzuryu, o segundo em comando do grupo rebelde visto na primeira temporada, a “Praia”. Kuzuryu criara este jogo onde qualquer um poderia ganhar, unicamente dependendo da sua sorte. O advogado e Chishiya eram similares em muitos aspetos, nomeadamente na sua visão da humanidade e no seu passado: ambos testemunharam eventos em que se sentiram impotentes. De acordo com Kuzuryu, as camadas ricas causaram problemas às mais pobres e assim ele criou este desafio para encontrar um equilíbrio entre aqueles que têm em fartura e aqueles que precisam.
Chishiya, o gato de Cheshire em Borderland, observa aqueles em seu redor, estuda-os e sorri e acena enquanto põe o seu plano em prática. Ele faz a sua viagem sozinho em grande parte da segunda temporada e participa em jogos que expõe os motivos e segredos mais obscuros dos seus participantes, o que faz com que Alice em Borderland seja mais do que apenas uma montra de jogos de morte.
A segunda temporada não nos olvida de mostrar o quão horrível é a realidade em que as personagens vivem e, por mais entusiasmante que seja ver os jogos, a série nunca os romantiza, com a sua natureza cruel frequentemente exposta em variadas maneiras (e gráficas). Porém, Alice in Borderland esquece-se das altas expectativas que teceu na primeira temporada. O primeiro jogo – Osmose -, é estabelecido como sendo o jogo mais mortal da temporada e, no entanto, pouco aconteceu. A partir daí, o espectador é obrigado a entrar num estado de suspensão da descrença para assim poder criar expectativas sobre o destino de cada personagem.
É aqui que se encontra o grande problema de Alice in Borderland.
A história está consciente de que, a certo ponto, precisa de dar respostas aos seus expectadores: a série apresenta algumas nuances sobre a verdade dos “cidadãos”, e depois parece relutante em escavar os seus próprios mistérios. O enredo adia as suas revelações e contenta-se em sugerir-nos que algumas personagens-chave conseguiram de facto obter informação revelante.
Nos últimos episódios, os únicos resquícios sobre como todas aquelas pessoas foram parar a Borderland encontram-se num vídeo que se manifesta de vez em quando, para nos lembrar de que a sua função é a de tapar um buraco que crescia cada vez mais fundo.
Algumas respostas são efetivamente dadas, mas há sempre aquele sentimento de que o enredo hesita em navegar nos seus próprios confins e escolhe a rota segura: mostrar o backstory das personagens.
Contudo, a questão mais importante de todas foi finalmente respondida.
Conseguimos finalmente entender o porquê de Arisu e os seus amigos competirem em jogos mortais baseados em cartas de baralho, para poderem regressar ao mundo de onde vieram (ou assim pareceu até que a fatídica carta do Joker entrou em cena, deixada esquecida numa das mesas do pátio do hospital).
Vemos o grupo de Arisu a dividir-se logo no início, jogar os mais variados jogos para depois se reunirem, até apenas restarem duas cartas do baralho, sendo uma delas o Rei de Espadas, que andava a aterrorizar Tóquio desde o início da temporada. O desafio do Rei de Espadas era simplesmente conseguir matá-lo, visto que era a única maneira de parar a sua matança.
O atirador foi derrotado na altura do clímax da temporada, mas a que custo? Muitas das personagens do círculo do protagonista foram gravemente feridas, com Ann a sucumbir aos ferimentos antes do desenlace.
Depois de abater o Rei de Espadas, restava apenas um último jogo: o da Rainha de Copas, para uma simples partida de croquet. Arisu apenas tinha de completar três rondas do jogo sem desistir. Não havia um sistema de pontuação nem regras adicionais: apenas era requerido a finalização das três rondas, sem fazer batota e sem desistir.
Os dois primeiros sets foram completos sem grande euforia. No entanto, a Rainha quis fazer uma pequena pausa para o “chá das cinco”. Mira, a Rainha, quando questionada sobre a existência de Borderland, o que acontecerá depois do fogo de artifício e de como regressar a casa, procede a criar múltiplas teorias sobre a criação deste universo, todas plausíveis, na verdade. Arisu fora posto à prova através de uma simulação de um cenário de um gabinete de psiquiatria para tentar quebrar a sua tenacidade. Se ele sucumbisse ao jogo psicológico da Rainha, morreria em Borderland e consequentemente, na Tóquio real. Todavia Usagi conseguiu convencê-lo de que ela queria regressar ao mundo real com ele. Arisu desprendeu-se da ilusão e completou o terceiro set, ganhando o jogo.
Nos últimos minutos do episódio, os restantes cidadãos são confrontados com a escolha de ter um visto de residência permanente no país em que se encontravam, onde quase todas as personagens declinaram o convite.
As personagens não ficam com nenhuma memória do que viveram em Borderland quando alcançam o mundo real. No mundo real, o fogo de artifício que toda a gente vira, seriam fragmentos de um meteorito que colidira com a rota do planeta Terra e que caíra no centro de Tóquio (plausível).
A Borderland que nos acompanhou ao longo da série, é na verdade a “border” – a fronteira entre a vida e a morte. Como nas imagens seguintes às da queda do meteorito, todos os que foram afetados pelo impacto tiveram os mesmos destinos que em Borderland.
O coração de Arisu parara por um minuto inteiro (que pareceu muito mais tempo para a personagem) e foram nesses 60 segundos que ele experienciara toda aquela nova realidade e competira em todos aqueles jogos – com o objetivo final de sobreviver.
Os jogos são apenas alegorias dos esforços de sobrevivência das pessoas que estavam em paragem cardíaca ou em estado comatoso. Quem não conseguiu sobreviver (e quem também pediu residência permanente em Borderland) não sobreviveu à queda do meteorito – morreram durante o coma.
Arisu e outros encontravam-se no mesmo hospital e ficavam com uma sensação de déjà-vu de cada vez que os seus caminhos se cruzavam. Aguni estava em coma e Akane também perdera a perna. Vemos Kuina a ser aceite pelos pais e Chishiya e Niragi, acamados, a ter uma conversa sobre o seu passado e a vontade de rectificá-lo. Arisu vê Usagi perto da máquina de vending e viu-se inexplicavelmente enamorado dela. Tudo parece encontrar o caminho que outrora fora traçado numa outra dimensão.
Nos últimos minutos do episódio, uma brisa espalha um baralho de cartas que ficara esquecido numa mesa do pátio exterior do hospital. E ali está ela.
A última carta do baralho.
O Joker.
A segunda temporada de Alice in Borderland não desaponta: com jogos mais complexos, põem-nos nos lugares dos desafortunados participantes e mantem-nos até ao fim.
Os episódios vasculham os passados das personagens o que torna o lore da série ainda mais fascinante, uma vez que ajuda o espectador a especular sobre a sua presença em Borderland. No entanto, esquece-se de explorar os temas em que somente tateia: a crítica ao capitalismo em massa, a dependência das camadas mais jovens aos videojogos e a sede das pessoas pelo choque e violência gratuita. A exploração destes temas poderia ajudar a série a criar a sua própria mitologia.
Os próprios aspetos visuais da série convidam o espectador a ter mais perguntas do que respostas: quem é que pilota os zepelins? quem é que ergue as enormes bandeiras que caem dessas mesmas aeronaves?, entre outras. O universo de Borderland é vasto e detalhado o suficiente para o espectador deixar-se cair num “rabbit hole” de questões.
A terceira temporada poderá dar-nos as respostas que nos faltam. Para já, é só uma ideia que paira na cabeça dos amantes da série.
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