Será difícil encontrar um fã de anime, seja ele casual ou mais sério, que não tenha visto pelo menos um dos trabalhos criados por Shinichiro Watanabe. Cowboy Bebop, Samurai Champloo, Sakamichi no Apollon, Space Dandy, Zankyou no Terror, entre outros, a influência de Watanabe atravessou culturas e fronteiras. E claro que ele não teria este sucesso sem o seu grande colaborador e escritor Dai Sato (Cowboy Bebop, Space Dandy, Eden of the East).
Estes dois gigantes da indústria anime sentaram-se para uma conversa com o Otaku USA, na convenção anual Nan Desu Kan, em Denver (Colorado). Este diálogo deu asas para abordar as inspirações, os processos criativos, e a forma como os pensamentos/mentalidades se vão moldando dentro da indústria da qual fazem parte.
Data da Entrevista: 8 de setembro de 2016
Otaku USA: Depois de, em Cowboy Bebop, terem trabalhado com uma narrativa no espaço, como foi voltar a trabalhar com algo assim em Space Dandy?
Shinichiro Watanabe: Cowboy Bebop pode ter alguns episódios mais cómicos, mas a narrativa é um drama, já com Space Dandy até podemos ter alguns episódios mais sérios, mas a narrativa é uma comédia. Foi muito interessante fazer esta troca. O Dai-san escreveu guiões tanto para Cowboy Bebop como para Space Dandy, e eu acho que ele escreve melhor comédia que drama, então acabei por precisar mesmo muito dele em Space Dandy. Se olharem para a filmografia dele vão verificar que existem por lá muitos títulos sérios, mas não se deixem enganar, eu conheço a verdadeira identidade dele. [risos]
Dai Sato: Vocês podem, ou não, saber disto, mas existe uma ligação entre Cowboy Bebop e Space Dandy, porque existe um episódio neste em que está lá um item que pertencia a Cowboy Bebop. Mas se calhar até repararam no frigorífico…
Watanabe: Ele viajou universos através de um wormhole. [risos]
OUSA: Faz 15 anos que Cowboy Bebop foi originalmente transmitido na América, e ainda existem pessoas, nesta convenção, a fazer cosplay daquelas personagens. Anteciparam este tipo de longevidade? Como é que isto vos faz sentir?
Watanabe: Fico feliz por ver que os fãs ainda se lembram de Bebop. Quando estávamos a fazer Cowboy Bebop, eu disse à equipa “vamos fazer algo que não pareça envelhecido daqui a dez ou vinte anos”, então fico feliz por ver que isso acabou por acontecer. Mas, claro, quando eu disse isso toda gente se riu e me disse “boa sorte”.
Sato: Para mim Cowboy Bebop foi a minha estreia como escritor de anime, então estou contente por ter acreditado em tudo o que o realizador falou e me disse.
Watanabe: Ou seja, se o Dai-san tivesse acompanhado outro realizador, a sua vida e carreira seria completamente diferentes.
OUSA: Sato-san, quais são as inspirações que coloca nos seus trabalhos, e que inspirações usa para escrever?
Sato: Bem, espero que isto não seja mal interpretado, mas nós normalmente recebemos trabalho para trabalhar numa série com o objetivo de promover um jogo, ou merchandise, ou uma linha de brinquedos, portanto este é o lado mais industrial do nosso trabalho. Por outro lado é desafiante partir deste tipo de premissas impossíveis e transformá-las em algo com entretenimento.
Relativamente ao lado mais criativo, eu adoro música e arquitectura, muita da minha inspiração vem desses dois elementos. Adoro também conhecer mais sobre as pessoas que estão por detrás dessa criação de música e arquitectura, esse tipo de vidas acabam também por ser uma inspiração. E, além disso, quando trabalho com o Watanabe-san, ele gosta de parodiar muitas figuras históricas, então vou aí buscar muita inspiração.
OUSA: A sua escrita tende a ter uma estrutura com histórias episódicas, mas, ainda assim, tem sempre um fio condutor que constrói um arc geral. É possível falar-nos um pouco sobre esta decisão, especialmente por ser algo cada vez mais raro de se ver, seja em anime, seja em televisão.
Sato: Bem, nós temos trabalhado nos dois tipos de narrativa. Quanto ao meu estilo, se estivermos focados em arcs, eu vou ter uma ideia da big picture que pretendo atingir, algo muito geral, e nos episódios vou focar-me totalmente nos personagens.
Watanabe: Para mim, este estilo narrativo onde temos um arc contínuo através de narrativa episódica, é o meu estilo favorito. Eu gosto destas estrutura episódicas, porque assim permite que alguém possa começar a meio e ser na mesma divertido para essa pessoa ver a série. Por exemplo, de vez em quando dá-me uma vontade imensa de ver uma série americana, mas se começar, por exemplo, no episódio oito da sexta temporada, a narrativa já vai tão desenvolvida que sinto-me completamente desencorajado por não conseguir perceber nada do que está a acontecer.
E gosto muito de ver a forma como as dinâmicas entre as personagens se vão alterando conforme vamos desenvolvendo a série. Gosto de ver que as dinâmicas entre duas personagens no início da série são completamente diferentes se as comparar com o final da série. Para conseguir atingir este tipo de situações, é mais fácil se recorrermos a este tipo de estrutura narrativa.
OUSA: A indústria anime, desde que vocês se iniciaram, evoluiu bastante ao longo do anos. Sentem que esta evolução deixou as coisas mais difíceis? Ou com isto vieram novos desafios nos departamentos da realização, criação e escrita?
Watanabe: Refere-se à evolução técnica ou à evolução dos gostos do público?
OUSA: Dos dois, desde ir do analógico ao digital, para serviços streaming, transmissões simultâneas, etc.
Watanabe: Bem, por onde começar? Vou começar pelo lado técnico. Para o guionista acredito que é indiferente, seja digital, analógico, computação gráfica, ou live-action.
De um ponto de vista artístico, a produção digital deixou tudo mais fácil. Por exemplo, existem muitas coisas que não seriam possíveis na produção analógica de Cowboy Bebop. Nos tempos de Cowboy Bebop, o nosso orçamento para computação gráfica era extremamente limitado, dando-nos uns dois minutos no máximo. Era criada a sequência em computação gráfica, depois era transferida para filme (película cinematográfica), o resultado final seria um produto analógico. Compor algo com digital e analógico era um processo extremamente complicado, as cores davam muitos problemas porque eram diferentes. Mas por volta do início do novo milénio, as produções começaram a ser todas digitais, a coordenação da coloração tornou-se mais fácil, levando-nos a uma maior liberdade de expressão. Acho que isto foi bastante positivo.
Relativamente ao resto da sua questão, no que diz respeito a gostos e métodos de transmissão, isso tem-se tornado num grande problema. A produção de anime é um buraco de dinheiro. Se estiver atento aos créditos finais de cada episódio vai verificar que são necessárias mais de 200 pessoas para criar apenas um episódio, animação desenhada à mão é algo que exige muito dinheiro envolvido. Nos anos 70 e 80, as animações eram criadas para um público mais geral, então existiam maiores corporações interessadas em dar o seu contributo.
Mas, desde a década de 90 que as animações começaram a ser produzidas para audiências muito mais restritas, o que acabou por limitar as vendas de DVD e de VHS. Por outro lado isso permitiu que títulos como Cowboy Bebop e Samurai Champloo tivessem liberdade criativa. Contudo, a entrada no novo milénio trouxe-nos uma enorme queda de vendas, então as produções começaram a ficar muito restritas. As companhias, na sua maioria, ficaram muito conservadoras e só se atrevem a produzir títulos seguros de vendas, como por exemplos as séries moe. Este é a grande problemática deste milénio. Eu tenho tido muitas experiências de tentativas de algo mais aventuroso, porém, basicamente, ficou tudo em hiatus. Quando fiz propostas de ideias interessantes a companhias a primeira pergunta que me faziam era: “então, onde está a ‘rapariga bonita’?”
Desde o início da nova década [2010] acho que a indústria está a meio de um processo de renovação e de se tentar re-inventar. No que nos diz respeito, desde que exista forma de financiar os nossos projetos, formas de produção, se streaming for a forma de gerar esse financiamento, acho que é um processo que se encontra com grande evolução.
Sato: Para nós, escritores, a evolução tecnológica, ou a evolução de produção, não alterou muito a forma como o nosso negócio se processa. Mas, no que diz respeito a meios de distribuição e transmissão, streaming afetou muito o nosso trabalho porque não tem intervalos. Então a forma como escrevemos essas partes teve que ser toda reconsiderada.
Por exemplo, numa série de vinte minutos por episódio, se existir intervalo, nós podemos usar isso como forma conveniente de parar a história num ponto interessante ou usar isso para mudar a perspectiva de onde a história está ser contada. Mas se for transmitido na Netflix ou na Hulu, não existem intervalos, então a forma tradicional de contar uma história com intervalo no meio tem que ser substituída por outros estilos narrativos.
OUSA: Tem histórias de pessoas que tenham sido inspiradas pelo seu trabalho?
Sato: É muito interessante ver tanta gente a entrar na indústria anime por terem sido inspirados e por terem crescido com anime. Mas, ao mesmo tempo, acho que isso por vezes pode ser uma parede.
A minha geração retirou inspiração de muita coisa fora da esfera do anime, como filmes e diferentes géneros, isso levou-nos a criar anime. Portanto é estranho para nós ver pessoas a retirar inspiração de animação para criar animação.
Watanabe: A mim já me aconteceu de conhecer várias pessoas que dizem que entraram na indústria anime porque foram inspirados por Cowboy Bebop, e isso é muito gratificante. Contudo, se foste inspirado por Cowboy Bebop enquanto ainda eras estudante do secundário, e vieste para a indústria anime, vai demorar um bom tempo até que consigas criar o teu próprio estilo e possas destacar-te dentro da indústria. Eu acho que atualmente, muitos dos estudantes do secundário que na altura foram inspirados por Bebop e entraram na indústria anime, já se encontram com grandes níveis de habilidade dentro da indústria, e fico muito feliz por eles, até porque agora alguns deles estão a ajudar-me nas minhas produções.
OUSA: Quais são os vossos aspetos favoritos de trabalharem os dois juntos?
Sato: Algo que gosto mesmo ao trabalhar com o Watanabe-san é que nas nossas reuniões temos a tendência em discordar então acabamos por falar da música que estamos a ouvir, ou dos filmes que temos visto. E normalmente não faço isso com mais nenhum realizador, eu aprecio mesmo muito esses momentos.
Watanabe: Nas nossas reuniões devemos falar 10% de trabalho e os restantes 90% é de música e filmes. Contudo, são precisamente estas conversas mais off-topic que nos inspiram. A nossa inspiração para o trabalho vem de conversas fora da temática. Muitas vezes as nossas conversas ficam tão profundas que nem a nossa equipa sabe do que estamos a falar.
Sato: Esses são os melhores momentos.
OUSA: Watanabe-san, há pouco disse que vê a música como “linguagem universal” e que essa é a parte mais crucial das suas produções. Esta é uma questão também para o Sato-san. Que influência tem a música nos vossos processos criativos?
Watanabe: Eu recebo muita inspiração para o que crio através de música. Muitas vezes que estava a ouvir música e simplesmente iam-me surgindo imagens, ou ideias para cenas. Por exemplo, uma das inspirações para um dos meus mais recentes títulos, Zankyou no Terror, veio quando estava a ouvir Sigur Rós. Quando estava a ouvir as músicas deles, surgiu-me na mente a imagem de dois jovens numas ruínas de uma cidade destruída e isso levou à ideia de Zankyou no Terror. Isso foi apenas uma inspiração que levou à criação de uma série. Por causa disso fomos gravar a banda sonora na Islândia. Claro que não dava para ter Sigur Rós como banda sonora, isso ficaria-nos muito caro infelizmente.
OUSA: Nos seus títulos, especialmente em Cowboy Bebop, Space Dandy e Samurai Champloo, sente-se que têm a habilidade de manipular vários géneros, e até modificá-los de episódio para episódio. Como encontra esse equilíbrio e faz com que as coisas não pareçam completamente desconexas umas das outras?
Watanabe: Vou começar por dizer que tanto eu como o Sato-san apreciamos imenso ficção científica e horror. Contudo, se nos ficar-mos apenas por imitar o género, então seremos apenas isso, uma imitação, e nunca conseguiremos atingir o nível daquilo no qual nos inspiramos. Por vezes nós pegamos num género já estabelecido, mas a meio mudamos, sempre com muito respeito pelo género, mas a nossa intenção é superar aquilo que nos inspira. Se alguém tentar fazer esta manipulação de géneros sem os respeitar, então é certo que o resultado vai ser algo muito estranho, mas eu acredito que nós o fazemos com base em muito respeito que nos leva a criar coisas com muito sabor.
De qualquer das formas, pessoalmente, eu adoro trabalhos que olhas e não consegues definir se é suposto ser cómico ou sério, então tudo o que crio é intencionalmente construído dessa forma. Eu faço questão de falar com toda a minha equipa para criarem tudo sempre com esta ideologia em mente, fazer com que a audiência não consiga decifrar se é suposto ser uma comédia ou algo mais sério, mas muitas vezes eles acabam por ficar confusos. [risos]
Isto porque comédia é uma coisa, drama é outra, mas se andar na linha ténue entre os dois pode criar todo um novo género.
Sato: Há muito tempo atrás, antes de começar como escritor, fui DJ. Quando trabalhava como DJ agarrava em sons antigos e juntava-os com novos. Quando se faz algo assim até podemos sentir que não se está a criar nada de novo, mas na verdade estamos. Então quando o Watanabe-san me disse que ia caminhar entre géneros e misturá-los pensei que era basicamente o que eu já andava fazer quando era DJ.
Watanabe: Ele era um techno DJ da velha-guarda. [risos]
Sato: Claro! Só com Vinil!
Watanabe: Nada de computadores…
Sato: Mesmo.
Agradecimentos especiais à organização da Nan Desu Kan por ter permitido a realização desta entrevista e ao Connor Foley do Otaku USA por a ter conduzido e disponibilizado.
Fonte: Otaku USA
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