No ano de 1999 foi lançado o que seria mais um clássico de animação infantil, com selo da produtora Toei Animation. A franquia Digimon Adventure surgiu baseada nos pequenos dispositivos “Tamagochi” que faziam furor nas faixas etárias mais baixas, naquela altura.
Numa era onde a franquia Pokémon tinha conquistado um público fiel, Digimon levantou sérias dúvidas quanto à originalidade e semelhança narrativa. Sobe o olhar exigente de pequenos e graúdos, a série cresceu e apresentou provas mais que suficientes quanto à sua originalidade e posição no coração de milhares de jovens e crianças, da tão famosa “geração anos 90”.
A história apresentava-se simples, com pequenos traços que se preconizavam como finas linhas de uma teia muito maior, que viria a ser trabalhada de forma progressiva.
Num acampamento de férias, sete crianças foram prendadas com uma insólita mudança meteorológica em pleno verão. Uma insignificante vicissitude face aos acontecimentos que se seguiram. Do nada, uma onda suga as crianças para o que seria o início de uma aventura memorável. No mundo dos Digimons, são confrontados com pequenos e estranhos animais falantes que afirmavam ter estado à espera dos mesmos, até aquele momento. As dúvidas começam a surgir, afinal o que eram Digimons e qual a razão para terem sido os únicos enviados para o local num acampamento repleto de crianças?
Avaliando a narrativa como um todo e sobretudo, não querendo me alargar ou narrar acontecimentos, tentarei realçar os vários elementos manejados com mestria, pela produção.
Uma realidade que cruza com a nossa
A genialidade na produção e desenvolvimento da franquia adquire dois estatutos dignos de apreciação e claro louvor. Para além da criação de um novo mundo de raiz, promoveram, ao longo de toda a série, uma ligação possível entre os dois mundos, convencendo o espetador que tal era possível, e que um dia, no dia 1 de agosto, seríamos colhidos para um novo mundo de aventura com os nossos amigos digitais.
O cerne narrativo foi exposto praticamente desde o primeiro episódio. Do que se tratavam os digimons? O que era aquele mundo? Porque tinham que lutar? e não obstante, porque eram identificadas como crianças escolhidas? Nada disto foi deixado em branco, sendo que toda a trama se desenvolve em prol da resolução destas questões fomentado pelo motor narrativo que eram as carismáticas personagens.
Personagens únicas!
A verdade é que nada disto seria possível, sem o carisma e potência das personagens envolvidas. Longe das habituais personagens tipo, somos presenteados com um leque enormíssimo de personagens com personalidades distintas, fortes, com caraterísticas demarcadas e sobretudo, não lineares! As personagens crescem ao longo da série como se de crianças se tratassem. Na verdade elas são retratadas como isso mesmo: crianças. De diferentes idades, responsabilidades e ligações mais ou menos vincadas umas com as outras; que se vão conhecendo, cooperando e sobretudo evoluindo.
Todos os atos mais ou menos tempestivos ou desesperados fomentam o elo de ligação entre o espetador e a realidade do mundo Digimon, afinal, o que aconteceria a uma criança que fosse transportada para um mundo desconhecido? Como agiria? Seria forte, capaz e cheia de vontade de explorar o novo mundo? A verdade é que uma delas poderia tomar essa atitude, uma outra entraria em pânico, outra tentaria entender o que se estava a passar, entre outras reações humanas e reais num humano sobre uma situação que lhe é estranha. E é esse um dos pontos onde a narrativa original brilha: o retrato fiel da natureza humana aliada às personagens usadas.
Desenvolvimento crescente
A obra assume assim uma desenvoltura progressiva e um tanto episódica, sendo que em cada episódio é apresentada um novo digimon, e consequentemente uma nova batalha, digi-evolução ou apogeu narrativo. Contudo, a caraterização episódica está longe de ser a melhor descrição do tipo de abordagem para o pequeno ecrã. Na verdade todos os episódios e façanhas dos nossos sete (e mais tarde, oito) heróis, estão intimamente interligados, sendo que um acontecimento ou personagem narrado ou simplesmente referido num episódio pode surgir dezenas de episódios depois.
Com tantas personagens, dúvidas e questões deste vasto e complexo universo, o receio em relação à coerência narrativa é compreensível, no entanto ao longo de 54 episódios comprovamos que todas as linhas desta vasta teia de acontecimentos culminam, na perfeição, sobre pontes tecidas com fortes e lógicas explicações, servindo-se continuamente de motores de pesquisa e ligações à realidade humana.
Composta por duas partes, a obra encontra-se preenchida por uma série de momentos de suster a respiração e sobre os quais os arrepios e lágrimas muito pouco contidas, se fazem presentes a cada menção honrosa ou simples imagem mais significativa. A isto aclamo à saudosista geração de 90, da qual faço parte, e que guarda certamente no coração, o primeiro grande choque de infância face a algumas das mortes e despedidas promovidas pela franquia Digimon Adventure.
Uma qualidade acima da média!
Habituados às produções atuais de elevado rigor e qualidade técnica, encaramos com estranheza o traço menos brilhante, as cores não tão demarcadas e trabalhadas sob um jogo de luzes e fluidez, próximos do real. No entanto, devo-vos relembrar de que esta animação trata-se de uma obra produzida em 1999, ou seja desenvolvida à mais de 15 anos! Tendo isto em mente, devemos encará-la de espírito livre de comparações atuais e tendo sempre em conta ao que era passível de ser desenvolvido na altura.
A qualidade de caraterização das várias personagens merece um menção honrosa, sem dúvida que todos os esforços e orçamentos foram direcionados à criação e desenvoltura das personagens, sejam elas principais ou secundárias. Com a entrada sucessiva de novas personagens a surgir sobre tela, não foi de estranhar o desleixo face aos cenários e à fluidez dos mesmos. Sendo muitas vezes simples e repetitivos, restringiram-se à oferta básica de um novo ambiente, um novo mundo, focando-se sobretudo na narrativa e desenvolvimento do vasto leque de personagens.
Apesar de queixas poderem surgir face a alguns descuidos ou menor rigor na produção de algumas personagens em alguns frames, como um todo, e face à conjuntura em que foram desenvolvidos, não lhes podemos apontar o dedo. Na globalidade a obra superou as expetativas, com esplêndidas batalhas e momentos bélicos a cima da média, sendo que apesar de tudo relativamente simples, denotou-se uma franca evolução quer em termos de cenários, quer em fluidez. O recurso a 3D nas evoluções divide opiniões quanto à necessidade da sua inserção na animação, no entanto o rigor técnico nesse quesito apresenta-se consistente e bem a cima da média produzida na altura.
Ainda se lembram da letra?
Admito que seja uma questão mais direcionada a quem seguiu a obra transmitida na televisão portuguesa. Desses é claramente esperada, na ponta da língua, o fantástico opening e o maravilhoso ending em português, que faziam miúdos tornarem-se cantores e muitos pais passarem a identificarem as produções televisivas que os obrigavam a ficar retidos ao domingo, até o episódio terminar.
O ex-líbris português proporcionado pela adaptação dos temas oficiais em nada ficara atrás às músicas originais, ainda assim sugiro a apreciação da obra no seu formato original e quiçá comparação das duas.
Quanto à banda sonora, esta é repleta de grandes e memoráveis músicas e composições, tornando-se parte fundamental da narrativa. A equação entre cena e banda sonora, eleva a patamares bem a cima da média atual, emoções e situações onde a associação imediata entre música e sentimento exponencia a experiência sensorial.
Na sua maioria memoráveis, as várias faixas que compõem a banda sonora vão desde grandes músicas, a melodias mescladas entre o recurso a instrumentos clássicos e sons computarizados, aos temas orquestrados maravilhosamente interpretados e criteriosamente colocados nos momentos de maior tensão e carga dramática crescente, com especial referencia ao recurso a instrumentos de sopro, entre eles a harmónica.
Juízo final
Fã inegável desta obra, sofro do síndrome de saudosismo inerente a quem viveu em primeira mão o furor de Digimon Adventure, no momento da sua estreia nas televisões portuguesas. Incontáveis as vezes em que já revi a franquia, enfrento uma responsabilidade difícil de sustentar, ao analisar e sobretudo recomendar este clássico da animação japonesa.
Como clássico que é, palavras vêem-se escassas no que toca a numerar extensa quantidade de argumentos a favor da visualização da mesma. Nutrida de uma narrativa forte e bem desenvolvida, compenetramos num mundo digital onde pequenos grandes momentos ditam personalidades e grandes batalhas são vividas como se da nossa vida se tratasse. Com recurso a temas bastante humanos, e ainda em ascensão no momento em que a obra foi publicada, como a Internet ou dados digitais, a veracidade de todos os vários elementos, e ligação entre toda a conjuntura de personagens e as duas realidades, fazem sentido até para o espetador mais céptico. Promovendo um ambiente imersivo, difícil de conter até por quem assiste a obra pela primeira vez.
O grande entrave sustenta-se no visual e animação pobres comparativamente às grandes produções atuais. Numa sociedade em que é valorizado o ambiente em prol do conteúdo, grandes clássicos como este são deixados de lado e negligenciados pelas mentes mais simplistas. Em suma, direciono esta obra às mentes ávidas que pretendam usufruir de momentos relaxantes e ainda assim cativantes, onde os sentimentos puristas de amizade, amor e confiança servem de base para um mar de aventuras num universo fantástico.
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Análises
Digimon Adventure Anime
Uma narrativa sublime repleta de personagens em constante evolução. Uma obra que marcou gerações.
Os Pros
- Personagens;
- Enredo Original;
- Nostalgia.
Os Contras
- Alguns pontos não explicados mais em termos de origem dos mundos.