Luto, culpa e Chekov. O amor como algo que nos une e que nos separa em simultâneo e o teatro como a arena das relações humanas e das complexidades da intimidade e da dor de perder alguém. Uma história de três horas encapsulada numa peça de teatro multilingue e num Saab vintage de cor encarnada.
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Em contraste, o conto com o título homónimo que serviu de inspiração, escrito por Haruki Murakami, é breve e sucinto, com apenas cerca de quarenta páginas, variando de tradução para tradução, que segue de maneira bastante simples Yusuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima), um ator de sucesso e diretor de teatro que se especializa em projetos experimentais – no filme temos a adaptação multilingual de “Uncle Vanya”- onde ele interpretará o papel principal contra a sua vontade.
Yusuke tem um relacionamento complexo com a sua esposa Oto (Reika Kirishima), uma dramaturga e argumentista para TV, cuja imaginação está intensamente ligada com a sua libido, tendo episódios de transe durante o sexo, em que murmura ideias para os seus contos eróticos – é com um destes delírios que o filme começa a sua jornada.
Na cronologia do filme, Oto colabora para uma série televisa com o jovem popular ator Koji (Masaki Okada), e torna-se aparente de que os dois têm um caso extraconjungal.
Oto desaparece mais tarde, em maneiras as quais não hei de clarificar aqui, e apenas marido e amante permanecem.
Meses depois, Yusuke retorna à vida de palco, sendo convidado a chefiar uma residência artística – a adaptação multingue de “Uncle Vanya”.
Durante a sua estadia em Hiroshima, o ator vê-se obrigado a contratar a jovem Misaki (Toko Miura), contida nas suas emoções, a conduzir o seu velho Saab, um baú ambulante de memórias. Yusuke não precisa de uma motorista, mas os administradores protestam e juntos passam inúmeras horas dentro do modesto veículo em vagueio por uma cidade fantasma, em plena jornada de auto-descoberta: Misaki a conduzir, e Yusuke a recitar os versos, contra-dialogando com a gravação da sua esposa ausente. Ambos partilham os seus passados e o seus segredos – coisas que poderiam ter feito e coisas que fizeram, mas que não deveriam ter feito. O mundo voa pela janela.
Nós, a audiência, viajamos também com eles, dentro do Saab 900 vermelho. Aquecemo-nos nos momentos efémeros em que o sol nos toca no rosto, para depois este ser vedado pelos proeminentes edifícios de argamassa sombria e sem vida e pelos comboios-expresso ruidosos. Depois, o pequeno Saab afasta-se do núcleo de betão da cidade e aventura-se pelos longos túneis, pela escadaria à beira-mar que nos embala com a música das ondas e pela neve espessa e infindável. Os cenários refletem as personagens: onde há beleza, há solidão.
Hamaguchi conta esta história com uma simplicidade que lhe é inerente, entregando ao público um toque de empatia: de que, uma maneira ou outra, a vida continua, que tudo passa e que a única coisa que nos resta e que nos dá alento para continuar, é a própria vida, como é expresso nos últimos momentos do filme.
“Drive My Car” não tem pressa em chegar ao seu destino narrativo: com uma duração ambiciosa de quase três horas (2h59m), acompanhamos os momentos mais recentes (e traumáticos) da vida de Yusuke, de quando ele produzia “Waiting for Godot”, até aparecerem os créditos de abertura, aos 40 minutos de película.
O roteiro faz grande uso das ideias de Chekhov, o que é capaz de tornar o filme um pouco cansativo, devido à obsessão do realizador em direcionar a atenção do espetador para as palavras e os sons. Por exemplo, o apelido de Yusuke, Kafuku, soa como “Kafka”, o famoso escritor checo. O nome da sua mulher, Oto, significa “som”.
A representação é um dos maiores prazeres deste filme. Apesar da tristeza tenaz, as personagens apenas falam quando têm algo a dizer: não há muita conversa de circunstância. O silêncio que abraça o filme é rico e uma arma que poucos realizadores se atrevem a manusear. Há momentos em que o silêncio é presente, porém, a carga emocional que os atores põem na cena é ensurdecedora.
O filme é lento, mas a lentidão serve um propósito: porque é assim que se ultrapassa os períodos de luto e que se fica à espera que a vida retorne o seu ritmo.
Tal como Chekhov, “Drive My Car” não explora questões profundas sobre a nossa existência, mas antes conduz-nos pela tragicomédia da nossa passagem pelo mundo, quer seja troteando no palco ou guiando pelas infinitas estradas de Hiroshima. As histórias que as personagens desabafam umas com as outras e que partilham connosco também. O fumo do tabaco que permanece e que deixa o rasto dos atos de paixão e violência. A satisfação de viajar num carro onde tu possas encontrar conforto, em silêncio. E finalmente, o poder que o teatro possui em nos dar as palavras com que por vezes nos debatemos em dizer.
As peças que Hamaguchi vai juntando ao longo do filme não parecem, à primeira vista, encaixar, contudo, no final, o todo faz sentido, e aqui, o todo é muito, muito maior do que a soma das partes, em maneiras que nos ultrapassam. É esta a essência do cinema: mostrar a trama ao invés de explicá-la.
Nos momentos que rematam o filme, Yusuke elogia a condução de Misaki, dizendo: “She speeds up and slows down so smoothly, I hardly feel gravity. Sometimes I forget I’m in a car.” Hamaguchi revela-nos que apesar de a vida ser dura, é bela, e por consequência, os espetadores olvidam que não estão no lugar de trás do velho Saab 900, a presenciar as conversas entre Yusuke e Misaki e a escutar a gravação da voz longínqua de Oto, mas sim, apenas a ver um filme.
“Drive My Car” pode ser visto na plataforma da Filmin Portugal, clicando AQUI!
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