Entrevista conduzida por Daryl Harding, da redação do site Crunchyroll, em cooperação com Kaho Shibuya, amigo de longa data do mangaka e intérprete de ocasião.
Depois de uma conversa sobre o seu mais recente trabalho, GIGANT, Hiroya Oku falou das suas obras anteriores, do estado atual dos direitos de adaptação de GANTZ e do caminho que gostaria que esta série tomasse no futuro. Isto sem se esquecer do apoio que recebe dos fãs internacionais.
Entrevista a Hiroya Oku: Série Gantz e Planos Futuros (em Hollywood)
A entrevista a Oku-sensei e ao seu editor foi realizada num escritório da editorial Shogakukan, o que permitiu conversar sobre os seus trabalhos num ambiente mais informal.
Daryl Harding: Ultimamente têm sido feitos muitos reboots de animes, como aconteceu com Shaman King e Sailor Moon. Agora que a série anime de GANTZ conta 17 anos, gostaria de ver uma nova versão?
Hiroya Oku: Uau, já passou tanto tempo? Porém, pergunto-me se um reboot de GANTZ seria possível… Mesmo para um manga seinen, é um trabalho repleto de corpos nus e cenas sangrentas.
Quando surgiu a primeira adaptação para anime de GANTZ, esta ainda foi bastante censurada. Foi-me dito algo como “não podemos fazê-lo como você quer” pelo produtor televisivo. O realizador parecia ter problemas frequentes. Com as coisas a ficarem mais rígidas, acho honestamente que criar um reboot será complicado.
Gantz e os direitos de adaptação de Hollywood
Harding: O que tem a dizer sobre o remake pela indústria de Hollywood? Respondeu a esse rumor no Twitter com um emoji de uma cara a pedir silêncio.
Oku: (Risos) Pois, eu não posso falar sobre todos os detalhes, mas neste momento há de facto uma companhia de Hollywood que possui os direitos de adaptação de GANTZ e, a menos que os devolvam, não podemos avançar nem com um anime nem um live-action novo inspirado no manga. É este o típico contrato à Hollywood; eles detêm os direitos de todas as adaptações já feitas, mas não os do manga.
Temos um spinoff com o título GANTZ:E a ser publicado atualmente na revista Young Jump (ilustrado por Jin Kagetsu), cuja conceção foi permitida pelos produtores por se tratar de um manga; não podemos fazer uma versão animada. Está a tornar-se numa dor de cabeça, para ser sincero.
Harding: Até quando vão deter esses direitos?
Oku: Durante mais uns quatro anos, creio. O contrato foi finalizado o ano passado (2020). Não tenho sido informado quanto ao progresso da adaptação de Hollywood nem sei se realmente vai ser feita. Isto pode dever-se às pausas e atrasos em projetos que a Covid-19 impôs por lá; GANTZ pode ser um dos afetados. Se esse é o caso, eu gostaria de reaver os direitos.
Harding: A sua palavra foi tida em consideração na produção de GANTZ:0, o filme japonês de anime de 2016 totalmente em CGI?
Oku: Dei total liberdade à equipa de produção, mas eles pediram-me que redesenhasse certos adereços mecha como as pistolas X e Y e o motociclo de uma roda. Parecia que queriam acrescentar detalhes mais elaborados aos dispositivos mecânicos dos que estavam no manga, o que me agradou muito.
Disseram-me que seria possível mostrar letras nos LCD de cada pistola, ou que podiam animar as rotações dos cilindros. Escrevi comentários do género “mostrem uma luz azul” enquanto desenhava as armas.
Gantz – Um sucesso no ocidente
Kaho Shibuya: GANTZ tornou-se num êxito internacional. Porque achas que foi tão bem-recebido fora do Japão?
Oku: Ainda não percebi até que ponto a série foi bem recebida no estrangeiro. Sim, GANTZ foi traduzido para várias línguas estrangeiras em formato manga e ebook. No entanto, a perceção de que há muitas pessoas fora do Japão a ler o meu manga custa a assentar. Já reparei que nalguns comentários não-japoneses às minhas publicações no Twitter, mas não sei se os meus trabalhos são mesmo populares lá fora.
Shibuya: Há YouTubers estrangeiros a partilhar as suas críticas de anime e manga; quando pesquisei pelas tuas obras surgiram uns quantos canais franceses nos quais era feita referência, sobretudo, a GIGANT.
Oku: Oh, não fazia ideia! Por que será…?
Editor de Oku: Exato! Contaram-me que o número de impressões da primeira edição francesa do volume 1 de GIGANT era invulgarmente alto e que tem havido muitas novas edições.
Harding: Quando disse ao meu editor na Crunchyroll que o íamos entrevistar, ele ficou extremamente entusiasmado. Aliás, todos os colegas ficaram. A meu ver, porque não haveriam os seus trabalhos de ser populares no Ocidente quando séries de teor mais maduro como Game of Thrones e Westworld são adoradas por grandes públicos?
Oku: A sério, acha mesmo?
Harding: Bom, o manga está atualmente a vender mais exemplares [por volume] nos EUA do que a banda-desenhada norte-americana.
Oku: Vi muita gente a falar disso na Internet. Li um tweet que critica o quanto os comics norte-americanos se têm de preocupar com o politicamente correto e os direitos autorais, ao contrário dos manga… (Risos)
Shibuya: Bom, no Japão somos muito mais rigorosos com coisas como os direitos autorais. Alguns fãs norte-americanos referem-se a ti como o Stan Lee japonês pois tanto tu como as tuas obras aparecem pontualmente noutras séries.
Oku: Ah! O Oku de HEN partilha comigo o nome, mas é parecido com um amigo meu da escola secundária. Nem o aspeto nem a personalidade são meus.
Já o motivo para ter incluído posters de GANTZ em Inuyashiki foi o querer escrever manga que aparenta refletir o mundo real. Gostaria de usar nomes de pessoas reais e pormenores realistas o mais possível, mas para referir outras obras teria que obter permissão e, francamente, só o ter de o fazer todas as vezes torna-se aborrecido. Por conveniência, escolhi a referência a GANTZ pois detenho os direitos do manga.
Harding: Há alguma marca que se tenha negado a ceder-lhe essa permissão?
Oku: Aconteceu em GANTZ. Era uma cena grandiosa com extraterrestres a invadir a Terra; à medida que caminhavam, as enormes criaturas robóticas vislumbram a estátua gigante de Gundam em Odaiba e, pensando que se trata de um inimigo, destroem-na. Quis desenhar isso, mas nunca recebi permissão formal, pelo que afastei a ideia.
Harding: Isso teria sido muito interessante.
Shibuya: Mencionaste que os teus manga muitas vezes imitam a realidade e, de facto, são mais frequentemente adaptados para live-action do que para anime.
Oku: É talvez porque o meu artwork tende a ser realista.
Editor de Oku: Nos anos 90 havia mais live-action televisivos inspirados em manga, mas ultimamente tudo gira em torno do anime, o que faz disparar as vendas do manga dez vezes mais, sendo Kimetsu no Yaiba (Demon Slayer) o melhor exemplo disso.
Adaptações Live Actions – Opinião Hiroya Oku
Shibuya: Como alguém que assiste a muitas séries live-action, uma adaptação para live-action é sempre mais especial?
Oku: Não particularmente, pois sou um fã de anime desde a infância. Até me juntei a um clube de animação no liceu e desenhei muitos fotogramas para animação. Conseguir que uma das minhas obras seja adaptada para anime faz-me tão feliz como quando é transformada num live-action.
Contudo, sinto que por os desenhos conterem muitas linhas se torna difícil transpor um trabalho meu para anime. O estilo artístico tem uma fluidez que pode não resultar bem em animação.
Mesmo em Inuyashiki, em que as personagens eram desenhadas delicadamente em close-ups, notei que muitas linhas se perdiam nos planos mais amplos e pensei que o meu artwork não era mais adequado para animar.
Shibuya: Recordemos o anime de GANTZ; apesar da fantástica animação-chave, houve momentos em que muitos pensámos, enquanto víamos as personagens a movimentarem-se, “esta é a personagem que vimos no manga?”
Oku: Compreendo. Os rostos das minhas personagens assemelham-se muito aos de pessoas reais, pelo que a recriação dos rasgos faciais em movimento pode ser complicada para os animadores. Um estilo de arte deformado seria muito mais fácil de animar. O meu estilo como mangaka torna difícil manter uma certa consistência na animação e creio que isso é problemático para quem quer criar um anime a partir de um dos meus manga. Sinto-me mal pelos estúdios de animação (riso). Ainda que o orçamento de produção seja o mesmo que para outras séries, animar a minha obra requer muitas mais linhas, o que se traduz em mais trabalho e tempo gasto pela equipa artística.
Editor de Oku: Muitos fãs de manga recebem as notícias de adaptações para anime com excitação, vendo-as como “versões melhoradas” do trabalho original. É bom quando a obra de manga tem potencial para se desenvolver, pois pode ser compensado pelo anime. Os animadores sentem-se motivados para desenhar visuais dramáticos a incluir em cenas emotivas e acrescentam detalhes com pinta, tal como acontece com os leitores que se sentem inspirados a desenhar fanfiction. Na minha opinião, o trabalho de Oku-sensei é a noção de perfeição, o que significa que não há espaço para outros criarem coisas novas. Talvez os seus manga não sejam compatíveis com o caso de sucesso em que “o anime torna o trabalho original mais famoso”.
Shibuya: Como alcançaste esse teu estilo artístico único? No início da tua carreira, o estilo parecia até cinematográfico, mas acabaste por chegar a um ponto em que os leitores conseguem identificar, sem dúvidas, que um desenho é teu.
Oku: Alcancei-o progressivamente, desenhado série atrás de série. Na verdade, e é provavelmente demasiado subtil para ser percetível, mas tento mudar um pouco o aspeto dos meus desenhos a cada novo manga. O meu estilo de desenho anterior a HEN era bem distinto; porém, quando criei a história, pensei que uma mistura de shōjo-manga com traços de anime se adequariam bem ao tema da série. Depois de HEN, quis regressar a um estilo artístico mais expressivo, como se viu em 01, mas infelizmente esse manga falhou a nível de vendas. Devido a esse fracasso, desenhei GANTZ com um aspeto mais estilizado do que 01. Em Inuyashiki pude acrescentar, finalmente, um toque dramático e muito pormenorizado que lhe conferiu a aparência de um material seinen de excelência. Em GIGANT estou a focar-me num estilo artístico mais informal.
Harding: Qual é o seu estilo de desenho preferido?
Oku: Acho que o que mais gosto de desenhar é o estilo muito expressivo de Inuyashiki.
Shibuya: Enquanto desenhavas GANTZ, mencionaste numa entrevista que personagens “bonitas como Korono e Kato são mais difíceis de desenhar do que alguém como Suzuki.” Isso mudou?
Oku: Eu gosto realmente de trabalhar em personagens bonitas, mas manter o equilíbrio dos desenhos de caras tão belas é algo complexo. São tão frágeis que o mais pequeno erro pode arruinar o aspeto geral. Homens mais velhos como Suzuki podem ser desenhados com aspereza em quase todas as situações. As caras bonitas necessitam muito cuidado e um esforço adicional. Sempre que desenho personagens bem-parecidas, tento criar o visual perfeito através de desenhos sucessivos em que vou reduzindo o número de correções.
Shibuya: Considero incrivelmente realista a capa do primeiro volume de Inuyashiki com o rosto do velho cheio de rugas muito detalhadas. Quanto tempo demoraste a desenhá-la?
Oku: Não demora assim tanto tempo, mesmo com todas aquelas rugas. Não é preciso muito cuidado para desenhar corretamente o próprio Inuyashiki, por isso posso relaxar um pouco enquanto o desenho. Desenhar personagens bonitas absorve muito mais energia. Em GIGANT, uma vez que ambos protagonistas (Papico e Rei) são atraentes, tenho de os desenhar sem perder a concentração, visualizando-os vivamente na minha cabeça.
Na realidade, muitos mangaka dizem desfrutar desenhar velhotes, já que é fácil. Não se sente pressão com essas personagens.
Harding: O público em geral associa a sua obra a imagens de erotismo, grotesco e violência, especialmente por GANTZ ser o seu trabalho mais conhecido. Usa intencionalmente estes três elementos?
Oku: Sim, são até os géneros a que mais gosto de assistir, por exemplo em títulos como A Guerra dos Tronos e The Boys. Adoro uma série televisiva que reúna esses elementos, tal como uma taça de ramen com todos os toppings favoritos. Creio que o que quero escrever é aquilo que gostaria eu próprio de ver. Se houvesse outro Eu, imagino que iria ficar entusiasmadíssimo ao ler os meus trabalhos; é assim que me sinto sempre que escrevo uma história. Por isso, é natural que os meus manga tenham esses elementos.
Editor de Oku: Peço desculpa por fazer mais um comentário… mas eu acho que na obra de Oku-sensei encontramos erotismo, grotesco, mas também amor puro e cenas de comédia pateta. Como editor, considero que tem muitos toppings e está cheia de sabor. Para mim, este tipo de entretenimento é bastante rico quando comparado com alguns conteúdos recentes que se focam num só elemento como o moe ou o ecchi. Há muito para agradar a todos os segmentos de fãs. O caso de Oku-sensei satisfaz-me muito como editor.
Harding: Já trabalhou com três grupos editoriais de grande relevo no Japão: Shueisha, Kodansha e agora a Shogakukan. Há diferenças grandes, ou trabalha de modo diferente de modo a encaixar em cada uma das editoras?
Oku: Não, não tento fazer alterações quando mudo de editora. Todas têm a sua própria cultura corporativa, mas não é muito óbvio para mim quão diferentes são umas das outras nem presto muita atenção a esse tipo de coisa. Fizeram-me ofertas e respondi a cada uma do modo que me era mais prático.
Editor de Oku: Não creio que o manga seinen varie muito dependendo de que editora o publica. Fui um editor freelancer até ao ano passado. A Kadokawa é experiente na criação de conteúdos em grande número, a Shōnen Jump é um tanque imbatível da Shueisha que não tem rival à altura no mercado… Todas as editoras têm os seus pontos fortes, porém as revistas seinen não são tão obviamente diferentes umas das outras.
Shibuya: É incrível que tenhas muitos fãs estrangeiros quando não te apercebes da popularidade internacional nem tens esse objetivo em mente.
Oku: Duvido que algum mangaka inicie a sua carreira com um manga orientado para o público fora do Japão. Se pensarmos no público de maneira tão extensa, a série pode tornar-se desinteressante e aborrecida. Tens de conquistar fãs que querem ler os teus conteúdos antes que estes sejam traduzidos.
Shibuya: Estás interessado em aparecer em público em convenções internacionais?
Oku: Não gosto de voos longos… (riso)
Shibuya: Também passaste a não mostrar a tua cara publicamente. Há algum motivo para tal?
Oku: Eu costumava mostrar a minha cara antes de a Internet se tornar uma parte essencial do nosso dia-a-dia. Nos últimos tempos, por causa do Twitter e de outras redes sociais, é aborrecido ver alguém partilhar uma foto tua sem permissão e ter pessoas a fazer comentários maldosos quanto ao teu aspeto. Nada de bom advém da exposição pública do rosto de um mangaka. Quer dizer, não vai ajudar nas vendas. Há cada vez mais criadores das gerações mais recentes que escolhem não ser fotografados, provavelmente a pensar na Internet e nas coisas horríveis que se dizem sobre o aspeto físico.
Harding: Até que ponto mudou essa situação comparada com os anos 80? Recordo ver as caras dos autores em capas da Shōnen Jump.
Oku: Lembro-me desse tempo. Era comum tirar fotografias de grupo dos artistas em festas organizadas pelas editoras, o que já não acontece. Os autores não queriam mais aparecer em fotos e fizeram-se escutar. Atualmente, não fazes ideia que aspeto têm os mangaka da Shōnen Jump e até o género sexual pode ser ocultado.
Editor de Oku: Há muito tempo, chegavam-se a publicar as moradas reais dos autores para os fãs poderem enviar cartas. Alguns miúdos iam até à casa e tocavam à campainha para que autografassem os seus shikishi (folhas de papel com destaque).
Oku: Ouvi muitas histórias dessas. Anteriores à década de 1980, nos tempos de Fujiko Fujio (dupla responsável por Doraemon), Tetsuya Chiba (criador de Ashita no Joe) e Osamu Tezuka. Esse tipo de coisa seria impensável hoje em dia.
Harding: Revelar a morada deve ser assustador, sabendo-se que existe o Google Earth…
Editor de Oku: Vou a cerimónias de prémios e aceito-os em nome dos autores vencedores, pelo que fotografias minhas a receber troféus aparecem na Internet quando alguém pesquisa pelo nome do mangaka. Leio comentários como “Oh, este idoso escreve aquele manga!” e penso “Esse sou eu…” (riso) A Internet não é um lugar simpático.
Oku: Arrependo-me verdadeiramente de me deixar ser fotografado no passado, uma vez que o público ainda consegue encontrar essas fotos em pesquisas para as usar.
Shibuya: Reconhecem-te com base nisso?
Oku: Nem por isso, mas pelo tipo de conteúdo que crio, as pessoas concluem que sou assustador. Quando recebo novos assistentes no trabalho, dizem-me que estavam à espera que eu fosse um tipo arrepiante. Ficam surpreendidos por me acharem muito normal.
Harding: Por último, tem alguma coisa a dizer aos fãs internacionais?
Oku: Para já, eu não costumo pensar num público em particular enquanto escrevo o meu manga. Como criador japonês de manga, comecei a escrever com a esperança de vir a ser aceite aqui no Japão. Por isso, só o pensar que há gente fora do Japão a estimar as minhas séries é mais do que fantástico. Considero-me fantasticamente afortunado. Tudo o que posso dizer é “obrigado”. Se apreciam os meus manga, continuem a acompanhá-los. Eu continuarei como estou, vou manter o meu estilo peculiar e continuar a escrever no meu modo original.
Harding e Shibuya: Ao contrário da violência e da loucura presentes no seu trabalho, você é uma pessoa muito gentil. Obrigado por deixar um espaço em branco na sua agenda já preenchida para nos deixar entrevistá-lo.
Oku: De nada. Muito obrigado.
Os manga GIGANT e GANTZ estão disponíveis em inglês, respetivamente, pelas mão das editoras Seven Seas Entertainment e Dark Horse Comics.
Fonte: Crunchyroll