O espírito marcial do ocidente caracteriza-se pela sua primazia em valores aristocráticos, ideias iluministas e uma escala abrangente. A teoria histórica do grande homem, central no impulsionar do desenvolvimento humano, concilia-se intimamente à especialização de história militar. Por sua vez, esta especialização permeia e informa todas as restantes áreas e considerações académicas neste domínio. Sendo assim, o ocidente, por questão de brevidade, celebra imponentes figuras militares. De suprema inteligência e astúcia, tanto no campo de batalha como na arena política. Líderes de civilizações e porta-estandartes dos mais supremos valores (na perspetiva da cultura/autor que o descreve positivamente).
Homens como Alexandre Magno, Júlio César e Napoleão Bonaparte são emblemáticos deste ideal, pelo menos quando traduzidos para escritos. Por mais que, paralelamente, valores comuns de força, virtude e mérito individual também se traduziram na veneração de grandes guerreiros, servem mais de exemplos de folclore do que supremos seres humanos capazes de domar o percurso do tempo. Conhece-se a famosa Xª Legião Equestre e os seus feitos, mas nada é dito de qualquer legionário individual. Em grade parte, a disciplina de história é profundamente influenciada pelo industrialismo que marcou a historiografia moderna. Sendo assim, é difícil fazer o argumento pelo impacto de um soldado individual quando a implementação generalizada de armas de fogo demonstra que um fidalgo com décadas de treino marcial pode facilmente ser morto por um camponês com alguns meses de treino básico com a espingarda.
Isto para não falar no acordo generalizado que uma unidade de soldados disciplinada facilmente supera um qualquer prodigioso guerreiro individual. Dado isto, não é de admirar que a concepção japonesa marcial é tão impressionante para nós. Em contraste, o Japão violentamente romantiza a figura do guerreiro virtuosamente sabedor e dominador das várias artes marciais. De tal forma, que brigadas inteiras são feitas inúteis quando postas em conflito com tal perícia. Em grande parte, isto pode ser atribuído à idade do Edo na qual os samurais, agora dominados por vidas de burocracia, refugiam-se em fantasias de superioridade na qual todo o seu treino, de facto, os daria uma extraordinária vantagem no campo de batalha (em vez de inútil face a uma muralha de yaris ou uma linha de fuzilamento).
Eu desisti de Grappler Baki
Porém, existe aqui uma alma que apela profundamente a qualquer pessoa. Nomeadamente, a democratização da força e o auto-melhoramento físico e espiritual que nos permite ultrapassar qualquer limitação. Esta simples ideia que qualquer pessoa, através de educação, é capaz de atingir uma característica que, pelo menos no ocidente, tem uma forte conotação de naturalismo, é extremamente sedutora. Simultaneamente, complementa a ideia de que a educação é o derradeiro equalizador, ao mesmo tempo que oferece poder de uma forma tangível. Dado este poder, pergunta-se se o propósito da arte marcial será um fim em si ou um simples meio. Esta é a temática principal do arco do venerável manga Grappler Baki, adaptado no anime do mesmo nome de 2018.
História e Falhas
Inconscientemente, todo o mundo vê-se abalado por um medo desconhecido e inexplicável. Um pavor primordial acompanhado de um evento em igual medida extraordinário como improvável. Em simultâneo, 5 dos mais mortíferos e perigosos criminosos do mundo libertam-se das mais impenetráveis instalações presidiárias do globo. Apesar de nunca se terem conhecido, escaparam ao mesmo tempo de forma a convergir no Japão. Aí, procuram desafiar e aniquilar os mais formidáveis praticantes de artes marciais que o mundo tem para oferecer. O seu elo unificador, além da partilha de cadastros ameaçadores, passa por uma vontade incontornável de combate e violência pura. De forma a responder a este desejo insaciável, emerge um grupo de combatentes excepcionais, unidos na sua perícia e devoção inabalável às artes marciais.
Organizados por um descendente da ilustre linhagem Tokugawa, este acredita piamente que se presencia um extraordinário momento de destino. Organizador de um circuito de lutas ilegal, alegremente disponibiliza toda a cidade de Tóquio como palco para este torneio inédito. Além disso, convoca para o lado doméstico um membro já bem conhecido nos círculos marciais. É aqui que entra o jovem Baki Hanma, um prodigioso artista marcial que, com apenas 15 anos, venceu o mais disputado e letal torneio ilegal de luta no mundo. Daí, dá-se uma implacável luta entre tradição e pragmatismo. Estilos anciães como Karaté, Kenpo e Jujutsu irão defrontar o no-nonsense da força bruta, o vale tudo e treino militar. Disciplina e implacabilidade irão ter aqui o seu derradeiro choque, banhando as areias da arena com o sangue, lágrimas e suor dos mais determinados lutadores da Terra.
Grappler Baki, apesar de ter apenas entrado em proeminência muito recentemente, é um manga profundamente influente. No que diz respeito ao género de lutas e artes marciais, Baki consiste no seu maior expoente. Pegando na extravagância e loucura muitas vezes vista no género shounen mas assentando-o num contexto mais, diga-se, realista. Pelo menos na maneira como toma cuidado e carinho em expor as virtudes das disciplinas e capacidades das suas personagens. Graças à indelével influência de Super Eye Patch Wolf e o marketing da Netflix, Baki rapidamente tornou-se num objeto de interesse para a comunidade. Mesmo a breve descrição dada acima promete uma premissa intrigante, uma ideia de infindáveis possibilidades. Além de ser relevante na discussão acerca do valor de artes marciais como úteis para a defesa na vida real.
Promete, mas, infelizmente, não cumpre. Lamento dizer que Grappler Baki é, muito provavelmente, o maior desapontamento, não só de 2018 como, se inalterado, de 2019. Uma série que, além de não ser capaz de capturar o ambiente da obra que adapta, comete um pecado de tal forma fatal que singularmente a arruína. Vamos fazer isto por partes. No que diz respeito a história e personagens, devo dizer que, ao menos, o elenco é bem traduzido em movimento. As personalidades bombásticas e espírito indomável dos diferentes participantes permanece intacto em comparação com a obra original. A parte mais interessante destas, a ânsia pelo combate e a devoção irredutível pela paixão marcial, estão absolutamente intactas.
Porém, como virtude, é vã. Tais caracterizações são pedestres em anime, mais que comuns. Dado que também existem anteriores adaptações, não é como se não tivesse sido feito antes. Fora essa observação, são mais que aceitáveis e cativantes para a audiência. O verdadeiro problema passa pelas duas outras componentes que mais dou atenção em crítica. Especificamente, as componentes de ambiente e história. Começando com o mais simples e talvez mais grave, o ambiente é lastimavelmente insuficiente quando comparado com o seu source material. A direcção artística mais limpa e bem iluminada, a meu ver, retira imenso à grittiness e ar rufião que permeia o manga. Isto é particularmente evidente quando cenários mais sujos estão em jogo. Além disso, sinto que a violência perde imenso impacto nesta mesma medida pois carece da fealdade que a daria peso.
Porém, o maior pecado passa pelas cenas de combate. Por menos que uma pessoa soubesse desta obra, não seria descabido imaginar que o combate seria o foco de todo o programa. Mais que isso, que seria a componente do mesmo que mais acesso teria a recursos de produção. Porém, parece que esta minha lógica é irrazoável. Algum virtuoso da inteligência na produção decidiu que a melhor maneira de transmitir a visceralidade do combate nesta série seria através de CGI que não estaria fora de lugar em Berserk 2016. E daí temos o pecado mortal que rebenta completamente com esta série. Dado o subject matter e estética do programa, pensaria que o ideal seria aspirar às partes marciais de Cowboy Beebop. Qualquer coisa que não destrua completamente o intuito artístico subjacente ao manga original.
Este serve de exemplo-tipo como adaptação de estático para movimento é vital para anime e aqui falha redondamente. Além disso, a história é meio formada e mal executada desde a sua génese. Admitidamente, é um defeito que se estende ao manga. Em particular, acho que a premissa inerente não só não tem peso como é resolvida a priori. Se tomarmos como temática central a ideia do conflito entre formalismo marcial e o vale tudo, então já temos a resposta logos nos primeiros 3 episódios. Desde já, os combatentes mais poderosos do lado dos criminosos são, inequivocamente, treinados formalmente em artes marciais. Mesmo o russo assustador, tanto quanto saiba, pratica sambo, uma variante militar russa de judo. Apenas um dos sujeitos é que é mais self-thaught e selvagem e esse é o primeiro que vai abaixo no programa.
Por amor de Deus, até o americano, supostamente caracterizado por lutar sujo à gangster e calhorda, é revelado como sendo secretamente um supremo mestre de Kenpo, coincidentemente da mesma escola que um dos protagonistas. Esta foi daquelas revelações que me mistifica. Porquê passar de lutador sujo e impiedoso para alto prodígio marcial tradicional, apenas distinguido pela sua atitude egoísta perante o estilo que pratica? Claramente que o autor do manga, e por extensão o anime, tem um profundo amor pelas artes marciais. Daí, fará de tudo para realçar como a disciplina e dedicação inerente à prática dará uma inalienável vantagem ao seu praticante. Mesma face a um oponente que descura de cortesia e formalismo para puro pragmatismo e implacabilidade. Tal reverência acaba por dar um mancar fatal à obra.
Eu desisti de Grappler Baki – Conclusão
A sério que não sou tão pessimista com isto, a sério que não. Afinal de contas, eu vejo filmes de artes marciais desde que tenho memória e sou profundamente interessado pela componente espiritual e filosófica das artes marciais orientais. Porém, quando a ideia básica do conflito da história é inconsistente, quando as cenas de luta são atrozes e o ambiente é desinteressante, então não percebo porque devo gastar o meu tempo a ver isto. Apenas ficaria pelo machismo vão e a faux bravata. Mais cedo prefiro ver um qualquer filme dos Shaw Brothers. Por mais que o sangue e membros cortados sejam falsos, ao menos têm mais impacto que falsidade a computador. Talvez possa melhorar no restante da temporada (pois acaba em aberto a meio de um confronto), mas duvido seriamente. Precisaria não só de nova direção artística, como a garantia do desaparecimento do CGI.
Porém, duvido mesmo que uma série, muito provavelmente já completa, seja capaz de fazer isso. Mesmo a única luta sem CGI nesta primeira parte deixa muito a desejar. Só não é um loop de Goku vs Vegeta a subir ao ar porque fizeram um esforço por variedades de ataques. Uma variedade que é recontada através de testemunho em vez de presenciada ininterruptamente. O que estou a tentar dizer é que, mesmo na excepção, não só estou insatisfeito como tenho novos problemas. Não só pedestre como também desperdiça o seu potencial. Mais vale ir rever Ninja Scroll ou Sword of the Stranger. Melhor que isso, rever as anteriores adaptações animadas de Baki. Podem ser velhas mas ao menos dão-se ao trabalho de desenhar as suas lutas apesar das maiores limitações do seu tempo.