Godzilla sempre foi uma alegoria para os vários males que a psique japonesa enfrentara e cada filme da saga reflete as transições culturais e sociais do seu tempo.
O Godzilla de 1954, realizado por Ishiro Honda, surgiu como uma resposta direta aos horrores das bombas atómicas lançadas em Hiroshima e Nagasaki, onde o monstro simbolizava a destruição causada pela energia nuclear, refletindo os medos e traumas da população japonesa da época.
Poderemos estar a pisar terreno delicado, mas os filmes de Godzilla produzidos no Japão são superiores às versões de Hollywood, porque, essencialmente, há uma intenção e um propósito por trás das histórias, não é apenas pura destruição e ação para entretenimento e valor-choque.
Tal como o Godzilla original, Minus One inspira-se no sofrimento do Japão durante a Segunda Guerra Mundial. Minus One começa nos últimos dias da Segunda Guerra Mundial, um momento singularmente sombrio na história do Japão.
No centro da narrativa está Koichi Shikishima (Ryunosuke Kamiki), um piloto kamikaze que abandona o seu destino, aterrando o seu avião na ilha de Odo (atenção ao lore!) para reparos que, na verdade, não precisa.
Entra Godzilla, um monstro familiar para os habitantes locais, que ataca e mata quase todos ocupantes na ilha e, mais uma vez, o medo impede Shikishima de contra-atacar.
Shikishima regressa a Tóquio em miséria e vergonha, encontrando no seu retorno apenas os restos que a guerra deixara. No entanto, ele constrói uma espécie de família improvisada com a jovem Noriko (Minami Hamabe), que também perdeu tudo, e com a bebé Akiko. Quando esta pequena família parece pronta para beneficiar da recuperação pós-guerra, eis que o país cai noutra guerra, ainda mais desesperante e devastadora.
A narrativa de Takashi Yamazaki (que também realiza) não dá um propósito ao monstro. Não há empatia, os seus olhos não espelham o que pensa (se pensa sequer), apenas puro instinto de agressão animal.
Yamazaki dedica atenção “qb” às emoções cruas das suas personagens e ao desgaste mental e físico com que os resquícios dispersos da civilização as atormentam. Yamazaki faz o que os criadores do “Monsterverse” e da franquia “Godzilla/Kong” não conseguiram compreender: constrói personagens complexas e credíveis e humaniza a narrativa, enquanto não vemos Godzilla a pisar, arrancar, esmagar e lançar raios da sua respiração atómica. Em Godzilla Minus One, Shikishima e os seus ex-colegas militares, pessoas completamente inteligentes, corajosas, identificáveis, contudo, com medo do que o futuro os trará, elaboram um plano relativamente plausível para destruir o monstro.
A história também não poderia ser mais simples: o desacreditado Shikishima representa o Japão do pós-guerra, carregado com a vergonha da derrota. No entanto, através do autossacrifício, resiliência e união, o seu arco passa da tragédia a triunfo.
GODZILLA MINUS ONE – O regresso à forma original
O modo como o tema central da vida e da esperança entranha-se em todos os aspetos do enredo, incluindo na batalha final no terceiro ato, é bastante interessante. Apesar de este filme ser, essencialmente, sobre o confronto contra um dinossauro gigante radioativo, Godzilla Minus One é gentil com as suas personagens e recompensa o altruísmo praticado entre eles. Noriko, apesar de a guerra lhe ter tirado tudo, adota uma bebé órfã. Koichi, apesar de ser um poço de angústia e ódio, dá-lhes abrigo e uma família. Sumiko, apesar de estar furiosa com uma quase deserção de Koichi, autoproclama-se membro dessa mesma família.
Kenji Noda (Hidetaka Yoshioka) e os seus colegas nunca condenam Koichi por ser um soldado fracassado, mesmo quando todos os outros o fizeram. Noda diz a todos que quer que o plano deles tenha sucesso sem sacrificar ninguém (e consegue!). A equipa tenta poupar Mizushima (Yuki Yamada), porque este está ferido, mas ele leva um pelotão de rebocadores consigo para o mar, num ponto fulcral da batalha final, não sendo sacrificado para apenas efeitos dramáticos. Tachibana passa o filme inteiro a culpar Koichi pela morte dos seus colegas de exército e, quando este tem finalmente a oportunidade de se vingar, sabotando o avião de Koichi, não o faz – ao invés, constrói-lhe uma cadeira ejetora. Koichi tem uma missão-suicida pela frente, mas salva-se, usando esse mesmo banco de ejeção. Noriko sacrifica-se para salvar Koichi e consegue sobreviver. Este filme toma lugar numa época que não foi nada gentil para com a humanidade, porém, diz-nos, mais do que nunca, para sermos bondosos uns para os outros e para nunca perder a esperança.
Factos interessantes sobre o destino de Godzilla no filme: utilizam gás refrigerante para o afundar. Manobram tecnologia usada em coletes salva-vidas e jangadas para o trazer à tona de água. Quando esse esquema falha, usam rebocadores de salvamento para o puxarem para a superfície, e o golpe final é desferido por um piloto kamikaze que se ejeta a tempo do seu avião - Godzilla Minus One subverte todas as expectativas do que deveria ser uma batalha dramática. Não se trata de lutar uma guerra, mas sim de a terminar. Godzilla é natureza, feroz e desconhecida, mas é derrubado por tecnologia salva-vidas e pela esperança de um futuro sem ele.
A besta pré-histórica fica apenas em cena durante cerca de 12 minutos, (no original de 1954, apenas tem 9 minutos de screen time), arremessando navios de guerra e comboios inteiros, lembrando-nos que Godzilla foi inspirado pelo “presente” de Oppenheimer para o mundo e, particularmente, para o Japão.
Em Godzilla Minus One, as personagens “matam” Godzilla (o monstro nunca morrerá) com a mesma coisa da qual ele foi criado. O monstro desintegra-se em cinzas, assim como todas as cidades destruídas por bombas. Shikishima repetia constantemente que a sua guerra não estava terminada até que Godzilla estivesse morto, sendo este não apenas um monstro, mas uma manifestação do trauma após a guerra. À medida que os restos do Godzilla afundam no oceano, este começa a regenerar-se - o trauma pode ser vivido, mas nunca eliminado. Godzilla é o trauma e a dor coletiva de um país, de pessoas que tanto perderam e tão pouco receberam de volta. Godzilla sempre voltará, enquanto a humanidade continuar a ser como é, porque Godzilla é …guerra.
Godzilla Minus One é um retorno à forma. Um lembrete de que Godzilla originalmente não é sobre o monstro, mas sobre a humanidade.
Os monstros que criamos, os males do governo, o poder da comunidade – tudo está lá e funciona em perfeita sintonia, dando-nos em simultâneo a versão mais catastrófica do G-Man nos seus 70 anos de vida.
No meio do fogo, da destruição e do caos, a história de Yamazaki joga com ideias sobre sobrevivência e honra, argumentando que nenhuma pessoa é pequena ou inconsequente demais no grande tecido das coisas.
Godzilla Minus One rasga, tira o fôlego, é devastador, mas acima de tudo, é honesto.