Tendo realizado mais de uma dúzia de filmes – incluindo o vencedor do Palm d’Or de 2018 “Shoplifters”, a família é o que realmente importa para Koreeda Hirokazu, um dos grandes humanistas contemporâneos do cinema japonês. Muitas das suas obras constroem e destroem o conceito de família, esta fundação que sofre, ora com o passar do tempo ou em circunstâncias trágicas. Koreeda explora e expõe – muitas vezes de uma forma dolorosa, mas contida – o que faz uma família. Temas como a paternidade, os relacionamentos entre irmãos e a recriação de – perdidos ou recém-descobertos – laços familiares, lembra muitas vezes outro grande mestre do cinema japonês, Ozu Yasujiro.
Aqui fica uma lista de filmes de um dos pilares do cinema mundial contemporâneo.
Maboroshi (1995)
A estreia de Koreeda no cinema é uma adaptação do conto “Maboroshi no Hikari”, de Teru Miyamoto, embora a sua versão amplie os horizontes da sua sombria protagonista, a jovem viúva Yumiko (Makiko Esumi). Cerca de seis anos depois do inesperado suicídio do seu namorado de infância, (mais tarde seu marido), Ikuo (Tadanobu Asano), Yumiko e o seu filho deixam Amagasaki, uma cidade industrial perto de Osaka, para se mudarem para uma cidade rural costeira na Península de Noto, onde foi combinado um casamento com um viúvo, pai de uma menina jovem. No início, o ritmo tranquilo do seu novo lar parece aliviar o tormento de Yumiko, mas a natureza inexplicável da partida de Ikuo ainda continua a assombrá-la.
Foi “Maborosi” que lançou a carreira de Koreeda, até então apenas criador de documentários para televisão. Ao contrário de muitos primeiros filmes que acabam por ser apenas “promissores”, “Maborosi” surgiu das habilidosas mãos de Koreeda como um drama confiante e bem realizado, que assinalou o cineasta como um mestre no meio. Koreeda foi reconhecido como um dos principais cineastas do movimento dos anos 90, mais tarde conhecido como a “New Japanese New Wave.”
After Life (1998)
A memória é um elemento recorrente no cinema de Koreeda. “After Life” (1998) sugere que quem somos é aquilo que quem nos lembramos de ser, num mundo fantástico em que o cinema desempenha um papel vital na recordação da própria vida. “After Life” não só propõe uma maneira cinematográfica de ser, como também invoca a sua própria história, uma vez que o filme exibe uma estética que deve muito à visualidade japonesa dita convencional.
O filme passa-se numa espécie de um local de estadia passageira, onde aqueles que acabaram de morrer passam uma semana, durante a qual têm de escolher uma única memória das suas vidas que seja a mais preciosa ou significativa para eles, e que se tornará no único registo que levarão para o além. Em outras mãos, esta premissa poderia rapidamente tornar-se sentimental, pretensiosa ou melodramática. Koreeda mostra a sua visão suave, realista e humana de como as pessoas olham para as suas vidas passadas.
Distance (2001)
Talvez a peça mais intrigante de Koreeda, tanto narrativa como formalmente, e certamente a mais enigmática. Sem dúvida, o seu filme mais depreciado.
“Distance” segue membros de um culto que destroem quimicamente o sistema de saneamento e abastecimento de água de uma cidade e consequentemente cometem suicídio em massa, perto das margens de um lago. No oitavo aniversário desta tragédia, os familiares dos perpetradores reúnem-se no lago para celebrar a vida dos seus entes queridos, numa viagem narrativa intrincada sobre perda e arrependimento.
Koreeda mostra ao expectador a dicotomia cidade-campo, e a imensa solidão que habita naquele lago. Há também uma espécie de fantasia por parte das personagens em conseguir viver fora do tempo; estes batalham para se tornarem unitários, mas no final, todos são engolidos pelas suas rotinas diárias, os seus próprios problemas, e pela vida.
É aqui que Koreeda cimenta a sua tese cinematográfica e onde talvez se conforma dentro da sua zona de conforto (mais evidente depois de “Still Walking”), mas executando implacavelmente todos os seus projetos futuros.
Nobody Knows (2004)
“Nobody Knows” merece a sua própria dissertação e o seu espaço no cinema mundial, porque transformar algo tão trágico e doloroso em algo tão bonito e terno exige uma verdadeira habilidade que só Koreeda Hirokazu tem.
O filme é baseado num acontecimento verídico, que teve lugar em Tóquio, em 1988, quando quatro crianças foram abandonadas pela mãe à sua sorte, para viverem como podiam num pequeno apartamento. O filme de Koreeda deixa claro desde o início que é uma versão totalmente ficcional dessa tragédia. Provavelmente, é melhor assim. A história real é muito mais sombria.
“Nobody Knows” mostra Koreeda no seu melhor, silenciosamente devastador. Momentos fugazes de ternura ficam esparsos por uma história de abandono, infinitamente trágica e sombria. Uma crueldade indescritível que gera uma tristeza maior do que a de uma vida inteira.
Air Doll (2009)
“Air Doll”, realizado por Hirokazu Koreeda e baseado no mangá “Kuuki Ningyo”, retrata a solidão da vida na cidade, onde jantares a solo são rotina e os trabalhadores humanos são facilmente substituíveis. É nesta cidade que bonecas sexuais insufláveis se tornam na companhia ideal — são substitutos para o contato humano real, que não envelhecem, não se queixam e, fundamentalmente, não se partem.
Quando a boneca insuflável Nozomi (Doona Bae) ganha vida, a cidade vista através dos seus olhos parece um mundo de possibilidades, um cenário de prazeres diários, que muitos tomam como garantidos. Ao deixar-nos entrar nos seus pensamentos e sentimentos, o filme concede-lhe a humanidade que o seu dono e os muitos outros homens lascivos que ela encontra lhe negam. À medida que Nozomi começa a afirmar a sua autonomia e independência, o filme segue a história de amadurecimento e emancipação de uma boneca para quem o conceito de envelhecer permanece incompreensível.
São os pequenos detalhes que dão vida a “Air Doll”. Koreeda opta por comentar a humanidade através de uma protagonista artificial, levando a momentos deliciosamente surpreendentes, como quando, por exemplo, um idoso lamenta a superficialidade dos humanos modernos, gerando um efeito ironicamente reconfortante em Nozomi.
Like Father, Like Son (2013)
A narrativa de “Like Father, Like Son” segue um jovem casal, aparentemente feliz, que é informado de que o seu filho de seis anos, Keita (Keita Ninomiya), não é seu, tendo sido trocado com o filho de outro casal casado, devido a um erro no hospital.
Se o filme soa previsível, é porque realmente o é, não apenas nos seus arcos narrativos, mas também em cada personagem quase arquétipo. Além do mais, não ajuda que o hospital revele o seu erro ao marco dos dez minutos, dando assim o “sinal de largada” para que certos conflitos se desenrolem, mesmo que as várias resoluções ocorridas no filme sejam as esperadas. No entanto, o filme é salvo pela fluidez dos arcos narrativos: muitas cenas-tipo são apresentadas de uma maneira única, com boa construção narrativa e cinematográfica, aliada a um elenco de topo.
Ao reformular a clássica trama de bebés trocados à nascença, numa exploração cuidadosa sobre o significado da paternidade, Koreeda transforma “Like Father, Like Son” numa abordagem caracteristicamente discreta, mas flexível, dos laços familiares, expectativas e responsabilidades, que ressoa com um impacto comovente.
Our Little Sister (2015)
Koreeda é a prova viva de que os acontecimentos mundanos do dia a dia, na vida de pessoas comuns, são mais do que suficientes para criar uma peça cinematográfica agradável e extremamente envolvente, com conteúdo mais do que suficiente para manter o espectador interessado. Aqui, Koreeda captura o subtexto incutido na narrativa de maneira mais gentil e naturalista, por meio de um “drama familiar do cotidiano”.
“Our Little Sister”, é uma história que gira em torno de três irmãs que vivem na casa da avó e da chegada da sua meia-irmã de 13 anos.
Rico em detalhes e essência, o otimista “Our Little Sister” segue a combinação de tons amigáveis e análise social, tão característica de Ozu e Shimizu, e propõe uma cadência, uma visualidade e uma essência genuína ao estilo Ghibli. Um “slice of life” relaxante, carinhoso e honesto, que só os japoneses conseguem fazer.
The Third Murder (2017)
Koreeda entra em terreno desconhecido com “The Third Murder”, onde o cineasta abandona a ternura dos seus mais recentes dramas familiares, em favor de um thriller jurídico gelado, que desmonta pedagogicamente a pena de morte.
O filme explora a culpa ou a inocência de Misumi (Kōji Yakusho), um homem que já confessara o crime de assassinato do seu chefe. Koreeda apresenta um processo judicial e explora as complexidades da psique humana, a verdade por trás das motivações e a divisão entre a justiça e a injustiça, nunca se privando da sua estética naturalista e a essência humanista com que veste as suas narrativas.
Talvez “The Third Murder” tenha sido um momento menos feliz na sua carreira, mas um risco que valeu a pena tomar. Tal como em todos os seus filmes, é uma peça de excelência nas áreas da realização, cinematografia, trilha sonora e representação.
Shoplifters (2018)
Muitos filmes tentam vender o conceito de família como algo santificado, e ignoram complicações que poderiam atrapalhar finais emocionalmente fáceis. Em “Shoplifters”, um drama familiar belamente sentido, Koreeda mergulha no caos com uma história sobre um lar à beira do colapso. Do pai ao filho, a família apresenta um retrato doméstico incomum, cujas lutas diárias não a torna nobre. A mãe e o pai trabalham, mas há esperteza e dureza. E a família rouba – comida, produtos de higiene, tudo – para sobreviver, mas também como um estilo de vida.
O ponto central em “Shoplifters” sobre os limites da definição de família dificilmente é novo, mas o filme porque é claramente apaixonado pelo que mais importa: as personagens. Há um equilíbrio delicado aqui que permeia cada cena com uma sensação de humanidade ilimitada e inquietação impotente. Chegamos a conhecer as personagens de forma íntima, mas há camadas que sabemos que estão à espera de serem desvendadas, seja para o bem ou para o mal. E quando isso finalmente acontece, não é como uma onda que quebra violentamente, mas mais como um abraço lento e esmagador.
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Broker (2022)
Por vezes, uma família é apenas dois homens, uma mulher, um bebé, a criança que entrou no carro deles a meio da viagem e os investigadores que tentam prendê-los por tráfico de pessoas.
Koreeda viajou para a Coreia do Sul para contar esta história, em parte porque no país existe o conceito de “baby boxes”, um tema que despertou interesse no cineasta; e também para poder ter a oportunidade de trabalhar com Song Kang-ho (“Parasite” (2019)), vencedor do prémio de Melhor Ator em Cannes. Song interpreta Ha Sang-hyeon, o proprietário de uma lavandaria que é voluntário numa igreja local. É lá que ele arranja um esquema incomum com o seu amigo Dong-soo (Gang Dong-won), no qual eles resgatam bebés deixados por mães que não podem cuidar deles.
“Broker” lembra a natureza cíclica dos sistemas quebrados e das pessoas que vivem neles, miseráveis também, mas relembra-nos de que os nossos laços mais profundos nem sempre são os de sangue. Comovente e terno, exatamente o que se espera de Koreeda.
Quais destes filmes já tiveste a oportunidade de ver?