Muitos foram os rumores que surgiram com a triste notícia do fecho de portas da Manglobe. No entanto, pouca é a informação sobre aquilo que realmente aconteceu, como aconteceu, e o porquê de ter acontecido. Este estúdio era recente (13 anos de actividade 2002-2015), mas já tinha (ou deveria ter) idade suficiente para conseguir compreender um mínimo sobre a indústria competitiva da qual fazia parte.
Manglobe – Afinal o que aconteceu
Ao longo do tempo, a companhia atingiu um ponto no qual já não conseguia cumprir de forma independente o seu estado financeiro. Começa então a empilhar dívidas, atingindo um estado de insolvência sem retorno. Segundo o site Anime! Anime! Biz, o estúdio chegou a considerar consolidar os débitos através de empréstimos (mas toda gente sabe o quão bem isso funciona, não é?).
Deste modo, tomaram a melhor decisão que podiam tomar naquele estado: assinar a insolvência. A ideia de empréstimo é abandonada e, no dia 29 de Setembro, um dos estúdios mais conceituados e aclamados abre falência. A dívida contabiliza-se nuns 2 601 130 euros. À primeira vista, para uma indústria que gera muitos milhões, uma dívida de 2 milhões pode parecer pouco, mas, na verdade, é bastante.
Para que tenham uma pequena noção, em média, um anime de 13 episódios tem um custo de investimento no valor de 2 milhões, que é exatamente o valor da dívida com que o estúdio fechou as portas. Em 2013 conseguiram obter aproximadamente 7 milhões de euros em lucro. Porém, em 2014, estiveram parados em novos lançamentos no mercado, obtendo apenas 3 milhões de lucro, tendo alegado que caíram devido à competição apertada da indústria.
Depois de finalmente termos conhecimento destas datas e valores, é-nos possível pensar um pouco sobre o assunto. Surgem muitas dúvidas, onde algumas conseguem ser esclarecidas com mais clareza que outras. A Manglobe é indubitavelmente um estúdio preenchido de talento, como é facilmente confirmado através dos clássicos contemporâneos que nos forneceram ao longo do tempo.
Mas talento, por si só, não consegue gerir uma empresa, muito menos num mundo tão competitivo quanto o mercado de animação.
O que me leva à primeira e grande questão, onde falhou a Manglobe?
Para responder, temos de abordar um pouco mais além do “onde” e falar essencialmente do “quando” e do “porquê”. E, antes de avançar, temos que entender as bases de pré-produção de uma obra. Ou seja, resumindo os processos a algo muito básico, existem essencialmente duas formas de pré-produção no que diz respeito ao financiamento. Produção de obra original e produção através de adaptação de um material existente.
Na produção de uma obra original, quem detém a palavra criativa é o estúdio, o que, por sua vez, requer financiamento próprio independente ou maioritário. No caso de adaptações, o comité de produção é constituído por distribuidoras, canais televisivos, editoras das revistas onde são publicadas as obras, e muito raramente (ou quase nunca), os estúdios que produzem a animação da obra. Trocando então isto por outras palavras:
– Qual o significado destas duas vertentes?
Na primeira hipótese, uma vez que o estúdio se financia, os lucros vão para eles no caso de tudo correr bem. Porém, se correr mal, é o estúdio que fica com o prejuízo. Na segunda hipótese, o estúdio colectivo funciona como um trabalhador contratado individual, ou seja, são pagos pelo serviço que vão fazer ante-mão. Logo, se tiverem lucros ou prejuízos, é-lhes completamente indiferente, não estão ligados a qualquer consequência monetária que a obra tenha depois de terminada.
Dito isto, a Manglobe desde o seu início até 2008, preocupou-se apenas com uma coisa: em produzir obras originais de forma isolada e independente de produtores/investidores maioritários. Vamos então colocar isto em números para termos uma melhor visão do que falo.
Média de Vendas no Japão de cada obra no ano em que foram transmitidas:
- Samurai Champloo (2004) – 2000 unidades (ORIGINAL)
- Ergo Proxy (2006) – 1200 unidades (ORIGINAL)
- Machiko no Hatchin (2008) – Valor desconhecido, mas deverá andar à volta das duas anteriores (ORIGINAL)
- The World Only God Knows (2010) – 3000 unidades (ADAPTAÇÃO)
- Deadman Wonderland (2011) – 550 unidades (ADAPTAÇÃO)
- The World Only God Knows II (2011) – 2100 unidades (ADAPTAÇÃO)
- Mashiroiro Symphony (2011) – 400 unidades (ADAPTAÇÃO)
- Zettai Karen Children: The Unlimited (2013) – 300 unidades (ADAPTAÇÃO)
- The World Only God Knows III (2013) – 2000 unidades (ADAPTAÇÃO)
- Karneval (2013) – 5000 unidades (ADAPTAÇÃO)
- Hayate the Combat Butler! Cuties (2013) – 2000 unidades (ADAPTAÇÃO)
- Samurai Flamenco (2013) – 687 unidades (ORIGINAL SEM POSSE CRIATIVA)
Analisando estes dados, penso que a conclusão é clara, existe aqui uma óbvia má gestão na produção do estúdio. Para vos deixar com alguma noção, uma boa venda deverá ter mais ou menos 10 000 unidades, e a melhor venda da Manglobe está nas 5000 unidades. Um pouco aquém do ideal, não?
Anime – Porque não Existem mais Segundas Temporadas?
Temos Trip Trek em 2003, Samurai Champloo em 2004, Ergo Proxy em 2006 e Machiko no Hatchin em 2008. Destas quatro, apenas Trip Trek é uma produção menor para um público mais infantil. As restantes, são aclamados clássicos contemporâneos. Ainda que nenhuma delas tenha grandes vendas para deixar o estúdio a nadar em dinheiro, foram tudo obras que quebraram barreiras entre o oriente e o ocidente, obtendo prémios e críticas extremamente positivas. E mesmo que o dinheiro não tenha sido abundante, conseguiram sempre o suficiente para arriscar na próxima obra.
Colocaram um produto a cada dois anos no mercado, vendeu muito pouco, mas vendia o suficiente para poder avançar para o próximo projecto criativo e independente. Porém, produzirem única e exclusivamente “na corda bamba” é um risco enorme, pois no caso de correr tudo mal a empresa abre falência no dia seguinte.
Por alguma razão, especulo que seja por causa dos lucros (ou ausência deles) obtidos com Machiko no Hatchin, que a Manglobe começou a adaptar obras como empresa contratada. Produziram mais que uma obra por ano e em anos seguidos, coisa que nunca tinham feito até então. Isto é lucro garantido, sem dúvida, mas pode entrar menos dinheiro, uma vez que apenas recebem por contrato e não por lucro da obra. Tal facto, levou certamente a empresa a jogar pelo seguro mas a receber cada vez menos, quando comparado com o obtido numa produção independente.
Em 2014 não tiveram nenhuma produção e alegaram que o mercado foi demasiado competitivo. Esta foi a razão total da queda. Se os lucros estavam a descer, e em 2014 não conseguiram obter nenhum contrato, o lucro cessou e foram iniciados os débitos numa bola de neve. Em 2015 obtiveram dois trabalhos, mas já foi tarde demais.
Porque razão a Manglobe, um estúdio cheio de criativos e de profissionais, não recebeu contratos?
Uma empresa para receber produções de anime em casa, tem que ter um habitat não só cheio de talento, mas também de mão de obra. Ora, a Manglobe tem talento para produção criativa independente, mas não tem a resposta necessária que várias obras sobre contrato têm como requisito. Isto, muito possivelmente, fez com que produtores se afastassem e procurassem casas mais poderosas.
O que poderia ter salvo a Manglobe?
Responder a esta questão é algo complicado, principalmente pela falta de informação que nos foi transmitida. Mas, apoiando-me em empresas e obras bem conhecida entre nós, vou-vos deixar com o meu devaneio. Como tal, no fim, convido-vos a partilhar o vosso, no caso de discordarem com a minha especulação.
A Manglobe, em primeiro lugar ,nunca deveria ter começado pela produção original. Deveria ter agarrado numa ou duas franquias com sucesso garantido, mostrar ao mundo as suas capacidades, obter vendas para os investidores maioritários e, deste modo, obter a liberdade de mercado para avançar com propriedades intelectuais. Em contrapartida, e tendo iniciado a sua carreira com obras originais, nunca as deveria ter abandonado. Olhando para as grandes potências que governam o mercado, como por exemplo: Production I.G., Madhouse, Bones, etc, criam as suas insanidades que, por vezes funcionam, por vezes não. Porém, nunca abandonam a “depravação” do trabalho contratual em massa.
Exemplo de um caso. Em 2014, a Bones lançou Noragami e Space Dandy. Noragami é financiado por uma carrada de empresas, no entanto, a Bones nem se encontra no comité de pré-produção. Usaram então isto para segurarem um lucro, corresse bem ou mal, e ao mesmo tempo produziram o seu pedaço criativo anual com Space Dandy, onde tiveram oportunidade de convidar vários animadores e realizadores experientes, para colocarem a sua abordagem em cada episódio.
Resumindo e concluindo, para evitar atingir o fundo do poço, as empresas devem seguir o exemplo das grandes potências, porque esta é a razão de sucesso das mesmas. Portanto, e para quem é artista entenderá o que afirmo, a solução passa por encontrar o equilíbrio entre a promiscuidade criativa e a produção independente, através dos ganhos fixos de um contrato obtido pela primeira.
Manglobe – Afinal o que aconteceu? | Previsões para o Futuro?
Abordar o futuro depois deste acontecimento dá-me duas vias. Por um lado o que vai acontecer com o recheio da Mangloble? Por outro, que impacto tem este infortúnio no resto da indústria? O meu nível de especulação já se encontrava em níveis consideráveis ao longo deste artigo. Todavia, para responder a estas duas questões, vejo-me obrigado a subir um pouco mais.
O que vai acontecer com o recheio da Mangloble?
Quando me refiro a recheio, refiro-me à mão de obra, e quando me refiro à mão de obra, refiro-me ao talento irrefutável que por ali se encontrava. Refiro-me aos pioneiros, aos visionários, aos criativos, enfim, uma cambada de artistas experientes que neste momento estão sem rumo. Olhando para os poucos casos que conheço, na melhor das hipóteses, a Manglobe abre casa nova com outro nome e faz um reboot. Aposta sangue suor e lágrimas, acrescenta uma pitada de sorte, e se correr bem, começam a pagar a dívida anterior enquanto fazem um novo nome. Ainda nestas linhas, existe a possibilidade de um estúdio/produtora olhar para o potencial perdido da Manglobe, saldar a dívida e albergá-los como filhos.
Uma outra hipótese, também não muito má, os trabalhadores que conseguirem vão trabalhar através das plataformas online que permitem o financiamento de fãs para fãs, como é o caso do Kickstarter. Esta demonstra já casos de sucesso no mundo da animação japonesa como por exemplo nas recentes produções: Little Witch Academia da Studio Trigger e Under the Dog da Mentat Studios LLC.
Que impacto tem este infortúnio no resto da indústria?
Esta é talvez a questão mais difícil de responder com clareza. Mercados são, por si só, imprevisíveis. Uma vez que falamos em época de crise financeira global, dentro de um nicho, o comportamento torna-se ainda mais difícil de prever.
Os problemas que decorrem e ocorrem nesta indústria são cada vez menos um segredo, e casos como o da Manglobe podem abanar muito negativamente o futuro de outras empresas. Pode propagar o medo do investimento de produtoras externas, acabando por direccionar os estúdios ao recurso exclusivo do auto-financiamento. Se este for o futuro, preparem-se para muitos fechos e para todas as consequências que estes acarretam.
Por outro lado, este pode ser uma razão para motivar aqueles que ainda se encontram neste mercado cada vez mais competitivo, levando-os também a aprender com este tipo de erros de gestão produtiva e financeira.
Claro que estas respostas cobrem apenas uma pequena percentagem, das hipóteses que eu considero mais prováveis. Independentemente de tudo isto se concretizar ou não, de ter realmente acontecido desta forma ou não, a verdade é uma: a indústria e o mercado estão a mudar. A Manglobe, infelizmente, é apenas um dos inícios desta mutação em forma de avalanche.
Não obstante, a Manglobe deixou para trás clássicos instantâneos que não serão apagados, nem pelo Senhor Tempo.
Por tudo isto, e muito mais que fica por dizer, MUITO OBRIGADO Manglobe, e até um dia!
Quais as vossas opiniões sobre este caso? Concordam com estas teorias?
Tens perguntas deste ou de outro género que gostavas de ver respondidas? Envia as tuas sugestões para: [email protected]