Danganronpa V3: Killing Harmony trata-se da terceira e até agora última entrada principal da famosa série de jogos Danganronpa. Lançado em 2017, o jogo foi desenvolvido pela Spike Chunsoft e realizado por Shun Sasaki, e pretendia concluir (por enquanto) a famosa série de mistério de um modo controverso, porém memorável, tanto para os fãs que adoraram como para aqueles que não tiveram uma opinião tão positiva.
Penso que entre os três jogos principais, este é aquele que tem o melhor grupo de personagens. Entre elas, há uma que é articularmente interessante e hoje venho aqui falar dela: Kokichi Ouma.
Caso não tenham jogado o Danganronpa V3 do início ao fim, aviso já que a análise vai conter spoilers. Leiam pela vossa própria conta e risco. E para os que vão ficar, aviso desde já que não vão entender a personagem ao ler isto. Afinal, todo o propósito dela é ser indecifrável. Eu vou analisar os elementos que tornam isso possível e porque é que é um conceito tão fascinante.
Ninguém compreende o Kokichi Oma
Introdução
Na primeira hora de jogo, enquanto o jogador vagueia pela escola à procura de cada um dos alunos para os conhecer, eventualmente vai entrar numa sala com um robô e uma criança com o cabelo roxo. O primeiro trata-se do Ultimate Robot, K1-B0 e o segundo trata-se do Ultimate Supreme Leader, bem como o foco desta análise, Kokichi Oma.
Aparentemente, Kokichi está a perseguir e a atormentar o robô com perguntas estranhas que o aborrecem. No entanto, não aparenta estar a fazê-lo por maldade, o que parece um pouco contraditório, tendo em conta que K1-B0 está claramente incomodado. Esta é a primeira de muitas contradições que envolvem Oma.
Ao abordá-lo, ele apresenta-se à personagem do jogador como o líder supremo de uma organização secreta, porém, ao falar um pouco mais sobre o seu talento, tudo soa inorgânico e acima de tudo suspeito. Será que Kokichi é mesmo aquilo que diz ser?
Logo neste pequeno segmento, o jogador fica a saber muita coisa que vai ser importante para a personagem. Em primeiro lugar, a contradição entre a situação do K1-B0 e a atitude do Kokichi perante a mesma torna difícil a compreensão das suas intenções. Isto pode parecer paranóico, devido ao quão pequeno o momento é. Porém, esta caraterística virá a ser reafirmada em todo o resto do jogo.
Em seguida, temos o talento dele. Como vocês sabem, todos os estudantes possuem um talento em particular. Porém, como já referi, aquele que é atribuído a Kokichi inicialmente é bastante duvidoso. Não só porque as poucas informações dadas acerca dele são vagas, mas também porque o próprio Kokichi contribui para a construção dessas dúvidas ao dizer coisas como “Na verdade, não sou… Estava a brincar, sou sim! Ou será que… Quem sabe…”. Ambos estes elementos geram uma grande curiosidade em saber mais sobre aquele estudante.
Por fim, temos a construção de carisma. Oma não se trata apenas de uma personagem complexa, ele também é bastante carismático. Danganronpa V3, por se aproximar de uma visual novel, está bastante limitado em termos de animações. No entanto, tudo que envolve elementos visuais foi pensado com grande cuidado, e esta personagem não é exceção.
O design dele não só é icónico, como também se conecta com aquilo que ele é. Por exemplo, o lenço que ele traz ao pescoço. O preto e o branco para representar a dualidade entre verdade e mentira, bem como o facto de ter um padrão de xadrez, simbólico tanto da natureza misteriosa e complexa da personagem como da sua inteligência.
Outro elemento visual que contribui bastante são os sprites. As expressões faciais de Kokichi distanciam-se bastante das outras personagens com cada situação, quase como se ele fosse um ser num plano diferente daqueles que o rodeiam. Já para não falar dos momentos chave, mais tarde no jogo, quando a cara dele se torna completamente… distorcida.
Colocando agora o visual de lado, os diálogos dele também não ficam atrás. Mesmo neles, ele é muito diferente das restantes personagens. Ainda na sua introdução, temos uma forma curiosamente infantil de abordar as situações bem como, já referi, deixar grande parte das informações sobre si mesmo extremamente vagas. E sim, ele está a fazer de propósito. Porquê? Mais tarde falo disso.
O peso nos casos começa
Todo o resto do primeiro capítulo continua a caraterizar Kokichi de acordo com tudo aquilo que descrevi anteriormente. Porém, há aqui algo importante a destacar: Kokichi expressa frequentemente o quanto aquele “jogo”, referindo-se à situação em que as personagens se encontram, é divertido.
A questão é: Ele realmente diverte-se? Ele está a mentir aos demais? Se sim, está a fazê-lo para os intimidar, para ajudar a descontrair, para mais tarde não se apegarem a ele? Ou será que está a mentir na mesma, mas a si próprio? Aqui temos uma das poucas perguntas que a meu ver terão resposta, mais adiante.
Ao resolver o mistério do segundo (caso não se lembrem, é o da Kirumi), o jogador depara-se com algo muito interessante. Para refrescar a memória, a motivação que Monokuma dá neste caso são uns tablets com os passados das personagens. Kokichi não só rouba os de quase toda a gente, como os reúne no laboratório do Gonta para verem em conjunto.
Isto é um momento muito intrigante, uma vez que não sabemos se ele fez isto para que o assassino tivesse oportunidade, se simplesmente ele queria melhorar os laços de todos vendo os seus passados em conjunto, se simplesmente tinha prazer em vê-los sofrer… Claro, no momento parece ser um ato inocente, mas após ver o que Kokichi é capaz de fazer nos capítulos seguintes, questiono-me. Acaba por ser só mais uma coisa que não sabemos ao certo.
Além disto, temos o início da relação de Kokichi com Gonta. Desde cedo sabemos que Gonta é gentil, inocente e… Não é propriamente a pessoa mais inteligente que ali está. Oma rapidamente torna-se amigo dele, ou o que aparenta ser uma amizade, neste capítulo. Os dois aparentam dar-se bem apesar das mentiras do “líder supremo”. No entanto, até o Gonta morrer, não entendemos aquilo que Kokichi quer realmente, como de costume. Já falo disso mais à frente.
Por falar no Gonta, no início deste capítulo é encontrada pelo mesmo uma pedra na qual se encontram cravadas letras. É algo que não faz sentido nenhum, diz “horse b”… Não faz, por enquanto. Vão surgindo mais letras de capítulo para capítulo, mas eu voltarei a abordar isto no momento certo.
Também é neste capítulo que se inicia o ódio de Maki por Kokichi. Tendo em conta a sua maneira de ser, é natural que o nosso mentiroso vá fazer alguns inimigos… A Maki foi só a primeira.
É digno de nota o facto de que sempre que se tem a certeza de que o Kokichi está a dizer a verdade ou a mentir, é em cenas de grande impacto, como esta. O que também é parte da razão para a fúria dela ter despertado: Ele está sempre a mentir, mas resolveu dizer a verdade só para revelar a todos o verdadeiro talento dela.
Porque é que ele haveria de fazer isto? Que razões tem ele? Ele claramente sabia que os restantes alunos iriam ter “preconceito” com a assassina após saberem dessa informação. Então, será que ele lhe queria dificultar a vida?
No entanto, eventualmente os outros acabaram por aceitar o passado dela. Ou seja, o plano de Kokichi virou-se contra ele. Ou… Será que ele também planeou isso? A situação dos tablets, que aconteceu anteriormente neste caítulo, tem uma natureza semelhante. Tanto quanto sabemos, ele pode querer que sejam todos amigos ou simplesmente gosta de ver o mundo a pegar fogo.
O começo do fascinio por Shuichi
Como vocês provavelmente já sabem, uma vez que estão a ler até aqui, após Kaede ser executada no primeiro capítulo, o jogador passa a controlar Shuichi Saihara. No capítulo 3, começam a ser plantadas as sementes daquilo que viria a ser, não surpreendentemente, um grande interesse que Kokichi nutre pelo protagonista. Afinal de contas, como detetive, Shuichi procura desvendar a verdade acima de tudo. Essa é a sua prioridade máxima.
Não sabemos ao certo se isto revolta Kokichi, se ele tem inveja ou se simplesmente o fascina. O que sabemos é que independentemente do que ele sente, ele vai tentar provar que esta verdade, o ideal ligado a querer expor os factos, pode estar incorreto.
Ainda no capítulo 3, um dos seus pontos altos é marcado por uma piada com uma pitada de meta comentário cujo responsável foi Kokichi. Durante a investigação do caso em questão, surge o corpo de Kokichi no chão, revelado com o típico filtro e efeitos sonoros de quando se encontra um cadáver na série. No entanto… Kokichi encontrava-se vivo.
Voltando ao tal “fascínio” por Shuichi, temos o desenvolvimento desse sentimento no capítulo seguinte. Apesar do jogador só vir a entender isto no fim do quarto capítulo, Kokichi está determinado a provar ao protagonista que tentar revelar a verdade pode ser um problema. E é exatamente isso que ele vai tentar fazer nos capítulos 4 e 5.
O Gonta não fez nada de errado
Chegou a hora… capítulo 4. Como a maioria dos leitores já devem saber, é neste capítulo que Gonta se junta a Kokichi para explorarem o “mundo virtual” introduzido por Miu Iruma. Eles os dois encontram uma flashback light e o seu conteúdo… não é revelado por enquanto.
Tudo o que se sabia, no momento, é que tratava-se de uma revelação de tal ordem chocante que levou Gonta, a personagem mais inocente do cast, a concluir que morte seria um destino menos cruel do que escapar daquela escola. Somando isso ao facto de que Kokichi apercebeu-se previamente de que Miu apenas introduziu aquele mundo para poder assassiná-lo, ele criou um plano para ser Gonta a matar a inventora e ninguém descobrir.
Nos momentos finais do trial, Kokichi finalmente deixa a sua máscara cair. Ao ver Gonta, aquele que menos merecia toda aquela situação, em prantos antes da sua inevitável execução, Kokichi chora juntamente com o entomologista, revelando que na verdade nem mesmo ele conseguia divertir-se com aquele “jogo”. Após isto, Gokuhara é executado. E então…
Kokichi subverte as espectativas uma vez mais, reafirmando a sua capacidade de manter o jogador na ponta da cadeira. Quando todos esperavam que aquela fosse finalmente a sua verdadeira faceta, ele deixa sair o ser maquiavélico que verdadeiramente é.
E foi assim que… Kokichi conseguiu provar o que queria. “Era esta a verdade que tanto procuravam?” aplica-se que nem uma luva. Isto devido à “verdadeira” faceta dele, mas acima disso, ao facto de que ninguém queria realmente acreditar que o Gonta era o culpado. E o pior é que ele reafirmará esta questão, com o dobro da força, no capítulo seguinte.
Infelizmente, Gonta já não se encontra presente para ler a nova “mensagem na pedra”, que referi anteriormente. Mas ela é mostrada ao jogador neste momento também. A frase está finalmente completa, e é a seguinte.
“This world is mine”, Kokichi Oma
Na verdade, novamente, esta é apenas a versão de Kokichi que ele quer que o jogador acredite que ele realmente é. No momento, funciona. Aliás, a reação das restantes personagens é um excelente suporte a este recurso. Mas como já sabemos, é uma estratégia.
Não se sabe exatamente porquê, uma vez que os fins de Kokichi não serão claros, nos seus últimos momentos. Porém, uma coisa é certa: Ele quer que todos os que lhe rodeiam pensem que ele é outra pessoa, além de tentar fazer com que não lhe sejam próximos.
Anteriormente, referi como ele fornece informações muito vagas. Essa caraterística, tanto como esta nova “faceta” de que falei, trabalham juntas para esse mesmo objetivo: Oma não parece querer que os restantes colegas simpatizem com ele. E mais importante, ele quer ser uma mentira na sua essência. A pergunta que nunca quer calar é “porquê?” Vamos finalmente analisar isso, graças ao quinto e mais importante capítulo no que diz respeito a esta personagem.
Para bem ou para mal, Kokichi formulou um plano extremamente sólido para acabar com aquele “jogo”. Não irei descrever todos os detalhes aqui, mas há elementos importantes a destacar: Nem sequer se sabe quem foi assassinado.
Na verdade, Kokichi e Kaito, que se odeiam, estiveram trancados um com o outro. Um corpo surgiu, mas completamente desfigurado. E o outro, desapareceu. Era impossível saber quem era. E ao contrário de Goodbye Despair, no qual o Monokuma era omnisciente, nem o próprio sabia a resposta desta vez. O que deixa a resolução nas mãos de apenas uma pessoa: Shuichi. Mas antes disso, porque é que as duas possíveis vítimas se odeiam?
Kaito tornou-se na pessoa mais próxima a Shuichi após a morte de Kaede, e devido à sua natureza, apoia-o na sua incansável procura pela verdade. Já Kokichi, acha mais interessante desafiar o Ultimate Detective a questionar-se sobre essa prática, e se o oposto também é válido.
Esta questão sozinha seria suficiente para fazer com que o astronauta criasse um certo desgosto por Oma, mas os seus pontos de vista distanciam-se tanto, que o “líder supremo” faz com que Momota e Saihara tenham um desentendimento, ao provar que os seus ideais são fracos no capítulo 4. Por outras palavras: Eles têm as suas razões.
Enfim, o trial eventualmente acontece. Temos uma construção de tensão interessantíssima com o recurso do mecha. O sobrevivente está ali presente, mas devido à alteração de voz, é difícil decifrar qual dos dois é até ao fim. Como já sabemos, é o Kaito, e isto é importante mencionar pelo seguinte: Num dado momento, Shuichi apercebe-se de todo o plano de Kokichi. Porém, se ele o revelasse, estaria tudo arruinado.
O Monokuma saberia o culpado e a tortura deles não teria fim. Dentro do mecha, Kaito fica a dar “dicas” ao protagonista, para que ele pare. Eventualmente apercebe-se disto, mas… Já é tarde demais. Mesmo sem estar presente, Kokichi tem uma presença avassaladora. Mesmo estando morto, comprova a sua verdade uma vez mais: Há coisas que são melhores sendo uma mentira. Aquela era uma delas. Por Shuichi querer procurar a verdade, a ruína deles foi provocada.
Era essa a intenção de Kokichi, novamente? Quem sabe. Só é certo que ele volta a fazê-lo.
Antes de partir, Kaito entrega às personagens (e ao jogador) um último “soco no estômago” acerca de Kokichi. Antes de se sacrificar pelo plano, Kokichi chorou. Falou do quanto odiava fingir que se divertia.
Juntamente com o momento em que resolve salvar a vida de Kaito com o antídoto… Eu aqui vou dar a minha opinião e dizer que acredito completamente que ele esteja a dizer a verdade. Nos últimos momentos dele… A personificação da mentira abre-se perante alguém que se opõe totalmente a ele. Para assim realizar o seu último plano.
No entanto, apesar de eu acreditar que nesse segmento ele foi verdadeiro, isso ainda não põe em causa a incógnita imensa sobre as intenções do plano. Esta é, a meu ver, a dúvida mais interessante que todos os atos de Kokichi Oma geraram. Afinal, ele engendrou este plano para salvar toda a gente e fingir só querer deser superior ao mastermind e derrubá-lo, para que ninguém se preocupasse… Ou será que na verdade é ao contrário, e só usou a ideia de salvar a vida de todos como farsa para tentar satisfazer o seu desejo egoísta?
Nunca vamos saber. E é isto que faz de Kokichi tão especial.
Passado e … horse b?
Em todos os Danganronpa, é no sexto capítulo que se resovem os mistérios principais. Kokichi já não se encontra vivo, no entanto, há dois momentos de destaque relacionados a ele. Acontece algo interessante aqui: Um código do qual o jogador precisa é revelado por Kokichi.
A mensagem que terminou em “This world is mine.”, na verdade, pretendia ajudar os restantes. Porém, como ele achava que tinha que manter a sua farsa, nem sequer se falou nisso. Este é um momento muito especial, pois conecta-se diretamente com o jogador. É quem está do outro lado do ecrã que deve concluir que “horse b” era uma pista.
Por fim, temos o passado de Kokichi… Essencialmente, é verdade que ele era líder de uma organização secreta. Porém, tratava-se mais de um grupo pequeno de amigos do que uma empresa grande ou algo do tipo. E os crimes que faziam eram relativamente pequenos. Isto ajudaria a responder a muitas perguntas… Se não fosse pela natureza do final do V3.
Devido a todas as personagens serem uma “farsa” no que toca ao seu passado, Kokichi não é excessão. Com isto, temos a última informação relevante sobre Oma… E ela não responde a nada. O jogo acabou, e continuamos a saber pouco sobre ele… E isso é incrível, pois mesmo sabendo isto, não deixamos de estar investidos na jornada toda.
Já que falei da “natureza do jogo”, vou agora para a última parte da análise.
Conexão com a natureza do jogo
Kokichi Oma trata-se de uma personagem que apesar de excelente, não funcionaria tão bem noutra obra. Por se encontrar em Danganronpa V3, está intrinsecamente ligado tanto aos temas quanto à própria gameplay.
O tema principal desta obra é verdade e mentira. Tal como Junko, Nagito e até Naegi eram a personificação de desespero e esperança, Kokichi é a própria mentira. Na verdade, ele assume um papel semelhante ao de Nagito, afetando constantemente os casos. Kokichi é o Killing Harmony, praticamente.
Além disto, há um elemento da gameplay em particular que representa muito bem aquilo que Kokichi é. Sim, estou a falar das lie bullets. Isto faz com que Kokichi esteja em sintonia não só com a narrativa e os temas, mas também com a gameplay.
Conclusão
Tal como referi no início, esta análise serviu para pensar sobre o que faz de Kokichi interessante, e não explicá-lo, pois penso que isso estragaria o propósito inteiro da personagem, uma vez que é algo muito pessoal.
A minha opinião ficou um pouco mais secundária, mas como provavelmente deu para entender, acho Oma uma personagem absolutamente fantástica. Ele tem o jogador sempre na palma da mão e é impossível evitar tentar decifrar as suas verdadeiras intenções.
Este é Kokichi Oma. Uma personagem sobre a qual adoro falar, mesmo sabendo pouco sobre ele.
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