Todo o artista procura a sua inspiração, algo que surge dentro de si e que o motiva a desenhar, pintar, a fazer arte. É uma viagem até ao êxtase artístico, até à arte final pura, perfeita, imaculada. Em “Panorama do Inferno”, de Hideshi Hino, é uma viagem lenta, tortuosa até à insanidade, com muito gore à mistura.
Sigmund Freud que, nos seus estudos, localizou a inspiração na psique do artista, dizia que esta vinha de conflitos psicológicos não resolvidos ou então de traumas de infância, e que via os artistas como seres fundamentalmente feridos – Imagem cristalina da personagem principal do manga, um artista que usa o seu próprio passado perturbado e assombrado e, fisicamente, o sangue para pintar estes quadros…. vindos do Inferno.
O nome Hideshi Hino não é estranho no cinema, sendo ele realizador da série “Guinea Pig” e argumentista dos filmes “The Boy from Hell” e “Occult Detective Club: The Doll Cemetery”, filmes trash de terror. Talvez o filme “Guinea Pig 2: Flowers of Flesh and Blood” vos seja familiar devido à lenda urbana de o ator Charlie Sheen ter pensado que este seria um filme com conteúdo snuff (filmes que depictam assassinatos reais, a acontecerem em tempo real) e denunciou Hideshi ao FBI.
Tanto da carreira de cinema como de manga eu nada conhecia. Este foi o primeiro contacto que tive da obra dele.
Essencialmente, “Panorama do Inferno” gira em torno de um pintor e da sua família. Este “fala” com o leitor e explica as várias fontes de inspiração que usa e conta a sua história de vida. Ele fala abertamente com o público, explicando que cria pinturas do inferno e que está correntemente a trabalhar no seu maior projeto até à data, “a obra da sua vida”, chamada “O Panorama do Inferno”, que apresentará uma técnica revolucionária e retratará o “fim do mundo, o inferno apocalíptico”. O protagonista passa a maior parte da narrativa a exibir em detalhe os diversos panoramas que pintou até à data, como por exemplo “A Guilhotina”, “Pensão do Inferno”, “Três Gerações de Tatuagens”, etc. É através das pinturas que se obtém uma noção da sua personalidade e do seu passado.
O fator-choque é logo exposto no primeiro capítulo: o pintor queda-se num quarto escuro e isolado onde pinta os seus panoramas com “a cor mais bela do mundo”: o vermelho do sangue. Como é que encontra o vermelho do sangue? Com sangue, o seu sangue: ele corta-se, bebe ácido clorídrico e vomita sangue. Os painéis descrevem estas ações num grafismo bastante estilizado, olhos esbugalhados, sem grande trabalho de mancha, quase infantil. Ao longo dos arcos, a violência, a depravação e a loucura é imensa, e parece que não para. A certa altura o protagonista professa “O brilho de cadáveres frescos a arder é maravilhoso!”: isto é algo que claramente o excita e o fascina e também ao mangaka, pois este decidiu desenhar todas estas representações.
Todo este horror tem com certeza algum fundamento, e o primeiro lugar de pesquisa é o backstory do escritor, a sua infância. Hideshi Hino nasceu em 1946, numa região histórica a leste da Ásia, chamada Manchúria, que atualmente é o nordeste da China. Portanto, a família de Hideshi testemunhou a invasão da Manchúria e sofreu com a retaliação dos chineses aos japoneses. Regressaram ao Japão numa viagem bastante atribulada e penosa. É fácil de entender de onde vieram as suas obsessões: uma infância alienada, miserável, passada na guerra, deixa marcas profundas e Hino desenvolveu desde criança um sentido muito agudo para as coisas horríficas que a vida traz.
Todos estes traumas do pós II Grande Guerra e trans-geracionais estão bastante decalcados em pequenos detalhes ao longo da obra. Talvez sejam estas as razões pela quais o protagonista fala: “Sim, eu vi o Inferno quando ainda estava na barriga da minha mãe!” e o mesmo nasce com coágulos de sangue, a sorrir para o quase nada que resta do mundo. Neste painel, a avó do protagonista ainda grita: “Não podemos permitir que esta criança cresça!”. O protagonista enquanto bebé é grotesco, assustador, tem uma sombra a pairar sobre a sua cabeça: é símbolo dos ciclos de violência, dos pecados que são passados de geração em geração, da morbidez, da guerra. E o facto de a avó ter dito tal coisa poderá simbolizar as próprias incertezas, heresias e medos do escritor em ser trazido para este mundo.
Antes de concluir esta crítica, um pouquinho sobre a história da editora Sendai: criada em 2020, o seu objetivo é dedicar-se à publicação de mangás, ou seja, novelas gráficas e bandas desenhadas vindas do Japão, traduzidas para o português.
Quase um ano depois da sua fundação, em junho de 2021, lança a sua primeira obra “Panorama do Inferno” (地獄変 / Jigokuhen), de Hideshi Hino, um manga de terror originalmente publicado em 1982.
Informações Técnicas:
Volume único
Formato: 13×20,5 cm
Número de páginas: 208
Preço: 9,90€
Capa: Brochado
Tradução: Cassiano Soares
Revisão da tradução: Alexandra Costa Ferreira
Revisão: Andreia Lopes
Capa: Jessica Wano
Legendas: Jessica Wano
Edição: Cassiano Soares
ISBN: 9789895493401
Depósito legal: 484559/21
Lançamento: Junho de 2021
Sobre o autor:
Hideshi Hino, realizador, argumentista e autor de mangás, nasceu a 19 de abril de 1946, em Tsitsihar, na Manchúria. O seu pai era funcionário da ferrovia e por isso a família permaneceu na região por vários meses após o final da II Guerra.
Em 1967, Hideshi Hino estreia-se na revista COM, com uma história de comédia de samurais chamada “Suor Frio”. Em 1968 lança, na famosa revista Garo, “Boneco de Barro“, uma história de suspense e começa então a trilhar o caminho das histórias de terror.
Mais obras do autor:
As principais obras de Hideshi Hino são: “A Estranha Doença de Zôroku”, “A Serpente Vermelha”, “O Garoto Verme” e “Panorama do Inferno”. Os seus mangas já foram reeditados várias vezes e publicados em diversos países.
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Análises
Panorama do Inferno - O Panorama de uma Vida
Todo o artista procura a sua inspiração, algo que surge dentro de si e que o motiva a desenhar, pintar, a fazer arte. É uma viagem até ao êxtase artístico, até à arte final pura, perfeita, imaculada. Em “Panorama do Inferno”, de Hideshi Hino, é uma viagem lenta, tortuosa até à insanidade, com muito gore à mistura.
Os Pros
- Referências históricas sobre o período da II Guerra Mundial
- Contém elementos autobiográficos do autor, o que é sempre aliciante
- Bom historial sobre a obsessão e os seus efeitos
- O arco final é interessante
Os Contras
- Narrativa pobre
- Nunca se chega a ver os quadros de que o pintor fala
- Algum do gore é forçado