Qual o interesse de ver um filme com um porco como protagonista? Se não tivesse chegado à resposta: “porque Hayao Miyazaki é o seu realizador”, provavelmente nunca o teria visto. O que desde logo sugere uma nova dúvida: ou assisti a esta longa-metragem por ser uma pessoa influenciável pela fama (reputação e publicidade das produções), ou tenho por hábito seguir trabalhos de pessoas cujo mérito, enquanto espectador, reconheço. Ainda que possa ser um pouco das duas, acredito que a segunda hipótese tem mais peso. E esta parece-me ir de encontro a uma das mensagens deste filme. Vamo-nos situar.
Este filme, de nome original “Kurenai no Buta”, e cuja estreia aconteceu há quase 30 anos, retrata um cenário pós-primeira Guerra Mundial. O protagonista é um porco piloto que em tempos pertenceu à Força Aérea Italiana e agora passa os dias a combater os “Piratas do Céu”. Porco Rosso, como é mais conhecido, vive isolado numa ilha, mas não dispensa uma visita ao Hotel Adriano, onde encontra a sua grande amiga, Gina, os seus adversários, entre outros indivíduos. Todos são humanos, excepção feita a Rosso, outrora conhecido por Marco Pagot.
À medida que vai avançando, esta obra abre mil e uma possibilidades de interpretação para os diversos acontecimentos e mensagens neles imbuídas. Uma “falta de clareza” que, suspeito eu, é um factor determinante para o sucesso do filme. Deste modo, o espectador vê-se “forçado” a tirar as suas próprias conclusões. Mais tarde, quando as transmite a outros fãs, elas dão lugar a debates que, além de animados, se arrastam, por vezes, ad aeternum.
De alguma forma, é isso que vou fazer aqui. Ou seja, usar este espaço para partilhar o meu ponto de vista sobre os conteúdos subjectivos de Porco Rosso. E agora mais em jeito de resumo do que de sinopse, esta é a história de um porco que conquista (com todo o mérito) o seu espaço no céu e na terra, entre aqueles que o rodeiam. Mas é um porco! Aquele animal que, à primeira vista – e ao contrário do que pode acontecer com um cão ou um gato – não nos atrai. Nem pela sua estética, nem por evidenciar comportamentos que revelem esperteza, fidelidade ou astúcia. Todavia, de forma surpreendente, este porco tem poses com muito estilo e frases que deixam qualquer um desarmado. Entre as quais: “Antes um porco que um fascista”. Aos poucos e poucos, e ao contrário de tudo o que era expectável, este porco conquista a admiração dos espectadores. Como resultado, para este lado do ecrã, trespassa uma mensagem de esperança: somos (pelo menos) capazes de abrir pequenas brechas de possibilidades naquilo que julgamos serem as nossas impossibilidades.
E seguindo esta toada, identifico mais dois exemplos dignos de menção. A paixão da bela Gina pelo feio Porco (mais uma interpretação subjectiva); E, a completar esta lista de quebra de estereótipos e influências culturais, tudo o que se passa na fábrica (dos Piccolo) em Itália, onde Porco se desloca para reconstruir o seu avião. Além da diversidade de trabalhadores (há desde noviços a envelhecidos), algo semelhante se verifica nas responsabilidades atribuídas a cada elemento. De realçar a grande responsável pela reconstrução com sucesso do avião de Porco: Fio Piccolo. Uma mulher jovem de 17 anos, em relação à qual o próprio Porco demonstra, numa primeira fase, cepticismo no que toca às suas capacidades para o trabalho em mãos. Uma descrença que, ao cair por terra, deriva para uma grande amizade (quase sempre por iniciativa de Fio).
Já a segunda mensagem que retirei da obra pode ter sido influenciada pelo cenário actual da invasão da Rússia à Ucrânia. Quem sabe se, para lá da influência de Miyazaki, não me decidi a ver a longa-metragem este ano por causa disso?! Recordo que esta produção se passa pouco depois da Primeira Guerra Mundial, sendo notório que esse clima de Guerra ainda está longe de se desvanecer do ar, como o próprio enredo do filme recorda com regularidade. Ora, eu não sei qual o verdadeiro intuito do realizador ao colocar um Porco como personagem principal e rodeá-la de humanos. A sua própria transformação em porco é um mistério que nunca fica totalmente esclarecido. Porém, aos meus olhos, este cenário de guerrilha que coloca um porco de um lado e do outro o Ser Humano, surge como uma crítica ao pior que a nossa espécie tem e que, mais uma vez, por esta altura, se tem comprovado diariamente.
Apresentadas as minhas ilações de Porco Rosso, é caso para dizer que cada obra toca cada espectador de forma muito particular, em relação a todos os outros. Contudo, para além disso, esse entendimento do que acabamos de ver também depende da altura da nossa vida em que a vemos, e das circunstâncias e estado de espírito que nos envolvem nesses momentos. A par das duas interpretações pessoais que aqui partilhei sobre Porco Rosso, quero reforçar o meu fascínio por esta subtiliza nas mensagens que, como já mencionei, para mim caracterizam uma grande obra. Neste caso, a maneira subtil e natural com que Fio, com apenas 17 anos, rivaliza pelo lugar de protagonista do filme, ao mostrar-se capaz e responsável de reconstruir o avião de Porco. Confesso ser mais adepto disto do que daquelas produções “hollywoodescas” que gritam por uma mensagem sobre determinado assunto, apenas porque na altura está a ser badalado. Até dou por mim a pensar: Na perspectiva das crianças, não é neste estilo “Porco Rosso” que faz sentido apresentar-lhes as coisas? Sem que nada lhes seja dito explicitamente sobre o assunto? E quem diz as crianças, diz os adultos. Quando se “berra”, não há inclusive o risco de se perder o essencial sob o ruído da gritaria? Que por sua vez nos obriga a olhar para o nosso consciente (entenda-se: pensar duas vezes antes de falar) para dizer algo sobre este tipo de assuntos fracturantes? Talvez essa abordagem não seja a mais eficiente. Quando é subtil, a mensagem parece melhor assimilada (porque há espaço para a reflexão) e a reacção virá directamente (sem filtro) do inconsciente. Isso constitui um outro problema? É uma boa questão. Mas, pelo menos, pensamos mais pela nossa cabeça.
Trailer Porco Rosso