Há uns meses atrás uma polémica rompeu as redes sociais: a censura da cena em que Haruka e Usagi se beijam, bem como dois outros episódios onde se aborda a identidade de género da Haruka.
Os cortes motivaram uma série de queixas à Entidade Reguladora Para a Comunicação Social (ERC), uma das quais apresentada pela Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG), o organismo responsável pela promoção e defesa desses princípios. Estas queixas foram recebidas entre 14 e 19 de dezembro de 2016. Surge agora a deliberação da entidade Reguladora da Comunicação Social: o arquivar do processo.
Como justificação temos:
É forçoso reconhecer que as temáticas da homossexualidade e do transgénero ainda não são, no
contexto social atual, inteiramente aceites por toda a sociedade portuguesa, originando controvérsia. Pode admitir-se, até, que sejam de uma apreensão mais complexa para as crianças.
Para os interessados em ler o despacho na sua integra poderão fazê-lo AQUI.
Depois de ler este despacho, ao qual ressalvo este excerto, uma onda de irritabilidade e impotência fizeram-me, uma vez mais, questionar a sensatez humana.
Sailor Moon – A ironia da Censura em Portugal
Admito, estes temas mexem comigo. Já manifestei publicamente a minha opinião numa outra censura, dessa vez ao Shin-chan, mas no caso da Sailor Moon irei mais longe, tal como esta deliberação o foi ao compactuar com uma censura injustificada nos tempos que correm.
Recordo-vos que Sailor Moon é uma das franquias que povoaram as televisões na década de 90 e das quais guardo doces recordações de infância. Uma obra cuja a abertura extraordinária à sexualidade e à identidade de género levaram a que muitos de nós conseguíssemos, sem malícia, encarar o amor e a amizade como relações sem género onde o sentimento é o mais importante.
Por ventura temos aqui uma série de “adultos” que acreditam que amor TEM normas, TEM malícia, TEM regras restritas ditadas por alguém algures dos séculos passados e que convém manter. Involução?
Vamos lá desconstruir a dita justificação…
Mas vamos desconstruir este emérito excerto de uma profunda ignorância, só para ver se compreendemos a não lógica por detrás destas palavras.
Então, “as temáticas da homossexualidade e do transgénero ainda não são, no contexto social actual, inteiramente aceites por toda a sociedade portuguesa, originando controvérsia”, em outras palavras: a maioria da sociedade é retrógrada, homofóbica e ignorante e, como tal, em vez de tentarmos criar formas da instruir, vamos manter tudo como está.
Longe de nós querer ferir susceptibilidades aos pais e obrigá-los a explicar aos filhos a definição de género, identidade sexual e homossexualidade! É que só falta afirmar que educar é um papel dos pais, que blasfémia!
Depois vamos para aquela cerejinha no topo do bolo:
“que sejam de uma apreensão mais complexa para as crianças”.
Ingenuidade é diferente de ignorância, e em caso algum devem ser categorizadas como sinónimos sob o risco de criar uma falácia com consequências graves. Uma delas a educação para a discriminação.
Não vou negar que são temas de difícil introdução dentro do seio familiar muito por causa do choque geracional existente entre pais e avós. Para piorar, a gestão de informação entre o referido seio familiar, escola e pares é quase impossível de ser feita pelos encarregados de educação, por muito cuidadosos e assertivos que sejam.
Como tal, é compreensível que seja uma tarefa árdua explicar temas que são de facto – e infelizmente – ainda fraturantes na sociedade.
Todavia, mesmo sendo os temas homossexualidade e identidade de género difíceis de explicar no contexto atual por qualquer família, isso não serve de justificação para não serem falados. E mais importante de tudo, não cabe aos media filtrar esses temas que em nada são ofensivos ou inadequados a determinada idade.
O papel dos Media no Desenvolvimento das crianças – Um contexto mais científico
Numa perspectiva mais científica, segundo Bronfenbrenner (psicólogo que formulou a teoria de desenvolvimento humano, publicada no final da década de 70), é dentro do microssistema da criança onde encontramos a família, a escola e os pares. Sendo este o ambiente mais próximo da criança é, por excelência o de maior impacto.
Todavia, o exossistema (ambiente mais “afastado” da criança) não é inócuo no desenvolvimento da criança. Como tal, ações como esta possuem repercussões na forma como o SEU público vai ver o mundo que o rodeia.
Posto isto, não acredito que a televisão deva ter uma atitude tão invasiva dentro do que deve ou não ser transmitido quando falamos de temas sociais fraturantes. Esta escolha do Canal Biggs leva, a meu ver, a uma tomada de posição social que nada beneficia o canal e o público-alvo.
A ironia dos Morangos com Açúcar
Houve um outro excerto que causou em mim uma gargalha de profunda ironia:
No caso em apreço, não se está perante um incitamento ao ódio gerado pelo sexo e pela orientação sexual, mas a um silenciamento das temáticas homossexuais e transgénero de um programa infantil por alegadamente terem sido consideradas desadequadas ao público jovem.
Tal preocupação até é legítima, dado que se está perante um assunto fraturante na sociedade portuguesa, mas que acaba por perder relevância quando se analisa a série no seu conjunto.
Com que então os temas de homossexualidade e transgénero são inadequados para um programa infantil… Mas Morangos com Açúcar já é considerado um programa adequado ao público jovem?
O Panda Biggs é livre de transmitir o que quiser, facto. Contudo a partir do momento que decide censurar/cortar algo alegadamente porque cria desconforto ao seu público-alvo, deveria ser consistente para o seu “suposto” público-alvo.
Senhores do Panda Biggs, se são tão pudicos ao ponto de censurar um beijo entre mulheres, porque transmitem no vosso canal uma série “live action” que aborda:
- sexo de forma próxima do explícita;
- violação;
- drogas;
- todo o tipo de relações amorosas;
- bullying;
- crime;
- e dramas muito pouco adequados a menores de 13 anos?
Como fruto da geração de 90, além de ter assistido à Sailor Moon, assisti também aos Morangos com Açúcar. Adorava os dois! Longe de mim “culpar” os Morangos com Açúcar pelo que quer que seja ou exigir a sua não transmissão.
O que me irrita, e censuro, é esta tentativa injusta e claramente vã de perpetuar uma ignorância à qual apelidam de “pureza” infantil.
Em vez de adequarem de facto os conteúdos de forma homogénea, procuram audiências fáceis e adaptam os que mais poderão resultar em queixas. Ou seja, os Morangos com Açúcar por terem pessoas a atuar já podem alegar que as crianças não vão querer assistir, ou pelo menos não serão o público-alvo, e por ser anime já é para crianças.
Panda Biggs, deixem-me elucidar-vos um pouco sobre a obra Sailor Moon: esta trata-se de um romance para jovens por volta da faixa dos 13, não é nem nunca foi uma série categorizada para crianças segundo o seu país de origem. Contudo, assumirem que a característica que faz com que ela não seja adequada a crianças seja a homossexualidade é por si só um acto de homofobia e discriminação hediondo! E que nos dias de hoje não pode existir!
Porque censura não é discriminação! – Então é o quê?
… verificando que não resulta da situação em apreço algum apelo à discriminação em razão da orientação sexual, ou alguma uma forma de veicular má informação para o público telespetador, no caso concreto constituído designadamente por crianças e adolescentes, o Conselho Regulador determina que o procedimento seja arquivado.
Enquanto filha da gloriosa década de 90 em que a censura televisiva na programação infantil era reduzida e as margens para diferentes interpretações existiam, sinto-me a definhar com este tipo de “deliberações”. Custa-me genuinamente a crer que numa era em que o contacto com a informação médica é tão generalizada quanto acessível, exista ainda uma tentativa de perpetuação e aceitação de atitudes que há muito deveriam ser julgadas.
Porque sim, isto é discriminação. Este tipo de censura vai contra as mesmas leis que este artigo tem a coragem de invocar (artigo 13.º, princípio da igualdade), e alegar que não está relacionado. Que o “apagar” a igualdade não vai contra a igualdade.
Onde é que o ato de cortar deliberadamente um simples beijo homossexual, sem qualquer pretexto sexual, não é censura? Estamos a falar de cenas sem conteúdo sexual, numa das poucas séries transmitidas em programação infantil que prima pela liberdade de expressão, amor próprio e aborda o amor de forma livre e desmistificada.
Posto isto, sim, estão a “veicular má informação para o público”. Estão a apagar o direito que estes mesmos jovens e crianças têm de ser corretamente informados.
Em suma, é triste perceber que os mesmos taboos de há 30 anos atrás não só se perpetuam, como são defendidos pelo organismo que historicamente é motor de evolução. Os media têm a obrigação de lutarem pela liberdade de expressão e não suprimi-la. Têm a responsabilidade de promover o livre arbítrio da seleção de programas televisivos a assistir e, mais que tudo isso, temas a discutir dentro do agregado familiar e NUNCA de forma alguma servir de filtro de temas como homossexualidade e liberdade de género.
Uma opinião mais pessoal…
Deixa-me imensamente impotente e com uma sensação de exasperação difícil de conter. Não sou psicóloga, mas enquanto da área médica consigo ter alguma formação geral (mesmo que reduzida na área) que me permite garantir-vos que não será o facto das crianças verem comportamentos homossexuais que os fará tornar uns.
A orientação sexual é genética não uma escolha educacional. Em boa verdade, muitos dos comportamentos violentos, depressivos ou desruptivos advém de formatações retrogradas de elevada censura e pressão social e não porque viram algo violento em animação.
Claro que há extremos e cada caso deve ser tratado de forma individual, contudo não é ao criarem uma bolha que fará com que o mundo seja “perfeito” como essa gente idealiza.
Sim, porque “perfeição” é uma palavra por si só de uma relatividade perigosa. No MEU mundo ideal, pessoas não normativas não são tratadas com discreminação, não existe sequer esse conceito. Não temos que dizer a nossa orientação sexual como se isso defini-se a nossa pessoa.
No meu mundo ideal não há problema algum em duas mulheres se beijarem, ou uma delas ser andrógena, ou haver uma mulher a gostar de carros, desporto e a se vestir como um homem. No meu mundo ideal não há uma Sailor Moon com censura.
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