Shelter – Uma jornada de desrespeito e ignorância
Mais um ano, mais uma cerimónia dos Oscars passou-nos de lado. Seguiu-se então o anual fallout de think pieces acerca da cerimónia e o seu valor e impacto cultural. Ano passado foi a controvérsia do racismo e falta de representatividade. Este ano, discute-se a reação a esta controvérsia e a sua inserção no atual clima político norte-americano. Ou então observa-se que foi uma cerimónia profundamente entediante com a notável exceção de uma ”surpresa” de última hora. Esta vai, ironicamente, cimentar esta iteração da cerimónia na memória de anos vindouros.
Mas o que é que isto tem a ver com as temáticas trabalhadas neste site? Todos os anos existem sempre detratores, com mais ou menos razão, da escolha dos nomeados. Uma preocupação justificada visto que estas distinções representam o melhor e mais excelente na 7ª Arte. Nesta veia, existe mais do que nunca um desdém quase universal acerca da política e tratamento da animação por parte do corpo de voto que seleciona estes nomeados. Como qualquer fã ocidental de animação pode atestar, vivemos num ambiente que não respeita esta forma de arte. Isto, infelizmente, reflete-se nos supostos altos níveis artísticos que partilham deste prejuízo.

Com a atual estagnação do cinema, a animação no mainstream sofreu imenso. A imagem desta na nossa parte do mundo resume-se a duas palavras: Disney e Pixar. Algo que se verifica mais que nunca agora que a Dreamworks, o Don Bluth e o Ralph Backshi deixaram de poder competir em pé-de-igualdade na mesma arena que o Rato e a Lâmpada. A grande explosão de diversidade em animação ocidental dos anos 80 agora está mais que abatida e enterrada. Uma circunstância lúgubre dado que agora dificilmente teremos outro Prince of Egypt, Secret of NIMH ou American Pop.
Naturalmente, isto estende-se para a grande explosão de anime que ocorreu na década de 90. O que antes foi uma descoberta monumental que iria assinalar uma radical mudança de sensibilidades e estilos agora é uma relíquia de um passado esquecido. Restam-nos inúmeras piadas acerca de homens musculados a berrar interminavelmente e raparigas de olhos enormes e cabelos multicor. Uma vibrante e complexa forma de arte reduzida a uma concepção popular informada por transformações recicladas e tentáculos perversos.
Ano após ano vemos este desrespeito a ser constantemente apontado a anime. Este ano chegou a um certo auge com o ignorar de dois títulos importantes. Primeiro temos o filme Kimi no Na wa. de Makoto Shinkai. Traduzido em inglês como Your Name, este sucesso internacional sem precedentes em anime foi ignorado na escolha de nomeados para a categoria de Melhor Filme Animado. Dado que ainda não está disponível em Portugal, serei incapaz de o situar neste panorama. Como base para este artigo, irei focar no music video Shelter. Um dos maiores alvos modernos de afeição de fãs de animação, este vídeo foi ignorado nas escolhas para Melhor Curta-Metragem Animada.
Shelter debaixo do Microscópio
Shelter trata-se de uma música nascida de uma colaboração entre produtores musicais Porter Robinson e Madeon. De forma a criar um music video que acompanhasse esta canção, Robinson planeou contar uma história utilizando um guião original que ele próprio escreveu. Uma parceria com A-1 Pictures, melhor conhecida pela sua adaptação da série de light novels Sword Art Online, conduziu a um processo laboral de um ano que resultou numa curta-metragem de cerca de 6 minutos. Este vídeo foi divulgado no canal de Youtube do artista e com a ajuda da Crunchyroll. Informações mais aprofundadas acerca deste vídeo e os bastidores já foram cobertos no site.
Este pequeno vídeo relata uma comovente história centrada à volta da relação entre um pai e a sua filha. Tem como pano de fundo um apocalipse eminente que ameaça destruir toda a humanidade. Um cientista, de nome Shigeru, dedica os seus dias finais para soltar a sua filha deste destino cruel. Isto é realizado através de uma nave espacial que é capaz de a conservar durante um tempo indeterminado. Uma simulação digital, na qual ela é integrada e dada controlo, facilita a espera inimaginável de uma viagem espacial. A memória dela é apagada de forma a facilitar a dolorosa separação entre um pai e a sua filha. É dentro desta simulação que a jovem, de nome Rin, explora e descobre as circunstâncias da sua situação.
O que destaca este vídeo é a sua impecável utilização de linguagem visual moderna para transmitir a sua história. Vemos isso através do protagonismo que o domínio digital tem na caracterização da história. O mundo digital de Rin é controlado, e dado forma, através da sua imaginação e o seu tablet. Aqui temos uma sinergia visual interessante na medida em que a tecnologia é uma extensão do nosso desejo e capacidade de manipular a realidade em nosso favor. Este desejo é materializado numa ferramenta facilmente identificável e cada vez mais sinónima e integral ao quotidiano moderno. Desta forma, algo de aparentemente fantástico, que representa um certo auge e extremo no que diz respeito à nossa concepção acerca da natureza interativa e integrativa da tecnologia, é feita credível através de uma personagem que interage com este de uma forma familiar.
Isto tudo são alicerces que servem para construir um ambiente caracteristicamente contemporâneo que apela fortemente ao espetador moderno. Para além deste apelo a um nível conceptual, a estética e escolha de animação também desempenham um papel vital. Como foi descrito acima, este vídeo foi produzido pelo estúdio japonês A-1 Pictures. A sua obra mais conhecida foi extremamente influente em produzir a imagem artística mais popular no domínio da simulação virtual. Esta obra tem-se revelado um sucesso sem precedentes, definindo esta década de anime da mesma forma que One Piece, Naruto e Bleach caracterizaram a década passada. Algo compreensível dado que o espírito jovem encontra significado e uma fantasia desejável num videojogo com um nível de imersão tão elevado. A esta fantasia é dada forma adaptando elementos e linguagem visual de fácil compreensão pelas camadas mais jovens.
Como tal, o emprestar da sua estética tão reconhecível a uma obra que tem como cenário um mundo digital auxilia em dar uma certa meta-credibilidade transcendental, algo de valioso que não poderia ser atingível com uma execução diferente. A completar isto, temos a escolha da animação realizada através da lente do anime para contar esta história. O anime destaca-se imenso para nós no mundo ocidental como contraponto à ideia que a nossa cultura tem de animação. Todos nós conseguimos trocar histórias acerca dos nossos primeiros desenhos animados, a forma como nos marcaram e o amor e afieção que temos por eles por simbolizarem uma altura da nossa vida que se desvanece em nevoeiro com a marcha dos anos.
Porém, erguemos uma muralha à nossa apreciação por esta forma de arte quando ”crescemos”. Relegamos a animação ao domínio de coisas efémeras, digna apenas de crianças e imprópria da mente adulta. Esta é uma contradição algo de frustrante. Conteúdo infanto-juvenil é criado todos os dias para todas as formas de arte. Harry Potter coexiste com O Memorial do Convento como facetas de uma mesma arte, mas não é por causa disso que julgamos a literatura como algo de inerentemente infantil. Isto é ainda mais enfurecedor ao pesquisar a história do icon animado da Betty Boop. A sua influência nasceu do sex appeal desta personagem, a imagem da jovem liberta da Idade do Jazz. Curioso que a ideia da sexualização de uma personagem animada nasceu não dos japoneses que acreditam na versatilidade do médium, mas sim dos americanos que agora o condenam pela sua suposta infantilidade.
Para quem procura o deslumbre da animação e ver o seu potencial florescer, tem a bênção do anime. Além de não ter medo de explorar uma variedade imensurável de histórias, também fala a todo um público igualmente diverso. Esta liberdade dos constrangimentos sociais apela a algo de profundo nas gerações milenares. Constrangimentos estes que impõem uma falsa equivalência de infantilidade na pura curiosidade e maravilha que a mente aberta tem perante uma obra como Memories. Uma rejeição de restrições artificiais que não têm lugar no mundo moderno e sufocam possibilidades tanto desconhecidas como extraordinárias. Este é o derradeiro significado de anime: a realização do transcendental em oposição ao Velho do Restelo. Até diria que, nesta perspetiva, o anime seria o fado do extremo oriente a serenatear a alma portuguesa.
O explorado acima, em conjunção com um conto que tenta mostrar a maneira como o amor é capaz de nos oferecer um raio de esperança quando confrontado com uma situação inimaginavelmente ameaçadora, produz uma obra de arte que procura transmitir algo de esteticamente e visualmente intemporal pela sua beleza. Ao assentar-se numa linguagem visual inteligente, que olha para o mundo de hoje e o futuro próximo, a visão artística evolui e reflete a sensibilidade das gerações modernas. Arte que foi ignorada. Isto só contribuiu cada vez mais para a alienação do público entusiasta face às sensibilidades antediluvianas dos Oscars.
Cinema ignorado e desprezado
Em 24 de março de 2002 foi atribuído o primeiro Oscar da recém-nascida categoria de Melhor Filme Animado. Este galardão foi atribuído à grande sensação de Shrek. Até à data, a ideia de uma categoria dedicada exclusivamente à animação era impensável. A justificação dada na altura era de que não existiam filmes animados suficientes para consideração. Escusado será dizer que nunca se tratou do caso, apenas dentro do ambiente cinemático americano. Isto para não falar da importância monumental que a animação teve para o nascimento da 7ª arte. Mas se calhar não deixa de ser válido, afinal de contas os Oscars são prémios dados, especificamente, ao trabalho cinemático feito no seio das produções americanas. Porém, tal deixou de ser desculpa na segunda edição desta categoria com a vitória de Spirited Away de Hayao Miyazaki. Este foi o principal precedente que abriu a categoria ao palco internacional.
É costume pregar que a criação desta categoria representa uma grande vitória para o avanço da animação como uma forma de arte. Após 16 edições, porém, apenas vemos uma obtusa falta de compreensão do produto deste médium. Diria até que apenas se reduz a mais uma ferramenta de marketing. Temos exemplos fáceis, como a desgraça de 2007 na qual Ratatouille venceu sobre Persepolis. Uma instância na qual uma obra, de cariz autobiográfico, que relata as tragédias e misérias que assolam os habitantes do médio-oriente perde em favor de mais uma história de um floco de neve a perseguir o seu sonho.
Porém, o grande crime aqui são os inúmeros animes que todos os anos são ignorados em favor de filmes de qualidade inferior. Como é que nós aceitamos a barra de qualidade de Spirited Away para esta categoria mas contentamo-nos com Big Hero 6? Como é que nós louvamos Miyazaki como visionário no seu médium sem ninguém fazer o mesmo de Satoshi Khon? Como é que Studio Ghibli se torna lendário pela magia dos seus filmes ao mesmo tempo que Madhouse não é reconhecido pela visceralidade dos seus?
De um ponto de vista cínico, a resposta é simples. O Studio Ghibli e a imagem de Miyazaki são fáceis de equiparar à da Disney e o seu fundador. Isso, e que os filmes Ghibli entram em linha com o dogma de infantilidade que o Ocidente tanto gosta de promover, e que temos mais conteúdo infantil para vender mas desta vez com o exotismo do Extremo Oriente. Aquilo que, merecidamente, celebramos como um dos grandes sucessos e validações do potencial do anime acaba por ser corrompido pelo comercialismo que perpetua a imagem contra o qual nós tanto revoltamos.
Chega a um ponto que o escândalo do The Lego Movie não receber uma nomeação apenas soa à mais assoladora das hipocrisias. Se então estão tão preocupados, onde estava toda essa paixão quando Wolf Children nem sequer foi sussurrado ao mesmo tempo que Brave recebia o ouro? Onde esteve toda a indignação no ano em que Paprika foi enterrado em favor de Cars? Onde estavam as chamadas à revolução quando The Garden of Words foi ignorado de forma a dar lugar a Brother Bear? Foi preciso mais de uma década deste absurdo para a comunidade finalmente fazer ouvir a sua voz.
Porém, isto não acaba aqui. O problema estende-se de uma forma severa para o corpo de voto da Academy of Motion Pictures Arts and Sciences. Numa série de entrevistas que tornará qualquer defensor de animação num rubi de fúria, parece que esta atitude de indiferença, ignorância e até mesmo desrespeito é endémico a estes supostos profissionais que reivindicam o poder de decisão. Gente que supostamente estuda e se forma em cinema mas partilha de prejuízos erróneos? Gente que não faz mais nada da vida que ver filmes e mesmo assim recusa ver animação? Gente que põe ares de intelectualidade ao mesmo tempo que sabe menos do assunto que um entusiasta? Isto revela uma nojenta falta de profissionalismo que seria absolutamente inaceitável em qualquer outra área.
O futuro da animação
Visto isto, não seria de admirar que Shelter e Your Name tenham sido dignados de silêncio na temporada de prémios. Mesmo para uma categoria menor como Melhor Curta-Metragem Animada não foi feita uma concessão. Isto é particularmente agravante quando a conversa dos Oscars é dominada pelos seus esforços de tentar manter relevância num mundo cada vez mais misto e heterogéneo nas suas sensibilidades e gostos. Aqui tínhamos uma excelente maneira de atrair um público jovem e matar dois coelhos de uma só cajadada. Além de que seria uma boa maneira de adaptar e refletir as correntes do futuro. Mas, como esperado, nada. Isto acaba por ser nada mais e nada menos que uma oportunidade estupidamente desperdiçada. Procurar validação e reconhecimento desta cerimónia a certa altura do campeonato resume-se a uma Tarefa de Sísifo.
Será que algum dia poderemos ver uma mudança? Talvez. A verdade é que este ano tem dado destaque a uma seleção de nomeados menos intragável. Uma elenco eclético de diferentes estilos e nacionalidades que reflete a diversidade que a animação oferece. Até mesmo Zootopia, apesar de ser mais um filme Disney, merece a vitória mais que os seus antecessores. Uma neo-fábula esopiana que procura explorar as tensões raciais que, infelizmente, têm vindo a dominar o mundo recentemente. Porém, o corpo de voto com todos os seus defeitos ainda permanece. Isto para não falar do sistema eleitoral que utilizam. Da forma mais direta possível, é a vontade deles que vai mudar ou manter o que temos observado no futuro. Só quando houver uma reforma ou mudança de guarda brusca é que veremos resultados a longo termo.
A história tem demonstrado que prémios e prestígio para a animação acabam por ser algo que não está nas cartas. Qualquer uma das obras referidas acima tiveram sucesso e reconhecimento merecido, além de deixarem um impacto profundo com a audiência. Uma audiência que tem crescido mais que nunca nos últimos anos. Isto podia ter sido uma instância na qual a comunidade de anime fosse validada e reconhecida mais uma vez. Quiça, talvez a realização do sonho de progresso que 30 anos atrás parecia estar tão perto. Recentemente, a Crunchyroll inaugurou um evento na qual procura coroar os melhores animes do ano. Porém, o método de escolha e voto ainda tem os seus problemas e vai requerer bastante trabalho.
Entristece-me profundamente porque, tenho que confessar, participei deste tão maligno prejuízo. Eu próprio ativamente evitava anime, acreditando em informações e imagens erróneas. Eu derrogava animação como coisa de criança, não conhecendo nada de melhor para além de Beauty and the Beast. Se não tivesse questionado disto, se não procurasse por mim o que anime realmente era, seria desprovido de um dos grandes prazeres da minha vida. Uma vida sem saber a presença inspiradora de Lady Oscar em The Rose of Versailles. Uma vida sem saber a rebelião romântica da tripulação da Arcadia em Space Pirate Captain Harlock. Uma vida sem saber da aniquiladora tristeza da tragédia de Seita e Setsuko em Grave of the Fireflies.
Cabe a nós manter viva a apreciação por esta forma de arte. De procurar e partilhar aquilo que faz de melhor e único. Será um esforço difícil com sempre, mas não um que terá que ser feito singularmente. Para aqueles que ainda têm dúvidas, apelamos que olhem por si e descubram este mundo extraordinário. Que desfrutem dos mesmos prazeres e de um horizonte mais largo. Para aqueles que utilizam o argumento da infantilidade. Aqueles que estão seguros de sua espada de preconceito, só existe uma resposta. A criança tem a mente aberta o suficiente para olhar para além da falácia. Sabe que neste mundo existe animação que explora os mais difíceis temas tanto ou melhor que as ditas artes dignas. Sabe que arte nunca é constrangida por um só género e conteúdo. Sabe que essa invencível espada tem dois gumes. A criança responde: ”O Rei vai Nu!”.