A música é uma arte e, portanto, também uma via para a salvação. Não para a morte física, para a qual todos temos bilhete, mas para a morte metafórica que tantas vezes se esconde atrás de um corpo humano que ainda funciona. Aqui, a salvação diz respeito ao sentir e viver realmente a vida que temos, em vez de a deixarmos ser arrastada pelo tempo, esse compasso que ninguém consegue acelerar ou desacelerar.
Shigatsu wa Kimi no Uso começa por mostrar que todos nós temos momentos difíceis ao longo da vida. Infelizmente, alguns de nós, logo numa fase muito precoce, em que ainda mal sabemos o que é essa coisa a que chamamos vida. Mas, nessa “coisa”, também temos momentos bons! Portanto, o que interessa saber é para onde pende esta balança entre felicidade e dor. Uma medição que não depende só de nós, ainda que tenhamos uma palavra poderosa a dizer sobre isso.
Nós, e os outros. Aqueles que marcam as nossas vidas. Alguns entram e saem num curto espaço de tempo, enquanto outros acompanham quase todo o nosso trajecto. Desde que nascemos, até que aceitamos a boleia da morte. Quer isto dizer que uns têm mais tempo para marcar a diferença do que outros? Hum, talvez seja mais correcto dizer que gostam de nós e aproveitam melhor as oportunidades. Ou não! Talvez até nem se esforcem muito. Simplesmente, a vontade está lá por já fazer parte do seu carácter. Ou até, em última instância, marcam a diferença porque a sua personalidade tem esse código genético. Aquela chave que abre as nossas portas interiores. E se for no timing certo … ai se for …
Aqui foi! Em Shigatsu wa Kimi no Uso. É assim que começa esta história. A história de Kousei Arima, Kaori Miyazono, de Tsubaki Sawabe, entre outros. Mas também, aliás, essencialmente, da música. De facto, esta história, cuja sinopse apresentei no meu artigo de primeiras impressões, é tanto da música como das personagens humanas que a constituem E é natural que assim seja. Porque nenhuma destas partes vive verdadeiramente sem a outra. Nenhuma se exalta ou se agiganta sem a “outra metade”.
Mas analisemos a situação da perspectiva de Shigatsu wa Kimi no Uso. A música faz-se mais bela e rica em emoção quanto maior o trabalho, a dedicação e a paixão que o artista nela emprega. Em relação ao artista, faz-se grande quando se liberta da pressão e dos seus receios de falhar uma nota, das tormentas do passado que o assolam e lhe retiram a capacidade de voar. Porque somos imponentes à maioria das tragédias que inesperadamente nos batem à porta. Contudo, não somos proibidos de, a qualquer momento, tentar diluir a dor por via da música ou de qualquer outra arte. Logo, não é preciso fazer nada para se sofrer, mas é preciso fazer algo para se viver e não apenas sobreviver. Para isso, a música é uma grande aliada, e é sobretudo isso que esta produção, dividida nos 3 géneros que vou falar já de seguida, trata de demonstrar.
O Romance
Ryouta Watari poderia juntar-se às três personagens que enumerei em cima e dar forma a um quadrado amoroso para a obra. No entanto, creio que o mais correcto será falar num triângulo, do qual fazem parte Kousei, Kaori e Tsubaki. Ryouta não parece levar o amor muito a sério, ainda que, ironicamente, talvez possa ser o mais concretizado aos olhos de alguém que aprecie estes jovens à distância e não os conheça.
Tendo em conta a teoria do triângulo, este parece-me bastante forte, pois todos os seus vértices têm características diferentes, o que confere diversidade à parte romântica da trama. Kaori tem uma dose excessiva de irreverência que lhe permite chegar aos sentimentos e emoções de todos os que a rodeiam, sobretudo Arima. Quando não é por palavras ou comportamentos desarmados, é com recurso ao seu violino ou a outro instrumento musical.
Por seu lado, Kousei, o pianista super talentoso, tem uma vida que alterna entre duas dimensões. Aquela em que se deixa envolver pelo charme de Kaori e se liberta das amarras da vida, e aquela em que se deixa atormentar pelo passado negro que o atormenta. Esta luta interna do pianista com os fantasmas do passado é o ponto fulcral da história e, sem dúvida, digno de toda essa atenção.
Na ponta que resta do triângulo, encontra-se Tsubaki. Apaixonada por Arima, vive uma fase de negação desses sentimentos e uma outra de afirmação, ao longo dos 22 episódios. Dos três jovens, Tsubaki aparenta ser a personagem menos interessante e desenvolvida. Porém, com o encadeamento de vários acontecimentos, as coisas mudam e a jovem revela um crescimento extraordinário que chega à boleia de uma coragem pouco antecipada, confirmando o estatuto de protagonista.
Posto isto, poderia dizer que a parte romântica desta história eleva-se através do drama que a acompanha e lhe dá significado. Todavia, o funcionamento deste enredo aparenta dar-se no sentido inverso. As relações entre as personagens, suportadas na paixão, nas amizades de longa data, e em personalidades que “fazem faísca” entre si, leva-as a expor ou a tornar perceptível, mais tarde ou mais cedo, pelo menos uma parte da dor que habita dentro de si, fazendo assim o enredo avançar neste aspecto.
O Drama
No entanto, se o drama fosse apenas romântico, a qualidade desta produção ficava a meio caminho. O drama principal de Shigatsu wa Kimi no Uso chega muito antes disso. Nomeadamente, como já referi, no passado doloroso e complicado de Kousei Arima. De todo o elenco, Arima é a personagem mais importante da história e na qual tem suporte a premissa inicial da obra. Dotado de um passado exageradamente negro e triste, que inclusive originou a sua separação da música, o dilema mais interessante e cativante da série tem o jovem pianista como ponto de partida. Mais do que todos os outros dramas que surgem com o avançar dos episódios, a curiosidade e interesse do espectador encontra-se, principalmente, na vida desta personagem. Será que vai conseguir superar os fantasmas do passado, reagir às adversidades do presente, e reatar a sua relação com a música?
Mais do que quaisquer outras, são estas interrogações sobre Arima que dão um papel fulcral ao drama nesta trama. Caso para dizer que este género é um dos extremos que alarga a complexidade desta produção, pois sem ele não seria possível trazer os momentos de cor que chegam por via da música. Da mesma forma que seria complicado descortinar alegria e felicidade se não houvesse dor e tristeza, sem o drama que constitui esta história, o impacto da música ficaria aquém do seu potencial e a série teria um espectro de cores bem mais reduzido e um género de baladas mais limitado.
A Música
A parte mais importante e mais conquistadora. Quando há pouco escrevi que Kousei era a personagem principal, não englobei a música nesse concurso de importância. Como já dei a entender em cima, sem um, ou sem o outro, esta produção perderia o seu sentido. Aqui, a música é uma personagem especial e excepcional.
Mas como este tópico diz respeito à música em particular, para lá do sentido, é preciso também dizer que sem ela não havia beleza nesta adaptação do manga de Naoshi Arakawa. Do mesmo modo que as nossas vidas não seriam tão belas sem som. E não precisamos de ter uma vida ligada à música (e eu nunca tive!) para reconhecermos a sua força. Mais tarde ou mais cedo, ela acaba por forçar a entrada nas nossas vidas.
Vejamos o caso da música clássica com que se pinta esta história. Dificilmente, alguém que não pratique esta arte dá atenção à música clássica, até porque esta é alvo de pouca publicidade. Porém, se não for antes, depois de Shigatsu wa Kimi no Uso, talvez o espectador olhe para ela com outros olhos. Ou melhor, a ouça com outros ouvidos. Ao longo da série, somos surpreendidos com composições musicais que despoletam diferentes emoções. Mas isso também só é possível porque tanto a componente sonora como visual estão concentradas apenas nisso: na transmissão da melodia por via do seu intérprete. E nós, como espectadores, como público na plateia, absorvemos a melodia no seu todo, na sua maior profundidade, o que não aconteceria se tivéssemos apenas o som como fundo e algo diferente a desenrolar-se no ecrã.
Qualidades e defeitos para lá da música
A par do triângulo das personagens, temos então este triângulo de géneros que é rotativo. A música despoleta o romance, o romance torna visível o drama escondido das personagens e o drama potencia a música. Esta engrenagem bem construída é o que faz sobressair a obra e me leva a recomendá-la a qualquer espectador. Mas se quiserem ver esta roldana a rodar no sentido inverso, isso também me parece possível, embora nesta direcção faça mais sentido à minha pessoa.
E com isto concluo o que para mim é de maior importância nesta obra, também conhecida pelo nome “Your Lie in April”. Claro que depois tem mais virtudes, e também alguns defeitos. A maioria deles, já referenciados no meu artigo de apresentação a Shigatsu wa Kimi no Uso. Tendo em conta a sua consistência alo longo de toda a série, deixa de ter sentido a sua repetição neste texto.
De uma forma breve, reforço apenas a qualidade do desenho, dos ambientes, da coloração (tão importante para uma obra que oscila entre o negro mais assustador e o branco mais puro e brilhante) e dos vídeos de abertura e encerramento dos episódios. A série utiliza openings e endings diferentes nos seus 2 cours, mas aquela primeira abertura: “Hikaru Nara”, dos Goose House, quanto mais se ouve mais se quer ouvir.
No que toca às críticas mais negativas, de salientar a aleatoriedade dos momentos cómicos. Numa série cujo drama, a dor e a tristeza são elementos cruciais na história, algumas cenas cómicas que acompanham determinados momentos parecem-me bastante desajustados. Já em cenas de ânimo mais leve, conseguem cumprir com o seu objectivo, isto é, divertir o espectador.
Por último, apesar da série apresentar uma estrutura bastante sólida e bem elaborada, creio que a roldana de géneros perde alguma velocidade na segunda metade do anime. Depois de um primeiro cour de grande nível, existem ali alguns momentos na segunda parte em que Shigatsu wa Kimi no Uso abranda demasiado o ritmo respeitante ao desenrolar da história, suscitando algum aborrecimento.
Juízo Final
Seja como for, esta é uma obra criada para dar mais cor à vida de cada um de nós. Uma cor que se transforma em som. Um som que nos contagia, que nos ajuda a diluir os momentos e a recordações mais dolorosas, que coloca pautas musicais mais alegres a reverberar na nossa mente.
Na mesma linha de raciocínio, mas de uma perspectiva mais global, Shigatsu wa Kimi no Uso reflecte a importância das artes nas nossas vidas. Uma componente que, a par do desporto, é tantas vezes desvalorizada e descartada em fases prematuras das nossas vidas, seja por iniciativa ou desinteresse dos nossos antecessores, seja pelos nossos sistemas de educação. Mais tarde, percebemos como isso nos condiciona negativamente.
Shigatsu wa Kimi no Uso – Trailer
Análises
Shigatsu wa Kimi no Uso
Shigatsu wa Kimi no Uso trata-se de um verdadeiro hino à música enquanto arte. Através da música e das personagens que lhe dão voz, a série agarra-se com força à nossa mente e ao nosso coração, sendo difícil deixá-la cair no esquecimento.
Os Pros
- A música: quer no papel de protagonista da história, quer no papel de banda sonora
- As personagens
- A arte
- O jogo de cores
- A animação
- Os openins e endings
Os Contras
- Momentos cómicos por vezes mal posicionados
- Segunda parte da série contém alguns momentos em que o ritmo abranda de forma significativa, contrastando negativamente com o desenrolar normal da trama