Da autoria de Satoshi Kon, Tokyo Godfathers é um conto natalício de perfil enviesado. A história desenrola-se na véspera de Natal e as personagens principais assumem as características da época. No entanto, os visuais apresentados não evidenciam a efeméride e o enredo é bastante adulto, tornando mais séria e vincada a mensagem deste filme.
Tokyo Godfathers – Sinopse
Em plena véspera de Natal, três sem abrigo deparam-se com um bebé abandonado no lixo. Incapazes de passarem indiferentes à situação, e depois de ponderarem o que fazer com o recém-nascido, Gin, Hana e Miyuki lançam-se à procura dos pais da criança, numa aventura com muitas voltas e reviravoltas em perspectiva.
Contudo, importa referir que este não é um trio qualquer! A par do “estatuto” de sem-abrigo, todas estas personagens são bastante diferentes umas das outras, perfazendo um grupo extremamente invulgar, e no mínimo curioso para o espectador.
Gin é um alcoólico e viciado no jogo que, depois de desgraçar a sua vida desta forma, abandonou a família. Hana é uma transgénero que nunca conheceu os seus pais. Já Miyuki, a adolescente do grupo, fugiu de casa depois de uma séria discussão com o pai.
Com Kyoko nos braços (assim decidem nomear a bebé), o trio lança-se à procura dos pais, numa jornada que promete ser longa e cheia de surpresas. Por outras palavras, uma aventura de Natal deveras peculiar, cujas exigências associadas aos cuidados de um recém-nascido são apenas uma das adversidades que os três sem-abrigo terão de superar, pois o confronto inevitável com o seu próprio passado não será menos exigente.
O Enredo
Da minha perspectiva, Tokyo Godfathers revela-se um filme de uma riqueza espiritual enorme. Um traço bem evidente logo na sua premissa inicial. Gin, Hana e Miyuki podiam ter encontrado a criança no lixo e ignorado os seus gritos, mas não o fizeram! Um gesto nobre que sensibiliza o espectador e lhe desperta curiosidade. Afinal, como é que aquela gente sem condições vai cuidar de Kyoko, se mal sabe cuidar de si? Um drama que ganha força com o passar dos minutos e se torna ainda mais apelativo quando o trio decide procurar os pais da criança.
Porém, se o espectador já tinha mais com que se entreter, o filme só atinge o seu maior brilhantismo quando estabelece um paralelo entre este dilema e os do passado das principais personagens. Com o avançar da longa-metragem, o passado de Gin e Miyuki é revelado e mistura-se com o mistério de Kyoko. Uma “ponte” estabelecida através de um exagero de coincidências que, em pouco tempo, se torna uma das imagens de marca de Tokyo Godfathers. Paradoxalmente, ao mesmo tempo que a trama adquire este traço, parece ilibar-se de acusações como “cenas demasiado forçadas” ou “acontecimentos inseridos às três pancadas” por parte da crítica.
As Personagens de Tokyo Godfathers
Apesar de todas as personagens centrais desta história serem sem abrigo, de facto, esse será um dos poucos pontos em comum que Gin, Hana e Miyuki partilham. As suas idades são diferentes, os seus estilos idem, o caminho que os levou a viver nas ruas foi diferente e, mais importante de tudo, os seus traços de personalidade são altamente distintos.
Este último aspecto é um ponto positivo do filme e que merece ser realçado, pois confere várias atitudes e reacções imprevisíveis ao longo da trama. Alguns diálogos também saem reforçados por isto em termos de qualidade. Nomeadamente, quando as personagens entram em choque por discordarem dos próximos passos a dar em relação à criança.
Em suma, embora o enredo esteja muito bem concebido, desde a ideia inicial ao desenvolvimento dos acontecimentos, importa realmente destacar a riqueza deste trio protagonista. Personagens muito bem trabalhadas que de outra maneira não seriam capazes de alavancar Tokyo Godfathers para o patamar de boa qualidade em que se instalou.
Visual e Animação
Os ambientes de Tokyo Godfathers descartam a generalização e apostam num foco individual.
Por exemplo, nas cenas de rua não existe uma grande preocupação com o nível de detalhe dos edifícios e derivados. Todavia, através da iluminação e dos jogos de cores, é dado um destaque agradável ao local mais importante do ecrã em cada segundo. Desta forma, torna-se fácil desviar os olhos para o sítio certo de cada cena.
No que diz respeito às personagens, o mesmo acontece. Grandes grupos não recebem um traço muito rigoroso. Já quando a objectiva foca uma personagem e “aperta” o zoom, nota-se um maior cuidado, de certa forma obrigatório.
Por último, volto a referir que o visual natalício é inexistente, o que não é de todo um aspecto negativo desta longa-metragem. Pelo contrário.
A Banda Sonora
Pessoalmente, considero esta a componente mais banal do filme. À excepção de um ou outro momento, cujas baladas são reconhecíveis de uma maneira quase universal, a música de fundo passa despercebida. Não compromete de maneira alguma o trabalho de produção, mas também não o eleva.
Ironicamente, em Paprika, filme do mesmo autor, a banda sonora é um aspecto de produção extremamente distinto por boas razões.
Um filme oportuno em qualquer época do ano
O facto deste filme se passar na véspera de Natal e não incidir directamente sobre esta efeméride é uma vantagem no que toca à sua visualização.
Se Toyo Godfathers for visto em época de Natal, o espírito instalado, por essa altura, nas nossas casas, pode dar um empurrão no que toca à nossa sensibilização para com os grandes e verdadeiros problemas da nossa sociedade. Problemas esses tantas vezes evidenciados nos nossos vizinhos, amigos de escola, de trabalho, entre outros, e que nós fazemos questão de ignorar, seja por iniciativa própria ou porque a rotina banalizou aquelas dificuldades.
Já no caso do filme ser visto fora de época, o que se verificou comigo, aí será uma maneira de lembrar que a aura especial do Natal deve ser aproveitada para todo o ano e não apagada e esquecida logo no dia seguinte.
Tokyo Godfathers – Conclusão
Embora repleto de peripécias engraçadas, este trabalho de Satoshi Kon pretende acima de tudo passar uma mensagem ao espectador. Ainda que a interpretação possa ser diferente de pessoa para pessoa! Como tal, quem procura filmes para absorver uma mensagem e reflectir sobre ela, tem aqui uma excelente escolha.
Da minha parte, após esta visualização, cabe-me salientar a igualdade. Apesar de nos “pintarmos” tantas vezes de maneira diferente e de termos condições de vida diferentes, somos todos humanos e não podemos fugir a isso. Independentemente de sermos mais ricos ou mais pobres, com casa ou sem-abrigo, todos temos o mesmo baralho de cartas (atitudes) disponíveis para jogar. A diferença está apenas nas cartas que escolhemos, na dignidade que elas possuem, e os timings em que as utilizamos. Boas escolhas podem transformar o improvável em provável. A partir daí, é deixarmo-nos levar e surpreender!
Tokyo Godfathers – Trailer
Análises
Tokyo Godfathers
Mais um belo trabalho de Satoshi Kon, cuja originalidade do enredo e o exagero das coincidências levam o espectador a reflectir profundamente sobre as vicissitudes da vida.
Os Pros
- A premissa inicial
- O enredo
- As personagens
Os Contras
- Nada a apontar