O cinema chinês sofreu um processo de evolução ao longo dos últimos 100 anos – desde os primeiros filmes mudos até aos mais recentes blockbusters – com uma série de realizadores, guionistas, e atores reconhecidos, em géneros tão diversos como filmes de artes marciais, romance, melodrama, e propaganda política. O cinema chinês é, visualmente, sócio-politicamente e historicamente significativo, e pode ser categorizado em seis gerações, cada uma refletindo a tecnologia e cultura do seu tempo, a política do governo imposta e a estética e conceito dos cineastas.
A história do cinema da China inclui obras das suas regiões administrativas como Hong Kong e Macau e o estado de Taiwan, mas nesta lista incluirei apenas obras da China Continental.
Uma Quarentena Cinéfila – Clássicos do Cinema Japonês
Uma Quarentena Cinéfila – Clássicos do Cinema Chinês
Street Angel (1937)
Street Angel, um dos primeiros filmes sonorizados (“falados”) do país, foi escrito e realizado por Yuan Muzhi e marcou um novo nível de maturidade nas áreas do guionismo, realização e performance da obra.
Street Angel é uma comédia que conta a história de habitantes urbanos da classe baixa de Xangai e na tentativa de escapar do seu ambiente – estes são apaixonados e virtuosos, com uma atitude positiva e humorística para com a vida, em face de realidades ásperas. O enredo, aparentemente simples, define um background social complexo.
Yuan Muzhi não faz dicotomias entre as personagens pobrezinhas e as ricas, antes coloca-se ao lado delas: ri-se com elas, chora com elas, irrita-se com elas.
O desfecho delas na história é trágico, mas é a consciencialização de que algo está errado, consciencialização essa que parece invisível até realmente rebentar de uma maneira horrífica, com o escalar das tensões político-militares.
Spring In A Small Town (1948)
Spring in a Small Town está localizado num momento muito específico da história do cinema chinês – no final da segunda geração (1930-49), período que vai da resistência antijaponesa até à tomada do poder pelos comunistas.
Spring in a Small Town segue Yuwen, que mora numa pequena cidade no sul da China e é casada há oito anos com Dan Liyan, um homem depressivo e de saúde frágil. Um dia, o médico Zhang Zhishen, antigo colega de escola de Yuwen, regressa à cidade. Os dois foram loucamente apaixonados na juventude, mas Zhang abandonou-a durante a Primeira Guerra, sem explicações. O reencontro reacende os sentimentos de um pelo outro.
É um drama emocional poderoso, comparável com Ophüls, Mizoguchi ou com retratos hollywoodianos de Douglas Sirk ou David Lean.
O deprimido e hipocondríaco Liyan (Shi Yu) vive numa uma cidade provincial em 1948, numa casa ainda danificada pelos bombardeios japoneses na guerra e que não se pode dar ao luxo de reparar. Ele encontra-se deprimido por essas mesmas ruínas e pelo seu casamento estagnado com a bela Yuwen (Wei Wei) que se distanciou totalmente.
Até hoje a obra mantém-se inquietante no que diz respeito à maneira como o relacionamento entre as personagens é desenvolvido. Muito disso advém, creio eu, do fato de Fei Mu conciliar a encenação clássica com elementos surpreendentemente modernos.
Two Stage Sisters (1965)
Two Stage Sisters, filmado em 1964, em pleno período mais tolerante antes do início da Revolução Cultural Chinesa (uma profunda campanha político-ideológica levada a cabo nos anos 60 na República Popular da China, por Mao Tsé-Tung, na altura líder do Partido Comunista Chinês), quebra qualquer noção de que filmes de propaganda política não poderiam ser também arte.
O filme segue a vida de Yuehong e Chunhua, duas atrizes da ópera de Shaoxing – enquanto vivem num tempo turbulento na história do país, na China rural de 1935. Chunhua, que fugiu dos seus sogros (estes tinham planos para vendê-la), encontra-se escondida na arrecadação de uma trupe de uma ópera local. O pai de Yuehong – que é líder dessa trupe -, adota-a e descobre que esta tem um talento natural, fazendo dela a estrela do espetáculo junto com Yuehong. Mostrando as práticas abusivas da China pré-revolução, após a morte do pai, as duas irmãs são vendidas a uma outra trupe de ópera de Xangai para poder pagar as dívidas deixadas pelo seu pai.
A obra usa o mundo teatral de Shaoxing como uma metáfora para a mudança política e social – além disso, representa uma procura por uma estética do cinema nacional com base nestas tradições, bem como em Hollywood e em outros formatos sócio-realistas.
Two Stage Sisters mostra que a arte na República Popular da China, enquanto ostensivamente instruída para “servir o povo” , de facto apenas serve os caprichos dos seus líderes políticos.
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Hibiscus Town (1987)
Hibiscus Town (1986), de Xie Jin, conta uma história cuja mensagem foi bem-vinda ao público nos anos 80: a Revolução Cultural tinha acabado, seria então tempo de “ficar rico é ficar glorioso”.
Baseado num romance popular do escritor Gu Hua, o enredo é relativamente simples: numa cidade fluvial pitoresca na década de 1950, uma bela e jovem empresária Hu Yuyin e o seu marido montam um restaurante de rua e enriquecem ao vender sopa de tofu picante. Hu Yuyin tem quatro boas coisas na sua vida: beleza, um marido esforçado, um restaurante de rua famoso no seu distrito e dinheiro suficiente para poder construir a própria casa. Quando um dos líderes da Revolução Cultural Chinesa visita a região de Hu, esta é imediatamente considerada suspeita, por ter todas essas coisas boas na vida, sucedendo-lhe posteriormente um rol de tragédias.
O filme levanta questões muito complexas: após esta revolução histórica, para onde e para o que é que regressamos? Em que terreno moral é que nós construímos? Também revela como os mais recentes períodos da história da China foram (e são) tumultuosos para a população mais pobre e que ainda há muita margem para melhorar, não deixando de parte as centenas de anos ricos de história que precedem os eventos do século XX e XXI.
The Blue Kite (1993)
The Blue Kite foi realizado por Tian Zhuangzhuang, um membro da quinta geração do cinema chinês. No entanto, esta considerada a obra mais popular de Tian, foi proibida na China Continental na altura do seu lançamento, apesar de ser muito bem recebida nos outros continentes. Em plena conferência de imprensa sobre o filme, Zhuangzhuang diz que terminou as filmagens em 1992 “(…), mas que, enquanto fazia o processo de pós-produção, várias organizações oficiais envolvidas na indústria cinematográfica da China, exibiram os meus brutos e decidiram que este trazia problemas a respeito das minhas inclinações políticas e impediram a sua finalização. O facto de eu poder aparecer hoje parece um milagre”.
The Blue Kite traça os conflitos terra-a-terra das pessoas comuns, que apenas tentam continuar com as suas vidas durante o turbulento período das décadas de 1950 e 1960 da história do país.
O poder do filme vem do seu foco resolutamente humano: nós temos a palpável noção de como seria viver na região chamada “Dry Well Lane” naqueles dias; compartilhar o alimento e o combustível; brincar alegremente no pátio de escola olhando para fora da janela para saber quem vinha ou ia. A Pequim de The Blue Kite é o equilíbrio entre a China de tempos imemoriais e o emergente mundo novo. Há veículos motorizados nas paradas do Exército, mas quase nenhum nas ruas da cidade, onde as pessoas se apressam de bicicleta e a pé. O bairro é tanto o foco da vida que nunca sentimos a presença da grande metrópole. É fotografado com notável graciosidade, com cores e composições que encontram a beleza na vida dessas pessoas e especialmente nos seus rostos.
The Blue Kite é um filme profundamente político, mas que indiretamente atinge o seu propósito. Não é tanto sobre o background histórico-social da China, mas sim um estudo sobre a natureza humana. Ler sobre a Revolução Cultural é perguntar-se como tal loucura varreu por completo uma nação. Ver The Blue Kite é entender que o patriotismo irrefletido leva a grandes males. É apenas apropriado que o filme seja, em certo sentido, uma obra inacabada.
Seventeen Years (1999)
Zhang Yuan, membro pioneiro da sexta geração de cineastas da China, conhecido pela sua rebeldia, teve a sua quota-parte de confrontos com as autoridades. No início de sua carreira, realizou vários filmes underground considerados controversos, descrevendo membros da sociedade chinesa, marginalizados e privados de direitos – sendo o mais conhecido a obra de rock and roll, Beijing Bastards (1993) e o filme de temática lgbtq East Palace, West Palace (1996). Sem surpresas, Zhang viu-se rapidamente proibido de fazer filmes.
Seventeen Years, um drama envolvendo a viagem ao seu lar de uma prisioneira em liberdade condicional, é o primeiro filme de Zhang após o período de censura, marcando também o seu salto do underground para a superfície – conseguiu autorização para filmar dentro de uma prisão chinesa – a primeira vez na história do cinema nacional.
A história centra-se em torno de uma família, numa cidade nortenha – um casal que se casou novamente, cada um com uma filha de um parceiro anterior. Xiaoqin (Li Jun), a filha do pai, é ambiciosa – quer estudar na universidade e escapar da casa opressiva onde vive. Tao Lan (Liu Lin), a sua meia-irmã, contenta-se em permanecer nesse repouso. Por motivos desconhecidos, Xiaoqin rouba uma nota de cinco yuan (a moeda chinesa) do seu pai e esconde-a na cama de Tao Lan. O conflito acontece quando o pai Yu Zhenggao (Liang Sung) acusa a esposa Tao Airong (Li Yeping) de dar o dinheiro à sua filha. Tao Lan é acusada de roubo quando o dinheiro é achado na sua cama e depois de um confronto com a sua irmã Tao Lan atinge mortalmente Xiaoqin na cabeça com uma vara. O verdadeiro enredo começa dezassete anos depois.
Há uma relação complexa entre os discursos de Estado (efetuados através da reviravolta socialista), as ideologias sociais e as políticas culturais localizadas – Seventeen Years é extremamente poderoso nesse sentido, onde esta relação é apenas sugerida, mas amplificada quando estas considerações ideológicas e temporais ficam omnipresentes.
Os Amantes do Rio (2000)
O realizador Lou Ye nasceu em Xangai, em 1965, e fez as primeiras quatro obras na sua cidade natal. Diferente de outras personalidades da sexta geração (como Jia Zhangke e Zhang Yuan), a persistente vontade de poder expressar os seus próprios valores artísticos custou-lhe muito.
A segunda obra, Suzhou River, não foi exibida no seu país natal e Lou Ye foi proibido de filmar por dois anos, depois de ter exibido o filme no Festival Internacional de Cinema de Roterdão, sem a permissão das autoridades chinesas.
A história segue o motociclista Mardar (Hongshen Jia), que se apaixona pela adolescente Moudan (Xun Zhou), para mais tarde ser forçado a raptá-la, como parte de uma conspiração do submundo contra o seu pai rico. Indignado com a traição de Mardar, Moudan salta para o rio Suzhou, presumivelmente para se afogar, embora nenhum corpo tenha sido encontrado depois. Atormentado pela dor, Mardar deixa Xangai por alguns anos apenas para depois voltar, incapaz de esquecer Moudan, determinado a encontrá-la. Ele acha que teve sucesso na sua procura quando se depara com a showgirl Meimei, um alter-ego de Moudan – mas não é bem assim.
A narrativa poderosa, particularmente a representação do amor florescente entre Mardar e Mudan, deixa o espetador realmente agarrado ao filme. As últimas cenas onde o narrador caminha pela chuva torrencial, ao encontro de uma importantíssima descoberta, poderá não ser satisfatório para amarrar todas as pontas soltas da história, mas são poderosas, e esta é uma poderosa peça de cinema. Fica aqui um testamento sobre o amor eterno.
Palácio de Verão (2006)
Este filme de 2006 (que colocou os seus criadores em apuros, após a exibição em Cannes) é um ataque ousado a um grande tema-tabu: o massacre da Praça da Paz Celestial (Tiananmen Square). O diretor Lou Ye, que realizara anteriormente Suzhou River (2000), vê a energia que desafiou a autoridade estatal chinesa em 1989, como sendo de origem sexual. A história segue dois estudantes da Universidade de Pequim que encontram um lado emocionante e vertiginoso nas novas liberdades emocionais e sexuais. Um caso de amor começa e a sua libertação pessoal coincide, explosivamente, com as novas vagas políticas.
Embora Lou Ye afirme que, acima de tudo, o seu filme é uma história de amor, o título em mandarim “Yi He Yuan” e a sua consequente tradução para “Summer Palace” alberga um significado político interessante. Os protestos da Praça da Paz Celestial são conhecidos como “o tumulto político entre a primavera e o verão de 1989” conferindo um significado particular ao seu título internacional. O título “Summer Palace” evoca tanto a magnífica estrutura imperial chinesa que ainda hoje existe em Pequim como o cenário onírico de liberdade e felicidade, o casulo da inocência em adolescência. Um filme com requinte, o primeiro filme chinês a apresentar nudez feminina e masculina frontal.
Summer Palace recebeu a sua estreia mundial na seleção oficial do Festival de Cannes de 2006.
Kaili Blues (2015)
Um penetrante arte-filme sobre um médico que tenta compensar os crimes do seu passado, ao cuidar de um sobrinho negligenciado numa China rural, Kaili Blues, de Gan Bi, é sonhador, poético e propenso a desviar-se do seu rumo inicial, e as suas imagens em movimento fazem com que seja difícil acreditar de que este realizador de vinte e poucos anos é novato na área.
Kaili Blues é um filme noir subtropical: Chen Sheng (Chen Yongzhong), um gangster reformado que possui uma clínica médica na província nublada de Guizhou, adota o seu sobrinho pré-adolescente depois de saber que o seu meio-irmão, de quem está afastado, Crazy Face (Xie Lixun), pondera vender o seu filho.
Ao longo do filme, Gan Bi entrega-se repetidamente às imagens circulares, desde os relógios (reais e outros desenhados nas paredes), até túneis e panorâmicas de 360 graus em torno dos locais remotos de Kaili. Estes locais falam do confronto recorrente de Chen das suas feridas antigas, às quais nunca poderá escapar, assim como os comboios simbolizam a marcha inflexível do tempo, sempre para a frente.
Kaili Blues oferece uma visão das pessoas e da nação imbuída de tristeza, apanhados entre o assombramento do ontem e um amanhã esperançoso.
An Elephant Sitting Still (2018)
É tentador pensar em An Elephant Sitting Still como uma carta de suicídio escrita com sangue. Difícil de ver e impossível de esquecer, este anti-drama de quatro horas é sufocante, com uma impotência que o cinema raramente testemunha (“Stroszek”, de Werner Herzog e “O cavalo de Turim”, de Béla Tarr) e o cineasta que o fez – um ex-aluno de Tarr – tirou a sua própria vida antes da estreia mundial da primeira (e última) longa-metragem. Chamava-se Hu Bo e tinha 29 anos.
Adaptando a sua própria short-story, Hu Bo segue várias personagens, numa cruel e decrépita cidade industrial no norte da China, onde todos caíram por egoísmo de alguém. O adolescente Yu Cheng (Peng Yuchang) enfrenta o bully da escola em nome de um companheiro acusado de roubar o telemóvel deste; uma colega da turma (Wang Yuwen) tem um caso com o vice-reitor; um vizinho está a ser forçado a sair de casa pelos seus próprios filhos; e o irmão mesquinho do rufia (Zhang Yu) é obrigado, por honra, a vingá-lo.
Filmado com uma palete abafada e fantasmagórica, Hu Bo filma o seu elenco em longos takes de câmara estabilizada, que reminesce Elephant de Gus Van Sant, apresentando as personagens como figuras vagueantes no espaço. Personagens encontram-se com outras e expõem aspetos inesperados dessas mesmas – até as personagens consideradas predadoras são vistas como vítimas. A sua visão das agonias, vividas na China de hoje, transmite um desespero humano poderoso e universal.
Sem vislumbres de misticismo ou de espiritualidade, An Elephant Sitting Still é metafísico na sua essência.
Estes são 10 clássicos do cinema chinês que qualquer amante de cinema deve ter na sua lista. Recomendam alguma outra obra para esta quarentena cinéfila?
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