Título: Violet Evergarden
Adaptação: Light Novel
Estúdio: Kyoto Animation
Género: Slice of Life, Drama, Fantasia
Violet Evergarden – Análise
Revelo que tenho uma relação curiosa com a Kyoto Animation. Reconheço que, no que diz respeito a contribuições para a evolução da estética anime, é das maiores. O seu estilo influenciou indelevelmente anime contemporâneo, permitindo que o meio desse os seus passos seguintes em termos artísticos.
Porém, nunca partilhei da reverência que meus colegas têm do estúdio. Em grande parte devido à minha indiferença perante o seu output artístico. Pessoalmente, sempre olhei para a Ufotable como ápice da perícia de anime televisivo. Dito isto, é este ano que finalmente reconheço a mestria da KyoAni, com esta avassaladoramente régia obra-prima. Para inaugurar o seu ano, Violet Evergarden muito possivelmente posiciona-se como uma genuína magnum opus que irá imortalizar o estúdio.
Violet Evergarden trata-se de um anime de 13 episódios, baseado numa série de 3 volumes light novel do mesmo nome. Conta com a realização de Taichi Istade, a escrita de Reiko Yoshida e a composição de Evan Call. Animada pela Kyoto Animation, está disponível para streaming legal na Netflix em Portugal.
Violet Evergarden – História
Violet é uma criança soldado cuja vida conheceu nada para além da morte. Como tal, é destituída de emoções e carrega uma reputação como arma implacável. Durante a batalha final da guerra na qual participa, os seus ferimentos levaram à perda de ambos os seus braços. Como tal, são substituídos por próteses mecânicas. Acorda para a sua terra em período de pós-guerra, com o seu oficial superior desaparecido. Algo que lhe inquieta solenemente pois a última coisa que se lembra é estar com ele, ambos severamente feridos, e as suas ordens finais de viver livre.
Este oficial, o Major Gilbert Bougainvillea, era a única pessoa que não só cuidou dela como a tratava com dignidade. Deu-lhe a bênção de uma educação formal e até mesmo o seu nome. Mais preocupante, também revelou-lhe que a ama, um facto que ela é incapaz de compreender e a confunde.
Violet Evergarden – Uma odisseia de emoções
Esta incessante dúvida é o ímpeto que lhe leva a querer formar-se como Auto Memories Doll. Estas consistem em escritoras profissionais, especializadas em correspondência pessoal. Algo que Claudia Hodgins, um ex-oficial e amigo de Gilbert, auxilia ao ser presidente de uma agência de correio. Isto alivia-lhe pois procura cumprir a promessa que fez ao seu amigo e colega de academia em cuidar de Violet.
Desta forma, irá conhecer outras colegas escritoras e entrar em contacto com diversas pessoas únicas, cada uma com uma história singular cujas emoções e sentimentos precisam de ser passadas para o papel. Uma experiência que as ajudará a libertarem-se das suas angústias e permitir a Violet poder realizar-se, além de descobrir o que vai na sua alma. Quiçá, finalmente, poderá compreender o coração de Gilbert e libertar-se de um passado que apenas conheceu sangue.
O primeiro parágrafo deste artigo torna mais que claro as minhas intenções perante esta obra. De episódio a episódio vi-me absolutamente incrédulo perante a mestria em oferta. Além de ser deslumbrantemente belo a um nível visual, o mesmo se extende ao seu enredo. Cada conto, cada pessoa que Violet toca, seria o suficiente para ser uma comovente odisseia em si.
Ao início, não conseguia conter a minha angústia por não ser forte o suficiente para produzir lágrimas que dignassem a emoção avassaladora cuja empatia pelas diferentes personagens suscita. Consigo dizer que, quando finalmente pude partilhar das lágrimas de Violet no 10º episódio, foi a mais sublime experiência emocional que nunca esperava poder desfrutar em toda a minha vida. Um ciclone de profunda alegria, tristeza e paixão que espero todos possam sentir um dia.
Violet Evergarden – Análise
Porém, o que torna esta obra celestial não é simplesmente a sua extraordinária capacidade de inspirar o coração. Na sua totalidade, a história tem uma temática proeminentemente anti-guerra, utilizando a Violet como veículo para isso. Sendo ela uma veterana bélica desde jovem, a sua capacidade emocional é inexistente. Pegando em princípios teóricos de estética, a história demonstra de que forma é que um incentivo de arte é capaz de sarar as feridas de uma nação e do seu povo.
Através da sua escrita, Violet desenvolve-se como pessoa. Não só finalmente é capaz de compreender a hesitação e horror de Gilbert cada vez que lhe teve que mandar para o campo de batalha, mas também aceitar o seu passado sangrento e encontrar um propósito na sua vida, agora que a certeza singular da ordem militar não é necessária.
Só aí Violet Evergarden tem algo de poderoso para dizer. Muito frequentemente, obras elucidadoras como The Hurt Locker mostram que veteranos de guerra, insatisfeitos com o seu retorno a casa, muitas vezes preferem retornar ao campo de batalha. Entrevistas e relatos contam-nos que um grande apelo da vida militar consiste no sentido inabalável de propósito e certeza que a vida mundana carece.
Esta obra, apesar de ter um outlook muito otimista, não olha de lado este sofrimento e angústia destes veteranos. Por exemplo, vemos isso no conto do irmão de Luculia, cujo sentido de culpa e debilitação bélica o leva ao alcoolismo. A tese desta obra, sobretudo, apela à decência do ser humano, postulando que através da honestidade, da emoção desnudada e do diálogo é possível preservar a paz e evitar mais guerra.
Violet Evergarden – A Cura da Arte
De uma forma muito reducionista, uma observação passageira diria que apenas se trata de uma obra lamechas, que nada mais profundo tem a dizer senão que sentimentos salvam o mundo. A verdade é que é tão mais que isso. Na sua mensagem, da importância e propósito da arte, revela-se admiravelmente filosófica. A sua visão de benefício nacional e de estado da arte poderia ser algo saído de Friedrich Schiller. A sua representação de arte como fortemente emocional e a carta como uma excisão dessa emoção é algo tirado diretamente de R. G. Collingwood. A natureza terapêutica da arte pode ser vista como influenciada por Arthur Schopenhauer. Porém, um nome sempre me veio à cabeça quando penso na temática desta obra, Friedrich Nietzsche.
A forma como Violet serve de veículo para as mensagens e ideias desta obra, de certa forma, cria um paralelo com a personagem de Zarathustra na obra Also sprach Zarathustra. As ideias estéticas que permeiam toda a obra de Nietzsche encontram representação neste anime. A forma como, visualmente, posiciona a arte como antitética à guerra ecoa a dicotomia de vida e morte que representam.
Através de obras como Die Geburt der Tragödie, forma-se uma teoria estética que olha para a arte como um exercício da vontade humana, uma celebração da vida. De dar propósito e ordem ao mundo que, inerentemente, carece destes. Arte é uma manifestação da nossa capacidade de encontrar salvação da angústia da realidade. Não de recusá-la, mas de confrontá-la e dar-lhe significado. Através das suas histórias e personagens, Violet Evergarden transmite e explora estas ideias a um nível mais pessoal.
Nietzsche, na sua obra mais famosa, abraçou a estrutura do romance e da ficção como veículo para a filosofia. Este anime, quer propositadamente ou não, foi capaz de fazer o mesmo para o seu meio particular. Da mesma forma que o próprio Zarathustra se adequa ao intuito da sua obra, pois transmite os seus ensinamentos através do discurso que naturalmente fortalece as potências da palavra escrita, as viagens e comissões da própria Violet fazem o mesmo ao utilizar a subtil e belíssima linguagem visual para transmitir as emoções e sentimentos tão importantes para concretizar a sua visão estética. Em vez de um messias com todas as respostas, talvez algo diferente para uma altura que a necessite. Uma pessoa vulnerável, cicatrizada e aberta cujo percurso nos ensina mais do que uma simples palestra.
Violet Evergarden – Ambiente
O elemento que tem capturado a atenção das pessoas mais do que qualquer outro tem sido o visual deste anime. Só nessa categoria, este posiciona-se como um colosso imponente em toda a indústria. O estilo brilhante e polido da KyoAni é utilizado até ao seu ápice absoluto de forma a construir uma belíssima representação inspirada na Europa entre-séculos. Cenas que procuram estabelecer o ambiente são tão mais poderosas pela sua inacreditável beleza.
O sol raia como se fosse a eterna luz do divino, a chuva cai como se fossem inúmeros pequenos diamantes e cada flor representa um pequeno cosmo da sua cor eleita. Mesmo algo de tão mundano como os cabelos das personagens me fascinam interminavelmente. Cada fio e cada madeixa é simultaneamente caoticamente despenteada e hipnotizantemente perfeita. Um exemplo da dedicação ao pormenor omnipresente nesta obra.
Esta perícia visual não só é utilizada para este propósito superficial, mas também se estende para a sua narrativa. Utilizando a linguagem do seu meio, os elementos mais profundos da sua história são transmitidos sublimemente através da imagem em movimento. As temáticas descritas na secção anterior são tecidas não tanto através do diálogo expositório mas pela ação da personagem e elementos iconográficos importantes que informam a narrativa.
Um exemplo particularmente fascinante consiste nas mãos da própria Violet. Não só extraordinariamente desenhados, a sua representação e contextualização cria uma imagem poderosíssima. Assombrosa no seu peso como metáfora para a alma dela, o seu passado e o seu percurso como personagem.
O elenco oferece peças multi-facetadas dedicadas a esta filosofia de transmissão puramente visual. Todas as cenas mais emocionais demonstram uma capacidade quase sobrenatural de mostrar tiques e expressões faciais que, em apenas uma fração de segundo, dizem mais acerca da cena em questão do que capítulos inteiros de escrita. Uma proclamação triunfante do adágio ”uma imagem diz mil palavras”.
Esta dedicação é tão mais louvável ao permitir um libertar de paixão e angústia por parte das personagens que é tão mais enaltecedor e devastador pelo seu detalhe e expressividade. A emoção é dada plano central, elevando a sua beleza em todas as suas formas. Olhando para a sua revelação e comunhão como um ato nobre, senão até mesmo sagrado.
Violet Evergarden – Banda sonora
Adicionando a tudo isto, ainda me falta referenciar a qualidade angélica da banda sonora. Um elemento que frequentemente ignoro quando analiso obras, esta instância zelou-se para contrariar isso. Complementando a inspiração histórica do mundo, toda a composição parece algo saído dos mais conceituados palcos operáticos de Viena. Melancolia delicada em conjunção com paixão eufórica digna-me os ouvidos enquanto as mais belíssimas imagens dançam à frente dos olhos.
Cada momento é amplificado exponencialmente com a execução magistral da composição e apenas lamento não ser devidamente educado no assunto de forma a melhor apreciá-la. Pequenas coisas como a inclusão de samples sonoros da máquina de escrever transportam-me de volta para o anime mesmo quando ouvido em separado. Absolutamente imperdível e um clássico instantâneo por si.
Violet Evergarden – Conclusão
Violet Evergarden é uma raridade de uma obra. Diria-se até mesmo um eclipse artístico, invocando tanto a sua infrequência como a sua majestade. Um feito herculeano de mestria no seu meio que não só eleva a fasquia em todos os seus níveis como serve de exemplo para todo o género. Não existe outra palavra para o descrever senão belo. Em todo o seu sentido e até aos mais profundos recessos da sua conotação. Desde os seus primeiros instantes concretiza aquilo que seria o objeto teórico da estética e dá-lhe forma como nunca antes visto.
Pura e simplesmente única e singular como obra, inexistente em mais lado algum. De uma natureza transcendental que chega à imortalidade. A Netflix está a ter um ano de loucos para anime se já foi capaz de arranjar tanto este como Devilman Crybaby.
Esta é uma obra que celebra a perícia e importância do artista. Torna manifesto o poder de mover a alma humana que reside na sua mente e fruto. Um poder de inspiração capaz de elevar o ser humano para realizar a sua potencialidade e cuidar-se de seus defeitos. Uma perspetiva que, sobriamente, contextualiza a forma como a nossa sociedade trata estas figuras.
Nós, que somos portugueses, não somos estranhos das inúmeras biografias dos nossos grandes artistas, mortos em miséria e ostracização. O eco de ”trabalhar pela exposição” soa tão mais venenoso pela criminosa injustiça histórica que representa. Como é que nós rezamos no altar do medo do barril da espingarda ao mesmo tempo que ignoramos a infindável oportunidade da ponta da caneta? Torna-se evidente que precisamos de muito mais cartas e lágrimas do que pólvora e sangue.
Análises
Violet Evergarden
A derradeira obra-prima da Kyoto Animation, Violet Evergarden, além de ser mais um competidor para anime do ano, posiciona-se como uma das obras definitivas de todo o meio. Um conto avassalador dos tempos que seguem a guerra e de que forma a arte é capaz de nos salvar dos traumas e feridas do conflito bélico.
Os Pros
- Animação e Produção Deslumbrante
- Personagens hipnotizantemente cativantes
- Uma demonstração magistral de linguagem visual anime
- Uma experiência emocional celestial
Os Contras
- O arco que culmina no 12º episódio é algo de conflituoso e duvidoso em termos temáticos, além de quebrar a estrutura presente na restante obra
- Possivelmente fora do interesse do público desinteressado em obras mais lentas e com um foco intrapessoal