Inicialmente estudado no Japão, Hikikomori é uma forma de descrever um tipo de isolamento extremo que rapidamente se expandiu pela Ásia. Mas o que leva os jovens-adultos sul-coreanos a preferir o isolamento de forma tão drástica?
Alerta gatilho: este artigo vai mencionar tópicos sensíveis ligados à saúde mental, como depressão, isolação extrema e suicídio. Algumas imagens podem também ser consideradas gráficas, incluindo o material extra sugerido nas hiperligações.
Sendo hoje o Dia Mundial da Saúde (7 de abril), o 25 BANPO partilha hoje um fenómeno sem rosto, com casos que têm vindo a multiplicar ao longo dos anos e que torna o Hikikomori um problema social urgente, não só pelas suas características, mas também pela sua rápida globalização. Dessa forma, apesar deste termo ter sido originado no Japão, o 25 BANPO decidiu fazer esta análise, tendo maior atenção da sua presença e efeitos, no seio da sociedade coreana, onde tem até o seu próprio (mas menos conhecido) termo: Oiettolie.
Assim, e como sempre, a ponte está aberta.
Hikikomori: “Comecei a perceber que este não é um problema meu, mas um problema da sociedade”
“Hikikomori” – termo definido por Tamaki Saito, investigador e psicólogo japonês, no seu livro “Isolamento Social: uma adolescência sem fim”, de 1998 – explica um fenómeno observado no final dos anos 90 no Japão, um tipo de isolamento social extremo que leva os jovens a deixar de ir à escola ou ao trabalho, passando grande parte do tempo em casa.
Na Coreia do Sul, os casos de isolamento extremo foram crescendo e diagnosticados a jovens adultos, na maioria homens, com idades entre os 20 e os 30 anos. Em 2021, estimava-se que houvesse cerca de 320 mil casos, embora psicólogos e ex-Hikikomori acreditem que sejam muitos mais.
Casos relacionados com este fenómeno começaram a ser registados também em países como EUA e Espanha.
Um problema da cultura ou da sociedade?
Tamaki acreditava que este poderia ser um problema provocado pela cultura, normas e padrões altíssimos da sociedade japonesa. No entanto, a ideia do “ligado à cultura” deu lugar a uma ideia mais ampla de “influenciado pela cultura”.
Estudos mais aprofundados sobre o “Oiettolie” (Hikikomori Coreano) começaram por volta de 2001. Segundo eles, as motivações que levam ao afastamento social extremo são a insociabilidade, isolamento, timidez, mau humor, autoestima, relações sociais, solidão, ansiedade social e depressão. No entanto, ainda não há estatísticas suficientes que possam provar as verdadeiras causas e motivos.
É errado associar o fenómeno à incompetência humana ou apenas preguiça. O custo de vida sul coreano é elevado, a entrada no mercado de trabalho é difícil e “as medidas governamentais estão centradas em famílias unipessoais de idosos e de meia-idade”, comenta Dong-min Gi, legislador sul-coreano. Assim, muitos dos jovens-adultos, cerca de 150 mil, procuram quartos pequenos e baratos onde acabam a viver sozinhos e fechados.
Morte e suicídio solitários
A vida solitária é comum na Coreia do Sul. De entre elas resultam inúmeros casos de mortes solitárias – alguém que vive isolado e morre devido a suicídio ou doença, sendo o corpo encontrado depois de um certo período de tempo -, números que têm vindo a crescer de forma preocupante:
Dados estatísticos mostram que 10% dos casos (cerca de 73 pessoas) que morrem de forma solitária se encontram dentro dos 30 anos e que, por dia, morrem sozinhas 11 pessoas. Testemunhos de trabalhadores de limpeza apontam para o aumento de pedidos – quatro a cinco vezes por dia – por causa de mortes ou suicídios solitários. A primeira coisa que sentem é o cheiro intenso provocado não só pelas vítimas, mas também pela degradação do quarto, uma realidade comum aos diferentes casos.
Quem tem a responsabilidade?
É difícil atribuir a responsabilidade a uma pessoa ou entidade devido aos diversos tipos de ocorrências. Entretanto, devido ao grande aumento de casos deste fenómeno, o governo sul-coreano decidiu dar um apoio de 443€ por mês aos jovens entre os 9 e os 24 anos que sofram de isolamento social extremo como forma de incentivar os jovens a recuperar as suas vidas diárias, fomentar o emprego e estimular a ida à escola. Mas será esta uma medida eficaz?
Yoo Seung-gyu, ex-Hikikomori (entrevistado para um artigo da BBC), afirma que o dinheiro não é o motivo principal do isolamento e aponta para a variedade de casos. Conta que era sustentado pelos pais e que os motivos comuns em torno dos diversos casos são o sentimento de não corresponderem a padrões de sucesso da sociedade e até mesmo das famílias, por não seguirem as carreiras convencionais e por não terem bons resultados académicos, sentindo-se desajustados. A tensa relação familiar, que piora a pressão social, faz com que, enquanto se isolam, os Hikikomori procurem ter menor contacto com a família.
Testemunhos: exemplos de casos e motivos de isolamento
Kim Jae-ju é um exemplo de um caso extremo de isolamento:
A adolescência e o início da idade adulta são fases importantes na construção pessoal individual. São os amigos, companheiros e família os responsáveis pela construção da personalidade de cada um de nós. Experiências aversivas podem resultar no desajuste social e emocional que refletem não só sérias dificuldades pessoais, mas também complicações futuras:
Tal como refere Yoo Seung-gyu, um dos motivos do isolamento relaciona-se ao sentimento de desajustado por não seguir o padrão social. Muitos são os casos em que a tensão familiar provoca o agravamento dessas emoções:
Outros tipos de casos de isolamento estão ligados ao mercado de trabalho sul coreano. Há relatos de pessoas que perderam os trabalhos por motivos económicos (de redução de trabalhadores, por exemplo). Têm vontade de sair, mas não sabem bem como nem para onde. Acabam fechados dentro dos pequenos quartos à espera de novidades e oportunidades.
No caso de Young-Ho Park (pseudónimo), subcontratado numa indústria de construção naval, um acidente de trabalho tornou-se na grande dificuldade em relação à procura de trabalho. Sofria com muitas dores e o registo do acidente fazia com que fosse difícil trabalhar. Em 16 anos teve 31 trabalhos. Foi encontrado sem vida no seu quarto, depois de se ter isolado por um longo período. “Esta é uma história real da nossa sociedade”, comenta a irmã de Young-Ho Park, “como as pessoas estão preocupadas a criar uma vida, é difícil estar em contacto com os irmãos e irmãs”, diz em lágrimas. “Ele tinha de trabalhar de alguma forma, mas a sua perna doía e os colegas eram frios para os novatos”, acrescenta.
Os diferentes casos mostram que a medida tomada pelo governo não é eficaz na sua totalidade por não abranger todos os tipos de casos, não só em relação ao contexto destes, mas também à faixa etária dos jovens envolvidos. A preocupação pela geração mais jovem é muito importante, uma vez que é ela a principal responsável pela sociedade futura e, apesar de tudo, a medida foi uma prova de que o governo se encontra alerta dos problemas que afetam os jovens-adultos sul coreanos. Por ser um fenómeno ainda pouco conhecido e sensível, mais do que uma solução, a sociedade deve procurar medidas de prevenção. Com isso, o Ministério da Saúde decidiu revelar planos de “Prevenção de Morte Solitária”.
Programas de apoio
A “Korean Youth Foundation” (Fundação da Juventude Coreana) “procura ajudar os jovens que irão ser responsáveis pelo futuro da nossa sociedade a começarem bem”. Para Além de apoiarem a vida comunitária, a fundação coordena instituições como a “Lee Ah Dang” e a “K2 International”, grupos importantes para fornecer aos Hikikomori aconselhamento individual, terapia de grupo, clubes de atividades, treino profissional, assistência na procura de emprego, práticas de socialização e programação educativa (palestras ou oficinas criativas). Tem ainda um grupo de apoio aos pais dos Hikikomori.
Grupos de apoio aos Hikikomori; Infografia e tradução de 25 BANPO
Os Hikikomori e a Covid-19
Pensar que os Hikikomori estavam imunes à dor da pandemia é errado. Pelo contrário, as primeiras notícias e o aparecimento da infeção foram um novo motivo de stress. Para aqueles que já estavam isolados, o risco de o isolamento se tornar mais prolongado e severo aumentou. Para os que se encontravam em reabilitação, maior foi o risco de recaída.
O aconselhamento passou a ser feito à distância, mas mostrou não ser eficaz. Psicólogos de Lee Ah Dang dizem ter observado o aumento do stress, solidão e desespero entre os Hikikomori, apontando para casos de desistência e até de regressão nos tratamentos.
Um campo em estudo
Ainda há poucas evidências quanto ao tratamento deste fenómeno. É necessário que se trabalhe no sentido de uma maior compreensão clínica da doença, promovendo a deteção precoce, maior avaliação e melhor tratamento. O que se sabe é que, devido às variações de Hikikomori, os tratamentos devem ser individuais.
Não há critérios padronizados para este fenómeno. Investigadores levantam a hipótese de um tipo “soft” (que fala ocasionalmente com as pessoas) e a distinção entre os chamados Hikikomori “secundários” (cuja evitação social pode ser devido a um problema psiquiátricos subjacente como depressão ou transtorno obsessivo-compulsivo) e os Hikikomori “primários” (que não têm outra condição). Apesar disso, estas distinções não são incontestáveis.
Há ainda intenções em apostas na tecnologia, introduzindo jogos terapêuticos, para aumento da autoestima, ou terapia de exposição VR (realidade virtual) para praticar habilidades como manter contacto visual e estar em grupo.
No futuro
A pandemia da Covid-19 foi um período perigoso, não só para os jovens Hikikomori, mas para todo o mundo. No fundo, todos nós já sentimos o desejo de nos isolarmos, e a obrigação de ter de o fazer foi um ajuda para acender essa tendência. A probabilidade é que muitos mais casos tenham surgido e que muitos mais continuem a surgir.
Eles não se vêem, nem se ouvem. Mas estão lá, dentro do seu quarto, sozinhos, sem sequer pedir ajuda. Mais do que olhar para as mortes solitárias, é preciso estarmos atentos às vidas solitárias como forma de prevenir o contínuo aumento de casos.
[Imagens retiradas do documentário «Why 20s, 30s in Korea die alone at home? | Undercover Korea» (tradução livre: “Porquê que os jovens na casa dos 20 e 30 anos estão a morrer sozinhos em casa?”), do canal K-DOC/KBS]
Faz parte da missão do 25 BANPO apoiar causas como estas.
Todos os anos fazemos questão de relembrar o movimento Setembro Amarelo (mês da prevenção do suicídio), com posts e/ou stories, que ajudem na consciencialização e desconstrução do estigma criado à volta destes tópicos. Por lá apontamos sinais de alerta, formas práticas de ajuda e até números de apoio, mas como esta é uma batalha diária para muitas pessoas, regularmente relembramos a mesma informação, durante todo o ano. Pois acreditamos que se não estás bem, ou conheces alguém que precise de ajuda, este monstro combate-se mais rapidamente em comunidade, e não em isolamento.
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