A felicidade sempre foi algo bastante abstrato e simultaneamente bastante concreto a cada pessoa. O senso comum informa-nos de que a felicidade é o objetivo último na vida de cada um de nós.
O mundo agora configura-se em torno do dinheiro, a fonte (ou não) da felicidade. O dinheiro tem ocupado um lugar importante na vida dos indivíduos, por ser exatamente um instrumento de mediação que possibilita a satisfação das necessidades humanas e a obtenção de conforto material e, por vezes, humano.
As gerações mais jovens, a partir dos anos 80, vêm fazendo esta equação: trabalho traz dinheiro – dinheiro traz felicidade. Parece fácil, mas até que ponto deixa de o ser?
Há muito a aprender com “Rental Nan mo Shinai Hito” (“Rent-a-Person Who Does Nothing”), um drama que não chama muito a atenção, com a sua história e visual simples.
Rental Nan mo Shinai Hito – Um dia de cada vez

O dinheiro não traz nem cria felicidade; ao invés, é sim fazer o que se gosta, ao seu próprio ritmo, e apreciar os pequenos prazeres da vida. Não temos que ter um emprego bem pago, e viver numa grande cidade, a ceder às expectativas da sociedade, lutando pelos sonhos dos outros, mas nunca pelos nossos.
Não é necessário nem urgente sonhar alto – temos o direito de querer algo tão singelo quanto o “não fazer nada”, uma expressão tantas vezes usada neste drama, e lema da personagem principal Moriyama Shota.
Baseado na história (e vida) verídica de Morimoto Shouji, a série explora a vida diária do Sr. Rental (‘Rental-san’), como é carinhosamente chamado pelos seus clientes.
O nosso protagonista principal é então Moriyama Shota, o Sr. Rental, cujo trabalho é fornecer companhia. Em troca, ele só pede que o seu transporte, comida e bebidas sejam pagos. Em que tipo de serviço é que este consiste? O Sr. Rental pode fazer tudo o que o cliente lhe pedir, desde que este não lhe peça para opinar sobre certo assunto ou então pedir-lhe conselhos sobre como ter e melhorar o engagement nas redes sociais, visto que o mesmo ganha uma enorme legião de seguidores devido aos seus tweets fascinantes, como se fosse um pequeno diário virtual sobre os encontros com os seus clientes. De acordo com a metodologia de trabalho e também com a filosofia de vida de Shota, isso já seria considerado “fazer algo”.
No primeiro episódio, uma jovem mulher convida-o a ir à torre de Tóquio para passar com ela no seu último dia na cidade, porque esta não queria ser vista sozinha. Outra jovem, desta vez com um filho bebé, pergunta-lhe se podia fazer-lhe companhia ao almoçar no seu restaurante favorito. Ainda outra jovem faz-lhe um pedido um pouco mais incomum: acompanhá-la e deitar-se com ela num caixão.
A pergunta de um milhão é esta: “Porque é que faz este serviço? / Como é que o Sr. Rental teve sequer esta ideia?” Esta pergunta tem uma resposta bastante simples: burnout e completo desinteresse e desmotivação. Agora, ele e a sua família – a sua esposa e o seu filho bebé, sempre compreensivos – , sustentam-se com as economias poupadas ao longo de uma vida. Porém, tudo é sol de pouca dura.
A cultura karoshi e o sistema 996
O motivo pelo qual Moriyama Shota ter desistido do seu emprego pode ser objeto de outras interpretações. No entanto, penso que o que a sua esposa confessou aos seus pais no episódio 5 – “I told him that he should quit his job. If he continue working then I was very worried that the person I love would one day disappear.” – expressa um desespero algo desconcertante em relação ao tipo de ritmo de trabalho que o seu marido levava.
O Japão é conhecido mundialmente pela alta expectativa de vida. No entanto, isto não implica que a maioria dos japoneses consiga viver até aos 88 anos para as mulheres e 82 para os homens, de acordo com dados divulgados pelo Ministério de Saúde japonês (2020).
O Japão também é considerado um dos países mais seguros do mundo, com taxas de criminalidade baixas, ao contrário da alarmante taxa de suicídio, ligada muitas vezes com a morte por excesso de trabalho.
O conceito do overworking foi algo desde cedo ligado à sociedade japonesa. ‘Karoshi’, ou morte por excesso de trabalho, é um problema corrente na cultura de trabalho extremo do Japão, país onde o fenómeno também nasceu, nos anos 1970 – karoshi é o termo dado às mortes causadas por stress e outras pressões originadas no trabalho.
Um estudo realizado pelo Governo japonês revelou uma outra pandemia para além da do coronavírus – em 2018, apenas 52,4% dos trabalhadores usou o período de férias ao qual tem direito, em dados avançados pela BBC.
A história começa em 1973, logo após a crise de petróleo ter provocado uma reestruturação do mercado de trabalho, as divisões de saúde pública relataram um aumento das taxas de morte por insuficiência cardíaca, AVC ou suicídio. A maioria das vítimas trabalhava mais de 60 horas por semana.
Atualmente, o governo contabiliza cerca de 200 comunicações de sinistros no trabalho, porém, são cerca de 10,000 mortes por karoshi que acontecem no país. A linha de ajuda criada pelo Conselho de Defesa Nacional das Vítimas de Karoshi, para ajudar as vítimas na obtenção de indemnizações pelo governo, recebe entre 100 a 300 chamadas telefónicas por ano.
Em todos os aspetos, o excesso de trabalho, contraditoriamente, contribui para um decréscimo da produtividade nacional e uma queda para o 3º lugar do ranking das maiores economias do globo, sendo ultrapassada em 2011 pela China, no 2º lugar, também com a sua grande teia de problemas relacionados com o overworking.
O sistema “996” (comparável com a cultura do “salaryman” na vizinha nipónica) é prevalente em muitas grandes empresas de tecnologia do país, e implica trabalhar desde as 9h da manhã até às 9h da noite (21h) durante seis dias por semana. Muitos especialistas acusam este horário de trabalho como sendo a principal causa de problemas de stress, surgimento de doenças e, por fim, de morte nos trabalhadores.
Em 2019, o bilionário chinês Jack Ma, cofundador da gigante online Alibaba, lançou um artigo controverso ao continuar a defender o uso do “sistema 996”, afirmando que trabalhar 12 horas por dia é “uma bênção” e que se não existisse esse horário laboral, a economia chinesa “muito provavelmente perderá sua vitalidade e seu ímpeto”, segundo a BBC.
O “sistema 996” – de 72 horas de trabalho semanais – viola as leis laborais chinesas, que estipulam que um trabalhador não pode exceder as oito horas diárias, ou as 44 horas semanais. No entanto, a lei tem buracos e é possível contorná-la: os empregadores podem estender as horas de trabalho dos trabalhadores, com o consentimento destes, mas não podem exceder o total de três horas por dia ou 36 horas por mês. O sistema 996 pode aumentar este horário laboral para as 60 horas semanais.
Vários ativistas têm alertado para a urgência da situação e imensas legislações são publicadas para limitar as horas de trabalho, porém, provam ser ineficazes e facilmente contornadas.
Aqui ficam algumas reportagens que detalham mais sobre os assuntos:
- NOWNESS – Dying from ‘overworking’ – Japan’s toxic office culture
- VICE NEWA – Japan’s ‘Premium Friday’ Attempts to Stop Death by Overwork (HBO)
- CNBC – Why does Japan work so hard?
- VICE ASIA – The Extreme 996 Work Culture in China
No drama muita coisa não é desvendada sobre o passado de Moriyama Shota, mas possivelmente este era funcionário de uma grande empresa que o esgotou até às últimas capacidades físicas e mentais, levando-o, por exemplo, a tornar-se ausente em casa e a esquecer-se do aniversário da esposa. O terceiro episódio desvenda-nos um pouco sobre a irmã de Shota, que se suicidara aos 21 anos por causa de complicações relacionadas à procura de trabalho (‘job hunting’) que também tem o seu sistema – ‘shūkatsu’ – e as suas ansiedades.
Viver no Japão, como se sabe, não é barato. A família Moriyama acarreta ainda mais despesas para o seu orçamento, visto que têm um filho pequeno. Shota poderia ganhar dinheiro com o serviço que presta (o que não é um cenário muito longínquo do que acontece no drama), mas ainda insiste em apenas ter a tarifa de transporte e alimentação pagas.
Existe uma onda crescente de revolta contra a cultura de trabalho japonesa nos últimos anos e muitos dramas retratam essa colisão de jovens valores com o convencionalismo, aqui representado na jovem estrela de uma outra empresa, obcecada com o trabalho, cuja namorada deixa-o e o pai vê-o como uma desilusão por este não se ter tornado médico.
Alugar uma vida como um serviço
O aluguel de pessoas para serem amigos, namorados até companheiros de matrimónio, é um tipo de serviço bastante comum no país, e uma das facetas que carateriza o Japão. Existem agências de milhares de atores que se especializam nesse ramo e alguns desses individuais chegam a ser pais de centenas de crianças e namorados de tantas outras pessoas.
As pessoas recorrem a estes serviços para inúmeros eventos sociais, em que é esperado que compareçam com companhia.
Shoji Morimoto criou este serviço peculiar em 2018, onde se aluga um estranho para situações triviais, como é explicado no início de cada episódio do drama, em jeito de abertura. Depois de cada serviço, Shoji relata os seus pensamentos na sua conta Twitter, em forma de diário digital. As suas publicações nas redes sociais tornaram-se virais de tal forma que o japonês de 38 anos, para além deste drama, já inspirou a escrita de quatro livros, incluindo um mangá.
Morimoto conseguiu fazer sucesso num país onde a solidão é uma das deficiências da sociedade e uma preocupação do governo, que se vê na obrigação de criar um “Ministério da Solidão”, face ao escalar repentino da taxa de suicídio pela primeira vez em 11 anos, isto em 2020, em plena pandemia.
O drama traz importantes questões sobre as normas que a sociedade impõe sobre os seus cidadãos. Em poucas palavras, analisa a solidão e as pressões que a sociedade exerce sobre nós, no emprego, nos nossos relacionamentos, na nossa relação com a Internet e as redes sociais.
É um drama bastante clássico na sua estrutura, um ‘slice of life’ lento, cada episódio abordando uma lição de vida. É uma experiência muito agradável e fácil de se ver, visto que o drama apenas tem 12 episódios, de 30 minutos cada. O tom é bastante realista, uma lufada de ar fresco em contraste às reações exageradas das personagens e à comédia bastante estilizada.
Masuda Takahisa consegue trazer uma timidez, uma ingenuidade e uma bruta honestidade à sua personagem, que por vezes não é consciente de como o universo das interações interpessoais funciona, não percebendo certas nuances e respondendo às perguntas que lhe são feitas de modo literal, o que o torna socialmente desajeitado, jeito esse que é muito acarinhado pelos seus clientes.
Quem realmente junta esta malha de histórias individuais é a esposa do Sr. Rental, representada pela belíssima Higa Manami, que aceita as escolhas do marido e acompanha-o calorosamente na sua nova vida. Enquanto nos preocupámos com ela e com a sua família, vemos que ele não se encontra sozinho nesta jornada e aliás, muito bem acompanhado.
O drama funciona como um calmante, na medida em que o Sr. Rental não parte para este desafio com o objetivo de “mudar o mundo”: ele somente serve de acompanhante e observador em pequenas jornadas de autorreflexão de pessoas que ainda procuram pela sua razão de viver.
“Rental Nan mo Shinai Hito” oferece um olhar às falhas humanas e inspira-nos a olhar para o nosso interior e a dar-nos a devida atenção e carinho. Este drama é em certa medida, muito pessoal, enquanto eu – pessoa que se considera à parte das expectativas da sociedade. “Vive a vida, não te limites a sobreviver” tem um significado diferente de pessoa para pessoa e personifica-se em variadas coisas – um estilo de vida, o emprego de sonho, um jantar no restaurante preferido a cada sexta-feira, etc.
O Sr. Rental pode até pensar que faz apenas pequenos favores aos seus clientes, mas o impacto em que neles cria é inimaginável. O Sr. Rental, quando solicitado, não faz nada. Oferece companhia e apoio moral, livre de julgamento, às pessoas que necessitam – aqui, o nada adquire um valor inexplicável. Tal como diz o antagonista de Moriyama Shota: “I think you should continue being ‘Rent-A-Person-Who-Does-Nothing’. There is that much of a demand. There are really many situations that “require the presence of a person”. I think it’s an invaluable service.”
Um drama que emite conforto e esperança. Um escape às adversidades da vida.
*Citações retiradas da legendagem dos episódios, por parte de Irozuku Subs