A palavra “descartável”, no seu sentido geral, pejorativo, pode ter uma conotação até romântica na narrativa cinematográfica – algo descartável vem da liberdade de não ter nada a perder.
É a designação oficial do emprego do protagonista em Mickey 17, interpretado por Robert Pattinson, e dos 16 Mickeys que vieram antes dele – definitivamente, uma visão menos romântica sobre “ser descartável”. No ano de 2050, o desastrado Mickey (Robert Pattinson) e o seu excêntrico parceiro de negócios, Timo (Steven Yeun), escapam de um agiota sádico, voando para um planeta recém colonizado, governado por um exuberante ditador em crescimento, Kenneth Marshall (Mark Ruffalo).
Mickey 17 – Um filme de culto ‘in the making’
Através de flashbacks, descobrimos o papel de Mickey neste novo planeta Niflheim. Ele é responsável por testar tudo: os efeitos da exposição à radiação, a eficácia de uma vacina, a reação do corpo ao frio ou calor extremos. Portanto, um subalterno numa monótona odisséia espacial no planeta Nilfheim, Mickey é alocado para executar as tarefas mais perigosas e serve como cobaia em horríveis experiências ciêntificas. Quando morre, é simplesmente “re-impresso” numa nova versão de si próprio. Mickey Barnes é um crash-test dummy humano.
Ora, existe um problema: na missão em que ele acaba enterrado na caverna, a 17ª versão de Mickey é dada como morta, o que não é verdade. Este sobrevive graças a uma espécie alienígena amigável (e francamente adorável) chamada creepers e retorna à colónia, apenas para descobrir que uma 18ª versão dele já fora clonada. Os dois agora são chamados de Múltiplos – algo ilegal e proíbido em Niflheim. A punição? Morte — para ambos.
O governo deste país são os capitães da nave: o político fracassado Kenneth Marshall (Mark Ruffalo), e a sua esposa, Ylfa (Toni Collette). Os Marshalls são egomaníacos, cruéis, delirantes, com um óbvio bronzeado artificial e uma base de fãs fanática, que se distinguem facilmente por usarem todos a mesma peça de vestuário. Uma alegoria algo “on the nose”.
Os filmes de Bong têm sempre o seu comentário social, mas em Mickey 17, o mestre do cinema sul-coreano vai direto ao ponto, como nunca antes. Adaptado do romance Mickey7, de Edward Ashton, Bong aborda vários tópicos de uma vez, muitos dos quais ele já explorara anteriormente. É como se ele tivesse combinado a luta de classes de Parasita e SnowPiercer, com os temas ambientais de O Hospedeiro e Okja, além de uma história pessoal sobre autoconfiança e encontrar uma comunidade. É aí que Mickey 17 falha.
O filme vacila muitas vezes na borda do exagero, ficando artificial e longe de ser uma sátira decente. À medida que a novidade da reencarnação e eventual duplicação de Mickey vai desvanecendo, o filme não consegue depois encontrar o seu verdadeiro ritmo. A performance de “vilão perfeito” de Ruffalo, que recebe mais espaço na segunda metade, acaba por sobrepor a declarações mais interessantes que o realizador pretende fazer. No entanto, o elenco brilha: Toni Collette, mais uma vez, entrega uma performance absurdamente complexa, simultaneamente assustadora e manipuladora. Naomi Ackie explora o lado romântico da história, sendo uma excelente parceira de cena para Pattinson.
Quem realmente brilha, e não é por menos que ele é o protagonista, é Robert Pattinson. Pattinson mostra que se destaca sempre que tem a oportunidade de interpretar personagens excêntricas, e Mickey 17 é Pattinson na sua forma mais peculiar. Entrega-se a este duplo papel, dando a cada clone as suas próprias personalidades distintas. Como Mickey 17, Pattinson é tímido, nervoso, com uma voz aguda e completamente submisso. Já Mickey 18, é assertivo, insensível e propenso à violência. Mesmo compartilhando o ecrã consigo mesmo, Pattinson consegue desapegar as duas personagens e torná-las indivíduos únicos.
Mickey 17 é um filme estranho. Embora seja uma comédia de ficção científica sombria e excêntrica à primeira vista, o primeiro filme de Bong Joon Ho após o sucesso de Parasita (que lhe deu uma carrada de Óscares), é uma ambiciosa matrioska de ideias e tons misturados num pacote inusitado. O resultado final é algo divertido e totalmente único, mesmo que falte a precisão afiada dos seus trabalhos anteriores.
Embora, narrativamente, possa parecer menos ousado do que outras obras-primas de Bong, Mickey 17 é uma análise envolvente sobre a morte num mundo capitalista e a emancipação corporal. Quem está à procura de ver Bong de Parasita, vai ficar desapontado. Não obstante, encontra Bong de Okja, com a mesma habilidade de sempre, que confirma que ele continua a ser um dos cineastas mais interessantes hoje em dia.
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