
Até quão longe temos de ir para saber a verdade? Quantas versões de um acontecimento singular, isolado no tempo, teremos de testemunhar para saber a verdade, ou então, criar a nossa própria versão e consequentemente, a nossa própria verdade? Será que a verdade é um conceito único, ou um conceito único a cada um de nós? Na verdade, o que é a verdade? O conceito da verdade na filosofia é pano para muitas teorias. Para Descartes ou Kant, a verdade pode ser a ligação entre o nosso pensamento e o que no que nos rodeia, o que existe no mundo.
Pensemos na forma como o ser humano, ser pensante, absorve o mundo – empiricamente, por experiência própria. E por influência das esferas socioculturais que nos ajudam a moldar o nosso conhecimento. No entanto, à medida que o ser humano desenvolveu a cognição, deu importância ao que os outros lhe dizem e embebe essa informação como verdade, tão fácil e rapidamente, que naturalmente se torna em sabedoria recebida, para passar a outros. É este conhecimento, em forma de rumores, estereótipos, doutrinas e crenças, que são passadas de boca em boca. Muito do que escolhemos em acreditar depende destas fontes duvidosas.
A linha do de tempo que se desenrola neste mais recente filme de Koreda Hirokazu começa com um incêndio e termina durante uma cheia. Estes desastres naturais, e um frágil conjunto de eventos que dança em corda bamba entre eles, são vistos a partir das perspetivas de três personagens, entrelaçadas numa luta confusa para a compreensão: um rapaz, a sua mãe e um professor.
A verdade desdobra-se em três perspetivas em “Monster”: o filme introduz uma jovem viúva, Saori (Sakura Ando), e o seu filho Minato (Soya Kurokawa), que está no quinto ano de escolaridade. Saori começou a notar alguns comportamentos erráticos no rapaz: cortes de cabelo impulsivos; o seu quarto sujo e destruído; mudanças de humor e sapatilhas perdidas. E enquanto que estas atitudes possam ser desculpadas pela puberdade, um dia, ele chega a casa com a orelha ligada e histórias de que teria sido agredido pelo Professor Hori. Contudo, Minato não é o único que age de uma forma estranha, já que as várias reuniões com que Saori tem com a direção da escola, esta é recebida com olhares em branco, desassociação e declarações politicamente corretas e ensaiadas. Finalmente, o Professor Hori profere que é Minato que anda a intimidar Yori, um dos seus colegas de turma. A mãe de Minato inicia então a sua procura pela verdade.
O enredo de “Monster“, escrito por Yuji Sakamoto, reinicia-se e muda o seu foco para a perspetiva do Professor Hori. Como seria de esperar, Minato não contara toda a verdade à sua mãe. Yori sofria de bullying, sim, mas não da parte dele - no grupo dos agressores, para além dos colegas de turma, também fazia parte o pai de Yori, que ingressa numa autodeclarada terapia de choque para curar o seu filho do seu “cérebro de porco”. A reitora, aparentemente devastada pelo luto do seu neto, não nutria sentimentos nenhuns para com a sua comunidade escolar, e o professor Hori no meio de posturas e frases sem conteúdo, escondia algo mais. No entanto, aprendemos mais sobre o que realmente acontece com Minato e Yori, dois amigos íntimos que vivem na sua própria bolha, deles apenas.
Mestre em explorar as temáticas de família, Koreeda apresenta-nos este tríptico “Monster”, mais esquemático do que a maioria das suas obras, mas igualmente exigente, delicado e naturalista. O filme, reminiscente do estilo narrativo de “Rashomon”, reinicia-se a partir de um ponto de ignição literal de um incêndio na paisagem urbana de Tokyo: um prédio engolfa-se em chamas. A cada reset, descobre-se os fios das mentiras e de como estas afetam as personagens, dobrando a narrativa num ângulo diferente a cada vez, antes de finalmente revelar quem ateou o fogo.
Em contraste com “Rashomon”, de Akira Kurosawa, onde várias versões sublinham a falta de credibilidade das perceções individuais, a verdade em “Monster” é concreta – é o perpetrador que incendiou o edifício, o agressor de Minato, o “monstro”. Contudo, a sua interpretação é subjetiva. A verdade é mais complexa e multifacetada do que a que os protagonistas, e os espectadores, conseguem compreender. O monstro (aqui, sendo algo amorfo), reside não somente nas personagens que cometeram os atos, mas também naqueles que correm para conclusões precoces. A narrativa em boneca matrioska desafia o público a resistir a julgamentos precipitados, apontando para os perigos de se simplificar demais e de se ignorar o que é complexo.
Quem poderia ter sabido, ou realmente testemunhado tudo o que acontecera, e por que todos os envolvidos não responderam à situação de uma maneira mais sensata e inteligente?
“Monster” não é realmente sobre quem fez o que fez ou por que é que o fez. Muito é explicito e explicado, e muito também fica implícito. Saori não se torna numa vilã depois de descobrirmos de que ela estava errada em atacar Hori e Fushimi sem saber toda a verdade. E, enquanto Fushimi faz um discurso sentido no final, as suas respostas inflexíveis e atitudes apáticas ao desespero de Saori não parecem serem muito melhores em retrospetiva.
Como é usual em Koreeda, uma pergunta como “Quem é o monstro?” é sempre ardilosa. Como vemos, não há nada mais ou menos real sobre Minato, Yori ou o professor Hori, quando aprendemos sobre o que eles fizeram e quais as suas intenções. “Monster” une um grupo de estranhos, não pelas suas experiências mútuas, mas pela sua procura por significado em como se veem e cuidam uns dos outros.
É incrível ver uma personagem complexa como o professor Hori, inicialmente descrito como um agressor pervertido, sendo desflorada em consequências, e não colocada a um canto na narrativa. Todos, por mais monstruosos – e estas conceções das pessoas que temos, construídas à imagem do não-dito e desdito – que pareçam ou soem, têm, em essência, um espaço para a sua redenção.
Koreeda demonstra mais uma vez a mestria em direção de atores, especialmente com crianças. O desempenho de destaque de Kurokawa Soya como Minato transmite o tumulto interno que assola cada criança confrontada com escolhas divisivas. No retrato de Minato, testemunhamos uma representação magistral do profundo senso de injustiça que as crianças enfrentam, inseguras do curso apropriado de ação que têm que seguir, levando a fogos de emoção bruta como uma forma de emancipação catártica.
Retornando ao país natal depois de realizar dois filmes relativamente dececionantes (“Broker” e “La Verité“), o vencedor da Palma de Ouro de 2018 mostra-nos uma história de esperança em quatro atos: o de Saori, o do professor Hori, o de Minato, e o nosso.
Também podes gostar de:
Análises
Até quão longe temos de ir para saber a verdade? Quantas versões de um acontecimento singular, isolado no tempo, teremos de testemunhar para saber a verdade, ou então, criar a nossa própria versão e consequentemente, a nossa própria verdade? Será que a verdade é um conceito único, ou um conceito único a cada um de nós? Na verdade, o que é a verdade?
Os Pros
- direção de atores infantis excelente
- trilha sonora de mérito, executada pelo falecido Ryuichi Sakamoto
- cinematografia impressionista de Ryuto Kondo
Os Contras
- precisaria de um quarto ato: a perspetiva de Yori