Passamos tempos difíceis, já o sabemos. Declarado o estado de emergência no nosso país, as pessoas passam a estar autorizadas a sair de casa para ir comprar alimentos, receber cuidados de saúde, comprar medicamentos, passear o cão e até correr no parque. Mas sempre sozinhas e mantendo o distanciamento social.
Estas restrições à circulação procurarão mitigar os efeitos da atual crise de saúde pública sobre a vida das pessoas e a economia. Mas a entrada em vigor do estado de emergência dá ao Governo e às autoridades de Estado o poder de atuar de forma a impedir, a punir ou a criminalizar quem desrespeitar as regras em vigor para impor o distanciamento social e travar o contágio. O regime adotado não é bem uma quarentena, mas é preferível não sair de casa desnecessariamente.
Além de muitas instituições suspensas, como universidades, escolas e outros, as salas de cinema estão fechadas. Para os que não estão habituados a passar muito tempo em casa, a oferta de streaming pode ajudar. Enquanto cineasta e cinéfila, digo que é este o momento certo para procurar novas inspirações e reviver bons filmes.
Deixo-vos aqui uma lista de 10 grandes clássicos do cinema japonês (à minha escolha), a primeira de uma série que visita o cinema asiático em tempos de pandemia.
Em tempos de quarentena, quem tem ecrã é rei. Votos de uma boa quarentena cinéfila!
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Uma Quarentena Cinéfila – Clássicos do Cinema Japonês
Viagem a Tóquio (1953)
“Viagem a Tóquio”, um filme do mestre japonês Yasujiro Ozu, considerado por muitos como o melhor filme de todos os tempos, conta a história de Tomi e Shukichi, um casal de idosos que viajam para Tóquio para visitar os filhos. Mas quando chegam não são bem recebidos, face a uma barreira de indiferença e ingratidão.
Numa sociedade onde a distância entre gerações é cada vez mais diferenciada e isolada entre elas, e agora por razões de urgência pública, percebemos que, no meio desta correria toda a que o quotidiano nos obriga(va), a vida é uma passagem simples do tempo e nós somos meros passageiros.
Yasujiro Ozu, o autor de obras intemporais como “Primavera Tardia” ou “O Gosto do Saké”, encapsula neste “Viagem a Tóquio” as memórias da relação dos protagonistas, do crescimento dos seus filhos, da II Guerra Mundial, das transformações do território no pós-Guerra e das adversidades e felicidades que viveram.
Os Sete Samurais (1954)
Lançado em 1954, “Os Sete Samurais” é o filme mais aclamado do mestre Akira Kurosawa, uma das grandes vozes do cinema japonês no pós-guerra, vencedor do Leão de Prata no Festival de Veneza e influenciador de muitos outros conhecidos realizadores, como Quentin Tarantino.
“Os Sete Samurais” conta a história de sete samurais sem mestre que são contratados por agricultores para combaterem criminosos que lhes roubam as colheitas de um ano inteiro.
A obra trouxe inovações ao género de guerra, ao ponto de muitas filmes de batalha copiarem a fórmula de Kurosawa – as cenas de morte em slow motion e os batalhões que surgem lá do alto do cimo de uma montanha prontos para a batalha. Apresentando uma forte componente histórica e uma crítica social atrevida do Japão do século XVI, com um visual duro, realístico e poético, Kurosawa pincelou os seus filmes históricos com o dinamismo típico dos western, exercendo uma enorme influência nos realizadores ocidentais, sendo um dos filmes preferidos da Film School Generation dos anos 70 nos Estados Unidos, e estando frequentemente colocado no topo das listas de melhores filmes.
O Funeral das Rosas (1969)
Não há algo mais transgressor em matéria de arte e de política do que fazer um filme não-linear e experimental sobre travestis e transexuais no Japão da década de 60. “O Funeral das Rosas” é o retrato inovador da subcultura gay japonesa.
O realizador, Toshio Matsumoto, faz parte da chamada “new wave japonesa”, uma espécie de nouvelle vague da Ásia, que introduziu novas técnicas ao cinema da época.
“O Funeral das Rosas” segue uma jovem travesti e os seus companheiros, amantes e desafetos, pessoas com as quais cruza pelas ruas de um Japão transformado, seco, real. Fugindo a uma família disfuncional, a travesti Eddie faz carreira como dançarina num cabaré em Tóquio. Atualmente, é a estrela do lugar, destronando Leda, a antiga diva, tanto no trabalho quanto nas atenções do dono do local, Gonda.
Para Matsumoto, é importante subverter as regras. Talvez por isto, “O Funeral das Rosas” seja uma obra que tanto perdura nos cânones do cinema mundial, continuando a influenciar realizadores ainda nos dias de hoje.
Ran – Os Senhores da Guerra (1980)
Muito do cinema de Akira Kurosawa influenciou diretamente o cinema americano. Hollywood adaptou ao cinema filmes como “Os Sete Magníficos” (1960); “Ultraje” (1964); “Por um Punhado de Dólares” (1964), inspirados respetivamente em “Os Sete Samurais” (1954), “Às Portas do Inferno” (1950) e “Yojimbo – O Invencível” (1961).
A obra-prima de Kurosawa adapta, ou alitera, “Rei Lear”, escrito por William Shakespeare, aos temas e ambientes do Japão Medieval, quando um velho “senhor da guerra” divide as suas posses pelos três filhos, desencadeando uma luta de poder entre os irmãos.
“Ran” foi o último grande filme de Kurosawa, 13 anos antes da sua morte em 1993, um verdadeiro fresco de reflexão sobre o poder, influenciado por um dos maiores clássicos literários do ocidente e pela história e misticismo do Japão do século XVI.
Esta grandiosa produção foi galardoada com o Óscar para Melhor Guarda-Roupa e vários BAFTA.
Fogo de Artifício (1997)
Takeshi Kitano é o grande nome das artes contemporâneas japonesas. Nascido em 1947, tornou-se ator, realizador, guionista e influenciou o cinema nipónico, pela sua sensibilidade única e pelo modo como a sua estética inteligente mescla-se com histórias profundamente humanistas.
Em “Fogo de Artifício“, Kitano, para além de exercer os cargos de realizador e guionista, é também ator e constrói um mundo violento e moderno, mas carregado de sentimentos. Kitano é Nishi, um polícia, cuja mulher (Kayato Kishimoto) morre de leucemia, doença que já o tinha feito perder o filho. Este procura um mundo pacífico e tranquilo, onde possa refugiar-se.
O que mais impressiona em “Fogo de Artíficio” é a lógica de Kitano para a felicidade, pois o cinema é, acima de tudo, guiado pela ternura, por mais violência que se veja no ecrã.
Takeshi Kitano ganhou o Leão de Ouro do Festival de Veneza de 1997.
Ringu (1998)
Falando em cinema de género, o Japão é rei no terror, um género onde privilegia a psicologia, trabalha mais a alma e a atmosfera do macabro.
No horror japonês, o mal é um facto consumado – ele existe, mas não quer destruir necessariamente tudo o que vê pela frente. Em “Ringu”, o mal contenta-se em fazer parte de um jogo mortal.
“Ringu“, de Hideo Nakata, foi um enorme sucesso de bilheteira dentro e fora do Japão, e o seu enredo chamou a atenção de Hollywood que comprou os direitos para um remake, realizado em 2002 por Gore Verbinski. O filme conta a história de um grupo de pessoas que morrem tragicamente após verem uma misteriosa curta-metragem em VHS. Uma jornalista passa a investigar o caso e após ela mesma ver o vídeo amaldiçoado, a sua investigação transforma-se na sua luta pela própria vida. Nakata criou uma obra de impacto, na qual as próprias perceções de bem, mal e vingança tornam-se difusas. “Ringu” foi e é um filme importante, tanto no Japão como no resto do mundo.
Battle Royale (2000)
Já nos imaginamos a viver numa sociedade em que os adolescentes são obrigados a assassinarem-se uns aos outros?
“Battle Royale”, inspirado no livro popular “Batoru Rowaiaru” de KoushunTakami, o realizador Kinji Fukasaku leva-nos para um Japão totalitário, no qual a violência e a delinquência juvenil chegaram a níveis insustentáveis e onde, de tempos em tempos, o governo seleciona uma turma de estudantes para se matarem numa espécie de jogo. Os jovens são levados para um local isolado, recebem mantimentos mínimos e uma arma aleatória. Apenas um poderá sobrar no final, caso contrário, todos morrem.
Deste conceito que, facilmente, poderia tornar-se num clássico, resulta um filme um pouco problemático, que usa o impacto e a violência para ocultar as suas fragilidades no guião e o amadorismo na interpretação, tirando Takeshi Kitano (que elencou “Fogo de Artíficio” [1997], mencionado anteriormente)
No fundo, “Battle Royale” é uma crítica extrema ao sistema de educação japonês, onde, essencialmente, o aluno tenta sobreviver no meio de um cenário claustrofóbico (a sala de aula) e mortífero (pressão, competição, bullying, etc.).
A Viagem de Chihiro (2001)
Uma lista de clássicos japoneses sem um filme do estúdio Ghibli, não é uma lista de clássicos do cinema nipónico.
“A Viagem de Chihiro” é uma animação japonesa que esteve nos holofotes de Hollywood e do mundo. A longa é produzida pelo Studio Ghibli, que fez outras produções como “O Castelo Animado” e “A Princesa Mononoke”, que estão agora disponíveis na NETFLIX.
“A Viagem de Chihiro”, segue, pois, Chihiro, uma menina que está em processo de mudança de casa para outra cidade e, como todas as crianças, não aceita o fato de ter que deixar os amigos para trás. Durante a viagem de carro, os pais resolvem seguir um atalho e chegam a outra cidade, estranhamente vazia, porém com uma enorme quantidade de barracas de comida. A noite cai aos poucos e seres estranhos começam a aparecer na cidade. Esses seres não são exatamente espíritos e não toleram humanos. Para salvar a família, Chihiro vive as mais fantásticas aventuras.
Miyazaki, como nenhum outro, captura a nostalgia, as perdas e o amadurecimento em períodos de transição — de Chihiro e também do próprio Japão. Chihiro é uma das mulheres mais fortes de Hayao, que sempre as retrata de maneira subtil e realista. “A Viagem de Chihiro” é de facto, uma viagem, por meio de mensagens sensíveis e agridoces, de identidade, de personalidade, de caráter e de amor.
“A Viagem de Chihiro” venceu o Urso de Ouro do Festival de Cinema de Berlim e do Óscar de 2003 de Melhor Longa-Metragem de Animação.
Podem ler a análise do ptAnime AQUI.
Ninguém Sabe (2004)
Aqui entram os clássicos à minha escolha. Hirokazu Kore-eda é um dos meus realizadores japoneses contemporâneos preferidos, e ele filma as dinâmicas familiares como nenhum outro conseguiu.
Baseado numa história verídica que chocou o Japão no final dos anos oitenta, “Ninguém Sabe”, um filme de culto de baixo orçamento, conta a história de uma mãe e dos seus quatro filhos de pais diferentes que se mudam para um pequeno apartamento em Tóquio. Um dia, esta deixa-os para trás e o seu filho mais velho, de 12 anos, terá que cuidar dos outros meninos, na esperança de que a sua progenitora volte um dia.
Os sentimentos das personagens são apresentados quase totalmente contidos, sem explosões ou confrontos. Kore-eda capta toda a intimidade da rotina dos irmãos dentro daquele pequeno apartamento, onde paira a iminente sensação de calamidade, mas sem qualquer claustrofobia. Esta falta de sentimentalismo chega a incomodar e provoca um certo sentimento de culpa em quem vê. Daqui fica: o que acontece depois de se perder uma infância à qual nunca se teve direito?
É importantíssimo destacar Yuya Yagira no papel de Akira, que levou a Palma de Ouro em Cannes em 2004.
Shoplifters: Uma Família de Pequenos Ladrões (2018)
Hirokazu Koreeda regressou em 2018 ao espaço familiar, ao universo infantil, e às relações entre crianças e adultos.
“Shoplifters“ segue uma família liderada por Osamu (Lily Franky) e pela sua esposa Nobuyo (Sakura Ando), que não podem sequer dar-se mais ao luxo de fazer sexo. Na meia-idade, e realizando biscates onde podem, o casal vive apertado numa zona escondida da sociedade e da cidade japonesa, com o seu filho pré-adolescente, Shota (JyoKairi), a irmã mais velha de Nobuyo, Aki (MatsuokaMayu), e a frágil avó Hatsue (KirinKiki, recém-falecida, no dia 15 de setembro desse ano), cuja pensão mensal é a única coisa que impede a família de se afundar no abismo financeiro.
“Shoplifters” é um mundo oculto por trás das fachadas da arquitetura vanguardista japonesa, movido por regras pouco canónicas, e o reflexo de que nós não podemos escolher a nossa própria família, mas a nossa família ainda é uma escolha, a qual nós temos que fazer repetidamente, todos os dias. É um retrato classista de um Japão canónico, e uma procura, do realizador, de uma simbolização que abarque estas realidades do espírito humano.
Podem ler a análise do ptAnime, AQUI.
Estes são 10 clássicos do cinema japonês que qualquer amante de cinema deve ter na sua lista. Recomendam alguma outra obra para uma quarentena cinéfila?
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