O trabalho do mestre Hayao Miyazaki é dos mais intensivamente estudados e discutidos da história do anime em particular, e da animação em geral. Como tal, chegar ao seu 12º filme enquanto realizador, e 15º enquanto escritor, e mesmo assim maravilhar-nos com algo tão fresco, é um feito apenas à altura do “eterno ex-reformado” mestre.
Kimitachi wa Dou Ikiru ka, título japonês do filme The Boy and The Heron (O Rapaz e a Garça), inclui muita da estranheza fantástica que tão bem conhecemos da filmografia de Miyazaki-sensei, contendo, em igual medida, uma onda de realidade e introspecção apenas reservada a alguns dos seus títulos, como Kaze Tachinu (The Wind Rises – 2013). Ainda assim, e como núcleo deste pequeno exercício de escrita, considero que este novíssimo filme é, de todos os 15, o que mais revela sobre o próprio Hayao Miyazaki.
The Boy and the Heron – Hayao Miyazaki a Nu
Está na altura então de elaborar sobre o título do artigo. Porquê, “Hayao Miyazaki a nu”? O próprio título do filme em japonês é indicador do cunho que o mestre queria deixar com esta produção. Kimitachi wa Dou Ikiru ka. é o título de um romance de 1937 por Genzaburō Yoshino que acompanhou o próprio Miyazaki durante os seus tempos de escola. A mensagem do livro, que termina com a questão deixada aos leitores – E tu, como vives? – está refletida no filme na figura do protagonista, Mahito Maki, que possui o livro como uma lembrança/herança da sua mãe.
Essa está longe de ser a única semelhança que o protagonista tem com o seu criador. Tal como Mahito, o pai de Miyazaki, Katsuji Miyazaki, trabalhava na construção de aviões de guerra; tal como Mahito, Miyazaki assistiu em primeira mão à devastação causada por bombardeamentos da Segunda Guerra Mundial – no caso do realizador, o bombardeamento de Utsunomiya em julho de 1945, quando este tinha apenas 4 anos. Ainda que não tenha perdido a sua mãe na tragédia, tal evento marcou fortemente o jovem Miyazaki, sendo isso palpável na concepção da cena introdutória do filme, assim como o seu trabalho em Kaze Tachinu (The Wind Rises).
Mahito está longe de ser o protagonista otimista e vibrante de outros filmes do mestre, sendo escrito com uma complexidade silenciosa, silêncio esse que esconde a injustiça e dor que sente pela perda súbita da mãe. Neste elo, encontramos também a ligação umbilical entre Mahito e Miyazaki. A admiração e proximidade do mestre com a sua mãe está bem documentada. Yoshiko, a mãe de Miyazaki, foi descrita como uma mulher frugal, exigente e intelectual, e uma fonte de inspiração para o realizador, sobretudo na sua obra.
É talvez por isso fácil de perceber como a vasta maioria das personagens mais sábias, resilientes e modelo do mestre são personagens femininas. Não me parece exagero dizer que Hayao Miyazaki sempre teve o condão da escrita no que toca a personagens femininas, e isso está mais do que presente em The Boy and the Heron. Três das personagens mais importantes, a par do protagonista, são três personagens femininas (imagem acima) – cada uma numa fase da vida diferente – e cada uma com a sua relação com Mahito, mas similarmente marcante.
Depois de unir todos estes pontos, e de ver o Mahito como um avatar do próprio Hayao Miyazaki, senti ainda mais apreço pelo filme. Sim, o filme tem momentos bizarros, engraçados, aleatórios e mágicos, mas nunca perde o coração, a alma, e o propósito. O regresso de Hayao Miyazaki prova o quanto o mestre ainda pode fazer. Mesmo que ele seja famoso pelas palavras “anime é um erro”, é igualmente famoso por mostrar o quanto esse “erro” pode ser um milagre.