O que seria inicialmente uma esplêndida iniciativa onde muitos fãs da franquia Pokémon poderiam usufruir de uma parceria original e inusitada, que fundia a sua paixão pelas criaturas que, por norma, estão habituados a ver nas consolas da Nintendo ou nos ecrãs dos telemóveis e televisões, e a maravilhosa arte de um dos pintores mais emblemáticos do século XIX, acabou por ser um desastre tremendo, tudo por causa do sentimento atroz da ganância.
A tragédia que juntou a ganância, Pokémon e Van Gogh, e o porquê de não podermos ter coisas boas
Vamos então por partes para explicar toda a situação.
Afinal o que é que se passou?
Em setembro de 2023, o ptAnime noticiou todos os detalhes acerca da parceria entre a The Pokémon Company International e o Museum Van Gogh, em Amesterdão, para a colaboração artística especial “Pokémon x Van Gogh” que, à data de escrita deste artigo, ainda se encontra em curso até ao dia 7 de janeiro de 2024, e cujo objetivo principal consistiu em apresentar a obra de Vincent Van Gogh a novos públicos aquando das celebrações do 50º aniversário do museu.
Exciting news! 🎁 Our collaboration with @Pokémon starts tomorrow and runs until 7 Jan 2024. Come and visit the presentation or complete the art-hunt to receive a Pokémon TCG promo card 🕵️♂️🕵️♀️ (subject to availability). See you soon? pic.twitter.com/YD5CxahXq2
— Van Gogh Museum (@vangoghmuseum) September 27, 2023
Entre as várias atividades que o museu preparou para os visitantes, uma delas consistia em preencher um folheto “Pokémon Adventure” ao longo da visita pelas várias áreas onde a exposição é exibida e, uma vez concluído, poderia ser trocado por uma carta promocional exclusiva do Pokémon Trading Card Game intitulada “Pikachu with Grey Felt Hat“, uma clara referência a uma das obras mais famosas de Vincent Van Gogh conhecida por “Self-Portrait with Grey Felt Hat.
O facto da carta ser limitada ao stock existente, estar disponível apenas fisicamente no museu de Van Gogh e ser uma carta promocional exclusiva e temporária de um evento histórico deste calibre, – para além da clara beleza do design da carta – tornou aquilo que seria uma iniciativa fabulosa dedicada aos mais jovens, numa caça ao tesouro caótica onde adultos gananciosos se debatiam pelo pedaço de cartão, numa tentativa de conseguirem garantir posteriormente a sua venda online por um preço exorbitante: o infame ato conhecido por scalping.
This makes me so sad and is why we can’t have nice things
— Joe Merrick (@JoeMerrick) September 28, 2023
I saw so many wanting to go over in the first few days just to get any card and merch to resell. This is not an acceptable practice. If you do that, shame on you. https://t.co/vVHLHhVyZ1
Scalping… Será possível elaborar o significado?
O ato de scalping tem uma origem predatória que se manifesta pela oportunidade de vender um item de difícil acesso por um valor muitas vezes superior pelo qual o mesmo foi obtido.
Um exemplo recente não relacionado com este acontecimento da carta do Pikachu de Van Gogh, mas que também foi bastante famoso, introduzindo muitas pessoas a este conceito, foi a venda da consola PlayStation 5.
A consola foi lançada praticamente em todas as regiões em novembro de 2020, uma altura crítica em que o mundo se encontrava em plena pandemia global de Covid-19. A necessidade de quarentena pela enorme quantidade de casos de infeção durante o final do ano de 2020 e o decorrer de 2021, originou uma redução considerável na mão de obra e no material necessário para a construção das consolas, provocando uma limitação de stock sem precedentes.
Graças a esta realidade, as unidades que ficavam disponíveis esporadicamente nos websites das lojas esgotavam em poucos minutos. E numa situação destas existem dois tipos de pessoas: as que compram para si ou para oferecer a pessoas próximas; e as que compram para poderem vender online por um preço mais elevado assim que o stock voltar a esgotar.
E porquê? “Porque se não existir stock… a quem mais irão comprar senão a mim, mesmo estando eu a vender ao dobro do preço…?”. Era esta a triste realidade…
E, como mencionado anteriormente, foi em parte por aí que a situação no museu de Van Gogh se deu. Mas nesse caso há mais fatores, todos eles tornando a carta mais rara / difícil de obter. Para um português conseguir a carta teria que viajar para Amesterdão, visitar o museu e concluir a atividade, o que não seria propriamente viável de um ponto de vista financeiro…
E foi a pensar nisso que a venda deste item em sites como o CardMarket e o Ebay começou a ser uma realidade. E quem a obtivesse primeiro teria vantagem sobre todos os outros scalpers.
E assim, infelizmente, venceu a ganância. A procura por lucro sem qualquer esforço ou dificuldade manifestou todo o caos que acabou por manchar toda esta colaboração. A certo ponto, e dependendo muito da zona de comparação, os valores da carta no mercado secundário poderia ultrapassar o valor conjunto de um bilhete de avião para Amesterdão e de um bilhete para visitar o museu, o que era totalmente absurdo.
Ok, certo… Mas porquê uma carta de Pokémon? Afinal, é só um pedaço de cartão… não é?
Existem alguns pontos que explicam o acontecimento, ainda que nada justifique tal comportamento. Vamos por partes, e começamos já pelo mais óbvo:
- Pokémon Trading Card Game é um jogo de cartas bastante famoso
Tendo-se iniciado em 1996 no Japão e em 1999 nos Estados Unidos da América, por volta da mesma altura em que os videojogos de GameBoy (Pokémon Red e Green no Japão e Pokémon Red e Blue no resto do mundo) chegaram a esses países, respetivamente, o jogo de cartas foi impulsionado pelo sucesso comercial dos cartuchos.
Sendo que a versão inglesa foi publicada pela Wizards of the Coast até 2003, a empresa responsável por Magic: The Gathering, o jogo de cartas mais conhecido e jogado do mundo, também foi um impulsionador de certa forma para o sucesso do produto no ocidente, dado o fator qualidade a que a empresa já era associada.
Em 1998 no Japão, e dois anos depois no resto do mundo, foi lançado também um videojogo para GameBoy baseado exclusivamente no jogo de cartas, com o título de “Pokémon Trading Card Game“.
Com o passar do tempo, a franquia Pokémon ganhou uma popularidade sem precedentes. O sucesso dos videojogos, e o surgimento do anime que apresentou o universo das criaturas a muitas crianças, levou a uma maior procura por merchandise, sendo as cartas um dos itens mais requisitados por conseguir imitar na perfeição a base do sucesso de Pokémon: “apanhá-los todos”.
As cartas eram divididas em expansões lançadas com poucos meses de diferença e, devido à quantidade de novas cartas em cada uma, o interesse em colecioná-las era constantemente renovado.
Ainda em 2002, a Wizards of the Coast organizou o primeiro campeonato do mundo de Pokémon TCG, em Seattle, dando uma visão mais séria e competitiva sobre o jogo de cartas, chamando assim a atenção de mais faixas etárias. Os campeonatos do mundo continuaram a partir de 2004, já sob a alçada da Pokémon Company, sendo ainda hoje um sucesso absoluto.
- O que é que o Logan Paul e o Post Malone têm em comum?
No ponto anterior referi motivos que fizeram com que o Pokémon TCG tivesse sucesso no passado, durante os primeiros anos da sua existência. Algumas das justificações ainda se mantém válidas, no entanto, nada se compara ao número de vendas que a The Pokémon Company tem conseguido atingir nos últimos 3 anos, SÓ com o jogo de cartas.
Como é possível verificar no artigo acima, entre março de 2021 e março de 2023 foram vendidas cerca de 18.8 mil milhões de cartas Pokémon, de um total de 52.9 mil milhões desde o lançamento do jogo. Isto significa que desde março de 2021 foram vendidas cerca de 35.54% de todas as cartas Pokémon que circularam a certo ponto no mercado.
Mas a que se deve este aumento de interesse nas cartas? Bem, tudo começou precisamente há cerca de 3 anos, em setembro de 2020, quando o famoso YouTuber Logan Paul comprou uma booster box primeira edição do Base Set de Pokémon, a coleção original lançada em 1999 nos EUA.
A caixa estava selada há 21 anos e já era considerada um item de coleção extremamente valioso, sendo que a transação realizada por Logan Paul para a obtenção da mesma custou um total de 216.000 dólares.
O burburinho à volta do feito só aumentou quando a 9 de outubro de 2020, Logan Paul realizou uma livestream na qual abriu a caixa com os 36 packs, sendo que vendeu cada um deles a 11.111 dólares a fãs interessados. O pack destinado ao comprador Kevin Teller, conhecido também pelo seu nickname Papaplatte, foi aberto ao minuto 1:00:52 e continha a carta mais rara do Base Set. Nada mais, nada menos do que um shadowless Charizard, avaliado em cerca de 85.000 dólares.
Estes valores altíssimos começaram a correr os meios de comunicação. Mas não ficavam por ali.
Apenas 5 dias após a livestream, a 14 de outubro de 2020, Logan Paul lançou mais um vídeo de Pokémon TCG. Desta vez, Logan Paul havia comprado o seu próprio Charizard, pela mera quantia de 150.000 dólares.
Resumindo a situação: em 2017 um homem chamado Gary, conhecido como “Pokémon King” participou num reality show chamado “Pawn Stars” onde as pessoas levam itens raros para serem avaliados e vendidos na hora. Gary levou toda a sua coleção de Charizards para o programa com o intuito de a vender por cerca de meio milhão de dólares, no entanto foi recusado. Coleção essa que entretanto tinha valorizado 10 vezes mais, à data de 2020, quando Logan Paul o interpelou.
Nessa coleção, Gary continha duas cartas simplesmente perfeitas. As cartas em si eram dois Charizard do Base Set original de Pokémon TCG. Porquê “perfeitas”? Porque são cartas que se encontravam avaliadas por uma entidade competente chamada Beckett Grading Service, que atribui um score a uma carta consoante o seu estado de conservação. Acontece que estes dois Charizards, já raros por si só, tinham recebido a nota máxima de conservação, tornando-os únicos no mundo inteiro.
E claro, Logan Paul queria o seu próprio Charizard e acabou por conseguir comprar uma das cartas perfeitas a Gary.
Houve um outro momento de destaque envolvendo Logan Paul e o seu BGS 10 Charizard quando o próprio o usou ao peito, como se de um colar se tratasse, durante a sua entrada para o ringue momentos antes do combate contra o famoso pugilista Floyd Mayweather.
Uma vez mais, este feito foi notícia em todo o lado e a loucura por Pokémon TCG começava a alcançar novos altos nunca antes imaginados. A capacidade de fazer dinheiro com cartas e a sua ostentação levou a uma maior procura pelos produtos e, consequentemente, o interesse partiu de vários tipos de público, fãs ou não da franquia ou do produto.
E se o produto não interessa, mas sim o seu valor de mercado, podemos dar ainda um outro exemplo mais recente que também foi notícia em todo o lado no mercado dos Trading Card Game.
Saindo um pouco do tema Pokémon, mas voltando a mencionar a Wizards of the Coast, nomeadamente o jogo de cartas Magic: The Gathering, a carta mais cara de sempre foi vendida este ano de 2023, pela “modesta” quantia de 2 milhões de dólares.
A carta em questão tratava-se de uma edição especial e única no mundo de uma carta intitulada de “The One Ring“, lançada na expansão Magic: The Gathering Universes Beyond – The Lord of the Rings – Tales of the Middle-earth.
Uma autêntica caça ao tesouro foi realizada durante as semanas seguintes ao anúncio da existência da carta, sendo que o valor oferecido a quem a encontrasse aumentava consideravelmente com o passar do tempo, tendo-se fixado nos 2 milhões de dólares. Como é óbvio, tudo isto fez correr muita tinta na imprensa, e mais ainda quando a carta foi realmente encontrada e vendida. Até porque quem a comprou não era nenhum desconhecido.
Quem a comprou foi o famoso cantor e compositor Post Malone, fã e colecionador assumido do jogo de cartas. Post Malone comprou-a a Brook Trafton, o jogador de Magic que realmente encontrou a carta.
This is my dream come true, meeting @PostMalone and him buying the One Ring card from me is literally a moment straight out of a fairytale. @PostMalone @wizards_magic you’ve changed my life. Things like this don’t happen to people like me. Forever grateful 🙏 ✨ #mtg #onering pic.twitter.com/VMBlDA1HdD
— Brook Trafton (@BrookTrafton) August 1, 2023
Claro que este último exemplo foge ao tema Pokémon. Mas é claramente relevante para compreender o interesse pelo público geral pelas cartas colecionáveis. E o impacto que estas conseguem ter como item rentável.
- “A Nostalgia é um sentimento agridoce: saudades do que foi bom e não volta mais.” … Li isto algures na internet…
Então… Nostalgia! Vamos voltar a falar do passado, mas desta vez, sobre o impacto que esse passado tem no nosso presente. Ver aquele Charizard do Logan Paul leva-nos para tempos longínquos, mais simples, mais felizes.
Estamos a viver numa era que é muito impactada pela nostalgia. O que nos faz lembrar dos nossos anos vividos antes do boom da Internet, antes dela se tornar uma necessidade no nosso dia a dia, que muitas vezes já ultrapassa a barreira do saudável, é acarinhado de uma forma bastante calorosa. E tenho um exemplo! O que vos faz sentir o vídeo seguinte?
Faz-vos sentir um certo calor na boca do estômago, quem sabe até uma pressão na zona inferior dos olhos, certo? Chama-se a isso o abraço invisível da nostalgia. E se querem sentir mais vezes isto, podem sempre comprar produtos que vos lembrem tempos passados! Como… cartas!
Eu falo por mim, voltei ao vicio dos TCG’s no ano passado, e isso está associado a todos os pontos numerados anteriormente: sou fã de Pokémon desde criança e isso atrai o fator nostálgico, já para não falar também do fator colecionismo que sempre me fascinou. Se isso está relacionado com os episódios do Logan Paul e do Post Malone de certa forma…? Não posso negar, acredito que sim. Acho que também voltei a esta vida muito por culpa da influência dos media, que me levavam a pensar em cartas mais do que eu propriamente gostaria.
Felizmente não estou num nível que roça o ridículo, passando por cima de tudo e todos para obter qualquer tipo de lucro. Só me quero divertir e aproveitar tempo com os amigos que também têm este interesse.
Agora, será que as pessoas que provocaram o caos no museu de Van Gogh pensam da mesma forma? Claro que não.
Então e como está agora a situação?
O museu teve que interromper a distribuição da carta. A decisão de suspensão surgiu para que pudessem garantir a segurança dos visitantes do edifício.
No entanto, a The Pokémon Company permitiu que os fãs obtivessem a carta através dos Centros Pokémon no Canadá, no Reino Unido e nos Estados Unidos da América, algo totalmente ao lado da intenção inicial, que era proporcionar uma lembrança para aqueles que visitavam a exposição no museu.
Como era de esperar, a carta continuou a ser procurada nestes novos locais e está atualmente fora de stock. Pode ser encontrada à venda nos sites em segunda mão mencionados previamente neste artigo. Os preços para a obtenção da mesma continuam elevados.
E é por isso que não podemos ter coisas boas.
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Inspirado no artigo do Anime News Network