Para marcar esta temporada de Halloween, retorna à Netflix o messias da adaptação do videojogo. Felizmente, tal como o antagonista da sua franquia, parece que Castlevania retornou de uma forma consistente. Apesar desta segunda temporada ser uma estreia recente, foi anunciado pouco depois uma terceira. Este sucesso sem precedentes é testemunho da paixão e dedicação de Adi Shankar e toda a equipa que este reuniu para dar vida ao feudo entre os Belmonts e o Senhor das Trevas.
Anteriormente, já foi escrito uma primeira impressão que englobava a primeira temporada deste programa. Agora, com a história completa que o conjunto da primeira e segunda temporada contam, é possível fazer um juízo mais minucioso e informado acerca da qualidade da obra em questão. Em seguimento da tradição noménica desta franquia, trata-se de um verdadeiro fado do desespero.
Castlevania trata-se de uma adaptação da franquia da Konami do mesmo nome. Tem como produtor Adi Shankar, melhor conhecido pelo filme Dredd e a curta-metragem Power/Rangers. Tem como guionista Warren Ellis, celebrado por várias obras de BD como é exemplo Transmetropolitan, entre outros. Responsáveis pela produção e animação, temos a Frederator Studios e Power House Productions. Está disponível para streaming legal na plataforma Netflix.
Castlevania Temporada 2 – História
Em seguimento da renhida defesa de Gris e a descoberta do dhampir Alucard, Trevor Belmont e Sypha Belnades apontam a mira à fortaleza de Drácula. Entretanto, o Rei dos Vampiros convoca para a sua corte generais e devotos para realizar a sua sombria vingança. Destes, eleva à posição de chefia dos seus esforços genocidas, surpreendentemente, dois humanos. Ocupando a posição de seus mestres de forja, responsáveis pela criação das hordas demoníacas de Drácula, são almas profundamente cicatrizadas pela crueldade e injustiça da humanidade.
Uma dupla rival de génio notável, contrastam-se pelas suas naturezas opostas apesar do seu propósito conjunto. Hector é a alma mais gentil e melancólica dos dois. Compreendendo a humanidade como animais em necessidade de encurralamento para seu bem, procura limitar o genocídio para controlo de população. Por outro lado, Isaac não tem ilusões das consequências da sua obra e possui uma vontade de ferro. O mais próximo do Senhor das Trevas, a sua devoção é inabalável, acreditando piamente na sumária exterminação do ser humano.
A restante corte é formada de outros vampiros notáveis dos quatro cantos do mundo que se ajoelham perante Drácula. Destes, destaca-se uma cujo espírito indomável é apenas igualado pela sua astúcia maquiavélica. A infame Carmilla, apesar de ser vassala, olha para o futuro com planos maiores. Julga com oculto desdém a Corte da Noite, apenas vendo crianças em corpos de velhos sem visão. Ela irá tecer uma teia de intriga que a tornará mais que uma mera serva.
Cria-se, então, o cenário que irá culminar com o assalto ao traiçoeiro Castelo Drácula. O Último dos Belmont, a Maga Polímata e o Príncipe Vampiro servirão do último baluarte contra as hordas das trevas. Ao mesmo tempo que, quiçá, a conspiração dentro dos corredores de poder da aristocracia da noite seja capaz de impedir a realização do derradeiro plano do seu monarca déspota, perdidamente entristecido pela injusta morte da sua mulher e mãe de Alucard.
Como seria de esperar, esta foi uma obra que despertou a mais profunda alegria na comunidade digital. O sonho de ver o videojogo ser adaptado devidamente, pelo menos no ocidente, é um que há muito se arrasta. Como ávido fã da franquia, partilhei a fundo desta euforia. Tanto que fui movido a escrever algo de mais compreensivo de forma a consciencializar a comunidade o mais possível. Porém, como já tinha observado na altura, não era o suficiente para criar uma análise devida. Apenas agora com estes 12 episódios temos uma melhor ideia da história que estava para ser contada. Sendo assim, sinto-me vindicado no meu optimismo.
A narrativa aqui apresentada é em igual medida sombria e cativante. Captura belissimamente o apelo que apenas uma história gótica deste género é capaz de oferecer. O mais curioso é a forma como foi capaz de cumprir a sua promessa de ação e violência imperdoável sem descurar na contemplação e meditação. Apesar de ser primariamente conhecida como uma franquia de ação, uma das melhores decisões desta franquia é adaptar a principal força que torna as histórias de vampiros imortais como as figuras mitológicas que as definem. Especificamente, refiro ao extensivo trabalho de personagem que é executado não só para os protagonistas como para os antagonistas.
No que diz respeito à parte dos protagonistas, dado que grande parte da caracterização de Trevor e Sypha já foi estabelecida no primeira temporada, é dada mais atenção à nova adição da equipa. Adrian Tepes, melhor conhecido como Alucard, serve como um contraponto mais melancólico da equipa. Embora perseguindo ardentemente a morte do pai, lamenta-o profundamente não só pelo desejo da mãe, como também como também da grande capacidade intelectual do pai ser desperdiçada em busca da sua vingança apocalíptica. Os três têm uma química impecável, o que reflete grande investimento dos atores e se torna claramente visível nas farpas de alta qualidade que os protagonistas lançam entre si. Curiosamente, costuma ser o sofisticado Alucard a dar os primeiros tiros.
Além disso, gostava de focar nos antagonistas. No advento da estreia da primeira temporada, houve também um grande alarido acerca da qualidade destes na série. Porém, tenho que admitir que fui apanhado de surpresa. Até agora, não havia nada de particularmente complexo acerca de nenhum dos vilões. O bispo era um simples vilão ambicioso que traía o espírito da fé católica. Por outro lado, o próprio Drácula não tinha maior motivação que uma namorada no frigorífico. As performances vocais foram notáveis, não há dúvida, mas não é como se não tivéssemos visto isso vezes sem conta.
Era algo que me fazia franzir o sobrolho ao discurso na internet à volta deste tópico em particular. Felizmente, para todos esses think pieces, a posterior temporada validou esta observação ao máximo. Mais que isso, foi a base pela qual se formou o sangue temático de toda a obra. O trio de Drácula, Hector e Isaac cria uma excelente microcosmo das mais interessantes filosofias a serem discutidas na obra. Entre eles, é partilhado um universal desprezo pela humanidade. O seu projeto genocida carrega em si um discurso filosófico submerso numa posição antinatalista extremamente radicalista.
A discussão e crenças que estes exibem são extremamente fascinantes. Mais do que isso, servem de um interessantíssimo reflexo da contemporaneidade. Mais especificamente, na atitude que arte agora tem perante o cataclismo. Várias cenas são dedicadas à premissa central da natureza inerentemente destrutiva do ser humano e se a melhor solução reside numa redução população drástica acoplada a um controlo apertado ou então uma sumária extinção. Esta questão é, em grande parte, informada pelo sofrimento conjunto entre as três personagens. Todos vítimas da crueldade aparentemente infindável que o ser humano tem para com os membros da sua própria espécie. Será, então, o homem um animal que precisa de uma rédea mais apertada ou um raivoso para ser abatido?
Em particular, a posição mais radical de Isaac é feita ainda mais compreensível com a mudança desta personagem para um homem de ascendência africana. A obra não tem medo de mostrar que a sua atitude fria e incompreensivelmente desumana é produto de um mundo que apenas lhe deu dor e sofrimento, tomando a sua cor de pele como critério suficiente. A sua história torna-se ainda mais trágica através de um flashback que alude à sua homossexualidade, afogada em chicotadas. A esta reinterpretação tão radical da personagem é dada uma peso temático estrondoso com essa implicação e nuance. Além disso, oferece uma diversidade agradável ao elenco. Já agora, não sei se também será uma espécie de referência low key ao samurai africano, escravo moçambicano, que serviu Oda Nobunaga.
Por sua vez, o próprio Drácula aqui adquire infinita personalidade e magnetismo pela sua atitude perante o cataclismo que se segue a sua vingança. Mais especificamente, em contraste com a fúria apocalíptica que ele exibe na primeira temporada, aqui ele demonstra uma profunda apatia suicida. Desinteressado na infindável crueldade e atrocidade que ele libertou pois apenas deseja um mundo mudo de gente. É clarificado que o seu espírito, vontade e a sua humanidade arderam juntamente com a mulher na pira. A performance celestial do seu ator, o Graham McTavish, contribui para cimentar uma personagem cativantemente sinistra e imponente ao mesmo tempo que lúgubre e trágica.
Por outro lado, a atitude comparativamente mais branda de Hector é aliada ao seu espírito mais suave. Embora não tendo uma motivação tão imponente como a de Isaac, é feito claro que uma vida de abuso infantil e perseguição pela sua recusa da finalidade da morte o marcaram indelevelmente. A sua experiência de alquimia e magia são o principal ímpeto que o leva a exigir controlo populacional. Esta sua possível preocupação moral um bocado hipócrita põe-o em conflito com o seu colega e mestre. Face à destruição desenfreada solta por Drácula, ele vocaliza a sua desaprovação juntamente com os seus restantes generais. Estes últimos, pois suspeitam estar a criar um mundo sem a sua preferida fonte de nutrição ao passo que Hector o faz para dar, pelo menos a ver dele, uma salvação à humanidade.
Esta sua convicção torna-o vítima de outro alguém que também desaprova da conduta do seu soberano. Daí que, por fim, se destaca a maquiavélica Carmilla. O único outro nome em pé-de-igualdade com Drácula no que diz respeito ao domínio da ficção vampiresca, ela recebe caracterização e peso narrativo digno da mãe do género. Pegando nas raízes feministas ocultas da mais imortal criação de Le Fanu, a sua posição na história serve de um ponto de crítica para os seus congéneres. Denunciando as atitudes bárbaras dos generais como insubstanciais e infantis e a inacção de Drácula como comprometedora para o futuro dos vampiros e o seu poder futuro. Ela destaca-se como uma vilã carismática, além de que atualizada para a contemporaneidade. Isto para não falar da sua integração à estética da adaptação dado o precedente visual caótico que foi anteriormente dado à personagem, pelo que espero ansiosamente por mais no futuro.
Castlevania Temporada 2 – Ambiente
Preservando a estética gótica da temporada anterior, estes mais recentes episódios aproveitam o orçamento mais generoso para polir o visual. Além disso, o notável aumento de recursos contribuiu para uma maior qualidade de cenas de ação. Não que necessariamente tenha sido má anteriormente, simplesmente que agora demonstra tanto criatividade como fluidez sublime. Isto atinge o seu auge no sétimo episódio. O climático assalto ao castelo Drácula, além de ser acompanhado de uma versão orquestral excelente de Bloody Tears, demonstra o melhor da acção da série, misturando referências subtis ao poderes e habilidades das respetivas personagens nos seus jogos ao mesmo tempo que apresenta um ases inesperados.
As referências não param aí. A primeira batalha desta temporada conta com um duelo entre Alucard e a dupla de Slogra e Gaibon. A posterior visita à casa ancestral dos Belmont faz uma referência destacável a Leon Belmont. Corretamente identificado como um importante patriarca Belmont, é o protagonista de Lament of Innocence para a PS2, canonicamente o primeiro jogo na cronologia Castlevania. Neste mesmo local, não deixei também de notar uma subtil referência às infames cabeças de medusa, um adversário recorrente (e irritante) da franquia.
A inclusão de Hector e Isaac, por sua vez, trata-se de uma referência a Curse of Darkness. Outro jogo 3D do tempo da PS2 que consiste, cronologicamente, na sequela mais direta de Dracula’s Curse, cujas duas temporadas procuram adaptar. Embora, tenha-se que dizer, executados de uma forma infindavelmente mais interessante, dando singularmente relevância a uma entrada medíocre da franquia.
Pegando nessa estética gótica, volto a repetir que se trata de uma adaptação do estilo de Ayami Kojima. Uma artista indelével nesta franquia, pode-se dizer que ela é mãe de Castlevania após Symphony of the Night. Aliado a isto, observa-se uma forte influência de obras como Ninja Scroll e Vampire Hunter D. Tal é mais notório, obviamente, no seu nível de violência e ação. Esta segunda franquia é de particular importância pois a sinergia entre Kojima e o artista Yoshitaka Amano fundem-se de forma a dar vida ao visual das personagens. Esta mistura é posteriormente também simplificada de forma a facilitar uma animação e ação mais cinética.
Castlevania Temporada 2 – Conclusão
Castlevania como franquia vive em tempos curiosos. No advento da agressiva perseguição da Konami de formas de jogo mais explorativas, este foi um nome que sofreu imenso. Tendo estado no Japão, pude ver por mim próprio uma infame máquina de pachinko baseada na franquia. Além disso, a recorrente dificuldade que esta teve em transitar para 3D limitou, ao ver de entidades controladoras, o seu apelo para o futuro. Apesar da vasta maioria do atual mercado independente procurar emular a magia de Symphony of the Night, novos jogos Castlevania futuros parecem ser improváveis. Quanto mais, esperamos que o futuro Bloodstained: Ritual of the Night consiga reavivar essa paixão.
Sendo assim, é curioso que esta franquia em particular consiga sobreviver da forma mais inesperada possível. Ao passo que em qualquer outra situação uma adaptação seria uma coup-de-grace, em vez tornou-se numa revitalização. De tal forma que parece que convenientemente lançaram não só Symphony of the Night para a geração de consolas mais atual, mas também a sua prequela Rondo of Blood, um jogo que antes apenas se podia jogar ou em japonês para a PC-Engine, ou então através de uma colectânea na PSP. É claro que, através desta adaptação, o nome de Castlevania tornou-se mais relevante que nunca. Tanto que imagino estar a pressionar os executivos na Konami que nada têm de projetos para capitalizar nesta procura.
Esta obra é absolutamente e inquestionavelmente uma vitória em trazer o videojogo para outros meios. Singularmente mata a esotérica discussão à volta dos fundamentais obstáculos que impedem tal transição. Muito francamente, as minhas críticas são poucas. A ter que o fazer, destacaria os generais de Drácula os quais, apesar de terem tido tempo dedicado no seu design, acabam por contribuir pouco. Junto a isso, também poderia queixar-me que não apareceu Grant Danasty, a 4ª personagem jogável de Dracula’s Curse. Porém, trata-se de uma com a qual estaria preocupado apenas se quisesse ser extremamente purista.
Uma última crítica que me ocorre é por uma ocasião mais egoísta e supérflua. Dado que o arco narrativo de Alucard teve uma conclusão impecável, isso limita um bocado as possibilidades do futuro. Nomeadamente, uma possível posterior adaptação de Symphony of the Night dado que ele já teve os seus principais conflitos intrapessoais. Claro que existe mais para contar, mas de momento escapa-me algo permita continuar a evolução do Príncipe dos Vampiros. Feitas as contas, acaba por haver muito pouco que valha a pena apontar como negativa. A série teve uma conclusão excelente, com espaço para mais, pelo que espero ansiosamente pela 3ª temporada. Sendo assim, como amante do género e da franquia, estas duas temporadas recebem a minha mais alta recomendação.
Análises
Castlevania Temporada 2
A caça ao temível Drácula chega ao seu auge com ação de alta qualidade, personagens imediatamente memorável e um discurso existencial acerca do valor do ser humano.
Os Pros
- Personagens tanto interessantes como inesquecíveis
- Acção excelente que torna cada momento explosivo
- Uma amorosa adaptação do seu source material
- Um clímax espetacular na qual nada e ninguém é esquecido
- Amplo tempo de discussão e contemplação que desenvolve os vilões e reforça as relações entre os protagonistas
- Um discurso acerca do valor do ser humano adequado ao miasma de negatividade dos nossos tempos
Os Contras
- Certas exclusões e escolhas artísticas podem não ser de agrado a puristas do jogo base
- A inclusão de certas personagens antagonistas que não realizam o seu potencial