Este mês, lembramos um género, originário dos Estados Unidos, onde os filmes são conhecidos pela sua intensidade, visuais estilizados e, sobretudo, pela jornada humana de um criminoso. Os filmes noir não transformam vilões em heróis, mas adicionam-lhes um toque de mistério, tornando-os intrigantes à medida que os seus motivos se revelam.
Na Ásia, o Japão foi um dos pioneiros do cinema noir com clássicos do pós Segunda Guerra Mundial, como Stray Dog, The Bad Sleep Well e Tokyo Drifter. O que se obtém ao combinar uma sociedade desamparada das suas bases tradicionais com uma dose de vergonha, miséria e destruição, induzidas pela guerra e um toque saudável de fatalismo? Uma receita para histórias moralmente ambíguas de crime e castigo, duplas e triplas traições, polícias comprometidos e gangsters implacáveis.
Nos anos 80, cineastas de Hong Kong descobriram na paisagem urbana noturna da sua pequena e superpovoada ilha um terreno fértil para narrativas fortemente influenciadas por noções como a lealdade, a irmandade e a rebelião, popularizadas pelos romances de wuxia (cavaleiros errantes), que há muito faziam parte da literatura popular chinesa. Alguns realizadores de Hong Kong, como Wong Kar Wai (Fallen Angels, As Tears Go By) criaram obras-primas artísticas mais preocupadas com o estilo visual e a atmosfera do que com a narrativa. Outros, como John Woo (The Killer, A Better Tomorrow), transformaram a violência extrema em imagens poéticas e elevaram os gangsters a ícones da vingança justa.
Os cineastas coreanos também nunca ficaram atrás no género: exemplos disso são – para quem tiver estômago – os sangrentos pulp fictions como Oldboy e I Saw the Devil.
No entanto, a situação sempre foi um pouco mais complicada na China, onde o governo procurou apresentar uma visão positiva da vida sob o regime de partido único. Os realizadores do continente têm sido frequentemente forçados a submeter-se a uma censura rigorosa ou a correr o risco de ver as suas obras banidas. Recentemente, alguns excelentes filmes noir têm conseguido passar despercebidos pelo lápis azul em tons vermelhos.
Cinema Neo-Noir Asiático – Um beijo é mais do que um beijo, e uma arma é mais do que uma arma
#1 – Infernal Affairs (Hong Kong, 2002)
Nos anos 1980 e início dos anos 1990, Hong Kong foi o palco do cinema de ação mais emocionante, criativo e visceral do mundo, perdendo esse título apenas quando Hollywood recrutou os seus maiores astros e realizadores e a reunificação devolveu o estado-cidade ao controlo chinês, em 1997.
Infernal Affairs (2002), da dupla de realizadores Andrew Lau e Alan Mak, não foi tanto um regresso à forma antiga, mas sim uma nova abordagem. A narrativa, engenhosamente escrita sobre polícias e gangsters, reúne os melhores talentos da indústria cinematográfica da região e é realizada com uma intensidade dramática e um realismo cru que ficaram ausentes dos dramas policiais do país desde meados dos anos 90.
Um jovem recruta da polícia é enviado para se infiltrar numa tríade local, enquanto um jovem membro do gangue é enviado para se infiltrar no departamento de polícia de Hong Kong. Passam-se dez anos, e ambos sobem nas fileiras, alcançando posições mais altas e de maior confiança. Chen (Tony Leung) é agora um dos principais homens de confiança do chefe da tríade, Sam (Eric Tsang), mas está cansado da vida de agente infiltrado. Lau (Andy Lau) tornou-se o principal informador de Sam dentro do departamento da polícia. À medida que ambos fornecem mais informações aos seus superiores, torna-se evidente para cada um que têm um infiltrado que precisa de ser eliminado.
Infernal Affairs é reconhecido por muitos como um dos filmes emblemáticos de Hong Kong da sua era, e é fácil perceber porquê: apresenta uma história de crime e polícia altamente original, repleta de drama e tensão. As pequenas explosões de ação são empolgantes, e o filme tem uma atenção impecável ao tom. Contudo, são as personagens que dão vida à narrativa, e tudo o que o filme coloca à sua volta revela mais sobre o conflito interior que enfrentam. É esse elemento inesperado que distingue o filme da maioria das películas de ação convencionais.
#2 – A Bittersweet Life (Coreia do Sul, 2005)
Kim Jee-Woon é um dos realizadores mais interessantes da Coreia do Sul, movendo-se por diferentes géneros com um nível uniforme de excelência. O seu filme A Tale of Two Sistersé uma história de fantasmas ao estilo de Ringu, enquanto The Quiet Family é uma comédia negra sobre uma versão coreana da Família Addams que se muda para o campo para gerir uma casa de hóspedes.
Já Bittersweet Life trata-se de um gangster noir na tradição de John Woo, com elementos bem familiares: um agente da máfia com consciência, vinganças que fogem do seu controlo e uma coreografia exímia de cenas de combate.
Sun-woo é o guarda-costas principal do chefe da máfia, Kang. Durante uma das viagens do seu chefe, este recebe a tarefa de vigiar a amante dele, Hee-soo, com uma ordem clara: matá-la se descobrir que ela tem um caso com alguém. Como esperado, ela tem, mas Sun-woo decide deixá-la viver, o que vira toda a organização criminosa contra ele e o coloca num caminho de vingança.
Apesar de ser brutalmente violento e extravagante, A Bittersweet Life transmite calmia — quase meditativa. É, sem dúvida, uma experiência espiritual, e em nada semelhante a qualquer outro filme sobre gangsters. É uma história honesta sobre a miséria de um homem e a sua busca por justiça.
#3 – Metro Manila (Filipinas, 2013)
Viajando fora das grandes diásporas cinematográficas do “Continente da Aurora”, o cinema noir filipino explora temas sombrios e moralmente ambíguos, refletindo as complexidades e as tensões sociais do país. Surgiu nos anos 1970, em plena ditadura de Ferdinand Marcos, período marcado pela censura e por uma forte repressão política. Lino Brocka deu voz aos marginalizados com Manila in the Claws of Light (1975), uma obra seminal que examina a corrupção, a injustiça e as condições de vida precárias em Manila. Este filme é frequentemente citado como um dos primeiros exemplos de noir social nas Filipinas, e um cânone do género vindouro.
Metro Manila, de Sean Ellis, é a história de um homem bom num mundo mau. Todos os elementos do filme parecem surgir desse princípio central, e a única questão que resta para a história responder é se um homem bom pode permanecer bom quando todas as probabilidades estão contra ele. Oscar Ramirez (Jake Macapagal), um ex-militar convertido em agricultor, é forçado pela grave crise económica rural a vender todos os seus poucos bens e começar de novo com a sua família no caos de Manila, uma megalópole onde os sonhos parecem ser forjados. Infelizmente, como ele logo descobrirá, a cidade é uma fábrica de pesadelos.
Mas este filme é muito mais do que uma simples história de migração miserável; elementos de thriller começam a infiltrar-se na narrativa até que, nos últimos 30 minutos, Ellis prepara o golpe final. O argumento é sólido, e Ellis não teme deixar a câmara falar por si, envolvendo-nos emocionalmente na história antes de revelar um ou outro truque na manga que reúne, de forma magistral, tudo o que veio antes.
#4 – Black Coal, Thin Ice (China, 2014)
Tudo começa com o carvão. Uma longa e constante correia transportadora dele, símbolo central da indústria chinesa há mais de mil anos. Black Coal, Thin Ice começa no norte industrial da China, onde, em 1999, partes de um cadáver desmembrado aparecem numa mina de carvão. O defunto, marido de Wu Zhizhen (Gwei Lun Mei) — uma lavadeira e femme fatale do enredo — é rapidamente identificado, assim como o principal suspeito. O duro detetive Zhang (Liao Fan) avança para fazer a detenção. Segue-se um banho de sangue.
Cinco anos depois, Zhang, ainda traumatizado, cambaleia embriagado pelos seus deveres diários enquanto segurança. Mas, ao ser informado pelo antigo parceiro sobre um assassinato semelhante, este recompõe-se para iniciar a sua própria investigação, centrando-se em… Wu Zhizhen.
Black Coal, Thin Ice é visualmente deslumbrante, com o diretor de fotografia habitual de Diao Yinan, Dong Jingsong, transformando a província rural num submundo iluminado por neóns periféricos. Muitos dos momentos mais importantes do filme, com trocas de informações decisivas, ocorrem em espaços claustrofóbicos, como a lavandaria, os bancos traseiros de carros e até numa cabine de uma roda-gigante. A perpetuamente lacrimosa Gwei Lun Mei revela informações-chave, mas é difícil não ficar constantemente paralisado ou distraído pelas transformações de luz ou pelos ruídos de fundo, que insinuam o mundo em constante mudança à sua volta.
#5 – The Wild Goose Lake (China, 2019)
Ter realizado um dos filmes urbanos mais sublimes e belos de uma década é um sinal de talento. Ter feito dois deles – possivelmente os dois filmes visualmente mais impressionantes sobre cidades em toda a década de 2010 – é um sinal de puro génio. E é exatamente nesse lugar que se encontra o realizador Diao Yinan. Após a sua terceira longa-metragem, Black Coal, Thin Ice, vencedora do Urso de Ouro em 2014, Diao Yinan trouxe-nos The Wild Goose Lake, passado na cidade de Wuhan.
The Wild Goose Lake conta a história de gangues criminosos em guerra, os agentes da lei que os perseguem e as mulheres presas entre eles, com uma narrativa temperada por violência súbita e flashes de humor.
Diao cria um mundo de salas sombrias, exteriores iluminados por néons e a escuridão avassaladora da natureza intocada, iluminada pelos faróis da maquinaria que se aproxima. É um lugar de sujidade, desgraça e desespero, onde todos lutam para sobreviver. A história de The Wild Goose Lake pode não ser muito complexa e ter alguns soluços, mas isso pouco importa, pois é contada com uma energia estilosa e vibrante.
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