Disclaimer:
Sou uma pessoa com problemas em lidar com a irritação e acabo por entrar em longos rants sobre os mais variados temas que se calhar não interessam nem ao menino Jesus. Pois bem, em vez de deixar que isso me consuma, vou partilhar com vocês as a minhas “úlceras e aneurismas à espera de acontecer”. Isto são coisas que me incomodam a mim, não quer dizer que eu esteja certo e que as histórias tenham que seguir o meu rumo, muito provavelmente eu é que estou mal e não devia ver ou ler ou etc.
Já agora, SPOILER ALERT para a obra em foco no artigo em questão, e para outras mediante aviso prévio.
Eu adoro One Piece e talvez seja por isso mesmo que não consigo ficar calado.

É hábito meu fazer um largo preâmbulo em artigos desta natureza, sobretudo a tentar racionalizar para vocês leitores – e em última instância para mim mesmo – o que me leva a escrever sobre certo tópico. Dou por mim a listar ad aeternum as características que fazem de mim um “repórter” credenciado a poder falar de X anime ou manga, ou de Y personagem.
Desta vez não vou fazer isso. Por um lado, anos e anos de conteúdo neste site e, mais recentemente, no GenkiCast, então pejados de provas da minha adoração por One Piece; e, por outro, saber ou não o nome de todas as personagens, tripulações ou Akuma no Mi não me deve dar mais ou menos permissão para poder opinar e discorrer sobre uma obra que me diz tanto.
Posto isto vamos então falar do Whole Cake Island arc e como este é, para mim, um encapsular de que até no melhor pano cai a nódoa e nem com NEOBLANC a coisa se compõe.
One Piece naufragou em Whole Cake Island – Um Pedro No Sapato

One Piece é uma obra ímpar, que conta com 26 anos de narrativa, quase ininterrupta. É de loucos pensar que durante 20 anos, o Eiichiro Oda-sensei não fez qualquer hiato, e praticamente não tirou férias. Soma-se a isso o facto de ser conhecido que o mestre fazia questão de desenhar tudo o que estivesse em movimento nos painéis semanais da obra, incluindo personagens, animais, água, relegando apenas o estático para os seus assistentes.
É absolutamente incrível como uma pessoa, mesmo com input de peers, editores, ou até familiares e amigos, consegue, semana após semana, escrever e desenhar as quase 20 páginas que compõem os capítulos semanais de One Piece. E que capítulos! A consistente qualidade dos capítulos é um feito já por si impressionante, mas rendilhá-los de uma forma tão fluida e orgânica numa narrativa que já leva quase três décadas é equivalente a assistirmos a uma lenda ganhar forma à nossa frente.
Digo tudo isto porque tenho noção do esforço hercúleo que envolve a criação de um manga. Tenho a noção de que ser mangaka é uma forma de vida ao alcance de poucos, e que o seu sacrifício pelas personagens e pela narrativa pode nunca vir a ser tão apreciado como devia. Por muito popular que One Piece seja, por muito que o Oda-sensei adore cada instante com os Mugiwara como nós, nada disso repõe todo o tempo despendido e impacto na sua saúde mental e física. Sempre defendi que o mestre devia fazer períodos de hiato e descanso e fiquei mesmo contente quando de há uns anos a esta parte, tal começou a suceder.
Tudo isto para sublinhar: os mais requintados elogios são parcos para descrever One Piece; a obra é uma ode triunfal que, seja qual for o seu desfecho, é certo que ocupa um lugar inegável na história da arte no geral, e das narrativas em particular.
Desde o começo, que o Oda-sensei nos mostrou a sua capacidade para conduzir as suas personagens por trajectos desafiantes mas bem construídos; trajectos esses que aliavam o inesperado com o desejado – como por exemplo o soco do Luffy ao tenryuubito. É sem dúvida inesperado, mas fez tanto sentido que o Luffy o fizesse! – e que nos colocavam, enquanto leitores, lado a lado com as personagens. Pé ante pé, eu sempre “me vi” caminhar a par do Luffy, Zoro, Sanji, Nami, Robin, Usopp, Chopper, Brook e Franky.
Mas a certa altura isso começou a mudar. Inicialmente, aqui e ali, mas nos últimos anos sinto que estou a perder de vista os meus companheiros de viagem.
Mas vamos por pontos, ou melhor, por nódoas.
🍰Nódoa 1 – Os Vinsmoke🍰
Já tive várias conversas sobre este assunto e do porquê de narrativamente fazer sentido, sobretudo como forma de explicar o “poder” do Sanji. Todavia, mesmo com essa prerrogativa, no mundo de One Piece já vimos outras personagens a tocarem no tema de experiências com seres humanos e, portanto, o Sanji ter surgido na narrativa como uma criança do género daquelas que vimos em Punk Hazard, faria, para mim, tanto ou mais sentido que inventar uma família para ele.
Isto porque, embora no papel, a ideia de introduzir uma homenagem a tokusatsu e, particularmente, a Super Sentai, seja boa, na prática a sua introdução foi tão metida a prego como o resto deste arc. Não que seja necessariamente errado os mugiwara terem os seus pais de sangue “nomeados”, mas algo claramente destacado na tripulação foi o facto do sangue não ser o laço dominante no desenvolvimento das personagens.
Todos eles, por um motivo ou outro, acabaram por crescer e serem criados, por pessoas bem diferentes e sem laços familiares diretos. E, sublinhando diretamente o Sanji, a história dele com o Zeff é uma das mais enternecedoras de One Piece, e isto é dizer muito. Daí afirmar que a sua origem enquanto cobaia de experiências não era tão relevante assim, precisamente porque dar um sobrenome ao Sanji poderia diluir a sua história, tal como sinto que o fez.
A ideia do casamento, à la O Padrinho – até temos planos do Capone Bege, caso não tenham apanhado a referência – é parva, embora tenha sido se calhar a única maneira plausível de juntar a Big Mom e a necessidade de explicar o presente poder e futuros power ups do Sanji. A ideia é parva e torna-se ainda mais dolorosa na parte da “traição do Sanji”, que é um autêntico crime contra personagens digno do Hiro Mashima. Relativamente a isto, o meu caro João Simões fez um brilhante artigo sobre este assunto quando saiu no manga e por isso não me vou repetir, podem ler aqui:
E mais, a prova está que, a sua introdução veio e foi-se sem qualquer consequência, que não seja o Sanji ter agora um “fato” novo, e lapsos de personagem que agora aparecem como justificação de ter sofrido com experiências enquanto criança.
Tenho pena e, sinceramente, fiquei a gostar menos do Sanji. Pior, por causa de todo o episódio da “traição”, fiquei a pensar ainda menos do Luffy e da Nami, sobretudo desta última.
🍰Nódoa 2 – O “Power Up” do Luffy🍰
Esta nódoa é muito simples de expor: pós-timeskip ficou patente que os nossos protagonistas tinham evoluído em termos de conhecimento e poder, algo que foi rapidamente ilustrado quando ao regressar eliminaram Pacifistas com estonteante facilidade.
Pós-regresso, os arcs não têm tido o mesmo set up e pay off que os grandes que precederam o timeskip, mas se há algo que o exageradamente grande Dressrosa Arc fez bem, foi todo o set up para o Luffy apresentar a Gear 4th, incluindo mini-flashbacks do seu treino com o Rayleigh e explicando que o nome dos ataques advinha dos animais que o Luffy teve que combater durante o treino. É um power up merecido, bem destacado e bem justificado.
Em Whole Cake Island, o Luffy esbarra quase imediatamente num problema: o Charlotte Cracker. O 15º filho da linhagem Charlotte é um juggernaut defensivo que consegue “anular” o Gear 4, de tal maneira que o Luffy não o consegue superar pela força bruta e sim porque acaba por perceber que consegue comer os soldados feitos de bolacha para recuperar energia e continuar a lutar. Ainda assim, podemos dizer que o combate é tecnicamente um empate.
Passado uns dias, porque é esta a duração do arc, o Luffy tem que defrontar o Charlotte Katakuri, o 3º filho da linhagem, um comandante imparável que tem um bounty de dez dígitos. A luta é longa e durante grande parte o Luffy está em clara desvantagem. Então que acontece: temos a introdução sem qualquer pompa e circunstância da Gear 4th: Snakeman. A nova forma não aparenta ter uma clara vantagem tanto que nem sequer é determinante para a, infelizmente, inevitável vitória do Luffy, a qual chega quando, durante a batalha, o Luffy começa a usar o Observation Haki ao mesmo nível do Katakuri.
O nosso Luffy é um protagonista shonen clássico, e por isso algum tipo de plot armor vai sempre estar nas cartas, mas desde Whole Cake Island, o “acelerómetro” para desenvolvimento de habilidades e afins, tem andado na redline, e nem vamos entrar na Gear 5th!
🍰Nódoa 3 – Rescaldo de Whole Cake Island e ligação a Wano🍰
Quase todo este artigo é assente em conjunturas, eu sei, mas são associações que na minha cabeça fazem sentido e me permitem manter a sanidade quando olho para o, objetivamente para mim, pior arc narrativo de One Piece.
Entendo que a viagem até Whole Cake Island tenha acontecido assim, pois seria muito difícil justificar neste momento da história um regresso a Fish-Man Island para combater a Big Mom, ainda que fossem essas as migalhas deixadas. Aliás, entendo melhor até porque a justificação era boa – a Big Mom tem um Road Poneglyph, ou scans de um, e precisamos dele.
Agora, a partir do momento que se divide a tripulação em dois para começar a semear elementos de Wano, algo que claramente desde Punk Hazard o Oda-sensei estava ansioso para escrever, deixa de ser viável que os mugiwara derrotem a Big Mom, um yonkou, no seu território. O que temos então, a par da missão de infiltração, é aquele enchimento com o casamento e os planos do Bege e afins… A conclusão é péssima e tem de tudo: uma morte sem significado e apressada, uma fuga para Wano com a Big Mom à perna e um arc que narrativamente, infelizmente, tem impacto, mas é vazio de qualquer sumo ou conteúdo.
E, talvez pior, um dos yonkou, é humilhado no seu arc dedicado, e em vez de ter o merecido destaque como um dos bosses de One Piece, é arrastado como um vilão secundário para Wano, onde são derrotados dois yonkou de uma só vez e, apesar dos mugiwara terem uma legítima rivalidade com a Big Mom desde Fish-Man Island, nem sequer são eles que a derrotam.
Para que serviu este arc afinal? Dar ao Sanji uma origem que ele não precisava para justificar um power up, dar ao Luffy um power up do nada e outro sem essência, retirar relevância a um dos yonkou em detrimento de outro e, acima de tudo… ser uma gigante perda de tempo!
One Piece naufragou em Whole Cake Island – Conclusão
Este arc deixou-me pela primeira vez desapontado com One Piece e foi o principal causador para ter dado uma pausa na leitura do manga. Felizmente, Wano tem muita coisa boa, e parece-me óbvio que a mente do Oda-sensei estava a transbordar de ideias e isso está refletido em vários pontos do arc.
Contudo, talvez por ter ficado em alerta pós-Whole Cake Island, comecei desde cedo a notar vários problemas que saltaram desse arc para o de Wano, relacionados com personagens, com poderes, com antagonistas e com narrativas.
Deixarei o comentário sobre Wano para outro dia, já que era mesmo sobre este desastre de arc que eu precisava de ventilar. Não sei se o fiz da melhor forma, mas sinto que saiu um peso de cima de mim e acho que está na altura de voltar a pegar mais consistentemente no manga, tentando ignorar o que me magoou e voltando a sorrir com o que sempre me fez adorar One Piece.
Até a um próximo Pedro No Sapato!