Uma reflexão filosófica para um anime, também ele, filosófico.
Há uma coisa que muito me assusta por estes dias: a maneira como o Ser Humano se entrega à tecnologia e considera, de antemão, que tudo o que ela traz é bom. Na maioria das ocasiões, é minha percepção, não parece haver consideração dos pontos negativos de algumas dessas ferramentas, a curto e longo prazo. Desde que estas apresentem, logo à partida, pontos positivos, isso parece ser suficiente.
Uma sociedade dominada pelos números
No que a Psycho Pass diz respeito, ao longo dos seus 22 episódios, não consegui descortinar se essa avaliação foi feita ainda antes do Japão ter implementado o sistema Sibyl, em pleno século XXII. Para o espectador que ainda não viu esta produção (prestes a completar 10 anos desde que foi para o ar), o Sibyl é um sistema inteligente que, por intermédio dos Dominators, é capaz de avaliar o perigo que cada indivíduo constitui para a sociedade, convertendo essa análise num mero número. Porém, o sistema não se aplica apenas a questões de criminalidade, embora esse seja o foco da série, como também a muitos outros aspectos determinantes da vida de uma pessoa, como, por exemplo, a profissão a seguir.
Por outras palavras, nesta história, o Japão, isolado do mundo, entregou o controlo da sociedade à inteligência artificial, e tudo é uma questão de números. O dataísmo é o factor determinante de tudo o que por ali se passa, extinguindo por completo o que podemos considerar livre arbítrio, ou poder de decisão de um indivíduo sobre a sua vida. E, como tal, para lá das cenas de violência extremamente agressivas, é essa possibilidade de escolha retirada ao Ser Humano que mais me deixou assustado. Enquanto espectador, encontro nessa impotência algo de exequível no mundo actual, num futuro não muito distante. De facto, o Big Data já será uma realidade em vários cenários. Por outro lado, e não tendo eu como provar a existência do livre arbítrio, enquanto tiver uma ligeira impressão de que ele existe, mesmo que isso implique uma maior responsabilidade sobre os meus comportamentos, vivo melhor.
Sibyl: O sistema dataísta
Mas voltando ao Sibyl, creio que o mesmo exacerba a diferença entre humanos, pois limita-se a seguir o caminho mais rápido, mais fácil e, tendo em conta que estamos a falar de inteligência artificial, mais lógico. Porque o sistema não tem a preocupação (nem o objectivo) de tentar potenciar ou reabilitar pessoas. Pelo contrário. O Sibyl preocupa-se exclusivamente em rastrear uma pessoa, atribuir um número, e determinar o seu destino em função desse resultado. Nos casos mais graves, o fim da vida é uma hipótese muito real para o avaliado. E do que se percebe ao longo do enredo, os valores genéticos e as experiências traumáticas, ou distúrbios mentais que se possam eventualmente desenvolver, são as variáveis de maior peso nesta equação da vida humana.
Dito de outro modo, há uma passagem da responsabilidade para o sistema. Uma responsabilidade da qual se livra o Ser Humano, como, por arrasto, da “chatice” e de todo o trabalho que por vezes implica tentar ajudar os outros em momentos difíceis. Uma das observações mais soberbas que a trama apresenta, a meu ver, é a de Tomomi Masaoka. Esta personagem foi, em tempos, um detective, mas o seu trabalho afectou consideravelmente o seu estado mental, prejudicando de forma acentuada a sua pontuação no Sibyl. De tal maneira que Masaoka é agora uma espécie de criminoso subcontratado (denomiado “Enforcer“) pela mesma agência para a qual trabalhou, mas sob extrema vigilância, derivado desse número alerta no sistema. Quando Tomomi menciona que a entrada em funcionamento do Sibyl veio deturpar por completo o trabalho dos detectives, que desde então envergam a arma (os tais Dominators) mas só carregam no gatilho se a inteligência artificial o permitir, penso que isto ilustra bem o corte de liberdade efectuado na sociedade dataísta apresentada.
Mas há casos mais gritantes. Para o bem e para o mal, as novidades, com o tempo, viram hábitos que as transformam em normalidade. A certa altura, a dependência e descarga de consciência no Sibyl é de tal ordem que as pessoas já não são capazes de reconhecer acontecimentos estranhos, perigosos ou violentos (pelo menos assim considerados noutros tempos), mesmo que estes estejam a acontecer à frente dos seus olhos. Insólitos como estes são despoletados por aqueles que fazem frente à polícia japonesa de Psycho Pass. Chamemos-lhes anarquistas, subversivos, revolucionários, muita coisa. Da minha parte, só não me atrevo a chamar a este grupo, encabeçado por Shougo Makishima, como antagonistas ou vilões. Não tenho convicção suficiente para o fazer. Cheguei ao fim de Psycho Pass sem conseguir distinguir bem e mal. E tudo fica mais complicado quando, para lá dos actos, constato os motivos por trás dessas acções.
As personagens
Ora vejamos. Makishima, apesar de fazer frente ao suposto sistema de justiça e utilizar vários métodos altamente condenáveis, de alguma forma o que procura é acordar a sociedade do torpor, da hipnose, do sono em que esta caiu com a implementação do Sibyl. Seja com algumas intervenções mais isoladas, seja por via de ataques directos ao sistema governamental.
Por outro lado, no que aos detectives diz respeito, encabeçados, em termos de projecção da história, pela recém-promovida, Akane Tsunemori, e pelo “seu” Enforcer, Shinya Kougami, advém deste grupo policial um misto de sentimentos. Akane é a típica defensora da justiça. A mais ponderada e mais jovem de toda a equipa, medindo muito bem os prós e os contras das situações. Porém, tem os seus pontos fracos. Em momentos com sentido de oportunidade de mudança, revela dúvidas de peso que a impedem de abrir brechas no sistema, tal como eu sou incapaz de tomar um partido nesta história. Acima de tudo, creio que é a incapacidade de visualizar as implicações dessas rupturas a longo prazo que resultam nesta espécie de não-decisão. Já Kougami, embora alinhado na luta contra Makishima, e dando a cara pela justiça, fá-lo apenas por acontecimentos passados, dos quais nasceu um ardente desejo de vingança.
De outra perspectiva, esta distribuição de boas e más intenções, que depois se traduz numa multiplicidade de comportamentos e torna muito complicado distinguir “os bons dos maus”, constitui ela mesmo um paradoxo ao sistema que tomou conta do Japão. Porque, acima de tudo, o que essa dúvida e incerteza deixa claro é que ambas as partes têm pontos válidos. Logo, se uns são condenados pelo Sibyl e outros não, talvez o sistema seja aquele que tem de desaparecer, para voltar a dar lugar ao diálogo (por troca com a violência), entre os seres humanos, e, só a partir daí, serem tomadas decisões com vista a uma sociedade melhor e capaz de enquadrar toda a gente. O desabafo de Makishima, perto do final, sobre o desaparecimento da vida em comunidade para dar lugar a um individuo isolado e, logo, mais susceptível de viver de acordo com as vontades do sistema, reforça as vulnerabilidades da tecnologia, por mais eficaz que esta possa ser em certas coisas e nos permita poupar imenso tempo, um ror de trabalhos, e muitas dores de cabeça. Pelo menos, até que apareçam outras diferentes.
Conclusão
Em suma, Psycho Pass deixa muitas perguntas sem resposta, o que se traduz num incentivo à reflexão sobre o futuro (das nossas vidas). No entanto, no meio dessas divagações, por onde podemos deambular indefinidamente, residem pequenas luzes que nos dão alguma orientação. No que à minha pessoa diz respeito, a visualização desta série veio reforçar aquilo que descobri, há tempos, num ensaio de Byung-Chul Han, precisamente sobre este tema (dataísmo). Como diz o filósofo sul-coreano: “Os dados e os números não são narrativos, mas aditivos. (…) Os números não contam nada sobre o eu. A numeração não é uma narrativa.”
Ou seja, e agora segundo minha interpretação, cada vida é dotada de uma história original. Sem história, não há vida. Ver as nossas decisões tomadas pelos números e por regras pré-definidas é retirar todo e qualquer sentido que a nossa vida possa (aparentar) ter. E mesmo que muitos de nós possamos viver toda uma vida sem: encontrar esse sentido; desconfiar da sua verdadeira existência; ou convictos da sua ausência; creio que, dos mais fatalistas e niilistas aos mais crentes e optimistas, habita em todos uma réstia de esperança em relação ao livre arbítrio. Porque aqui também entra um “dilema” que não é raro nestas matérias: a ausência de prova da sua não existência está de mão dada com a falta de prova do seu contrário (a sua existência). E se podemos não ter influência no que toca à perda desse controlo sobre a vida, por força de algo que não consigamos ver ou explicar, o mesmo não se pode dizer de quando tal liberdade nos é retirada, mesmo à frente dos nossos olhos, por iniciativa da nossa própria espécie.