Achei que estava a ver um slice of life com comédia, sobre duas polícias na luta contra o mal e deparo-me com mais um episódio super pesado sobre a realidade japonesa e, certamente, a realidade que a mangaká teve que lidar enquanto polícia. Os temas abordados neste terceiro episódio foram maioritariamente a solidão e o esquecimento – algo que, se formos a pensar bem, não são commumente trazidos para o anime, muito menos em slice of life.
Hakozume está a mostrar-nos um lado do Japão que praticamente nunca ouvimos falar, embora possamos ter alguma noção. A solidão dos mais velhos no país é algo gritante e bastante sério tendo levado a vários tipos de intervenção do governo, como um uso mais imersivo de tecnologia. Podes ver mais no vídeo abaixo.
Frustra-me que o anime esteja a passar ao lado de tanta gente que só sabe ver Attack on Titan e Demon Slayer à frente – também não me parece que soubessem apreciá-lo sequer.
Podes ler aqui todas as análises semanais de Hakozume!
Solidão | Hakozume Episódio 3 – Opinião
Quando a prisão é a salvação de mulheres idosas japonesas
Um título que dá que pensar, mas é tristemente verdade. Tal como a senhora apresentada no episódio, está a ser bastante comum que idosas cometam pequenos crimes, como furtos, para que possam ser presas e encontrar assim estabilidade.
Toda a sociedade envelhecida (Portugal chamado à recepção) enfrenta os seus desafios, contudo o Japão com uma das populações mais “velhas” do mundo, no qual, em 2018, quase 30% dos cidadãos possuíam 65 ou mais anos (contra apenas 7% em 1970), tem lidado com um tipo particular: o crime sénior, feminino especialmente. Cerca de uma em cada cinco mulheres nas prisões japonesas é idosa.
Mas por que é que isto acontece? Anteriormente, o cuidar dos idosos estava encarregue às famílias e comunidades, no entanto, isso foi sendo alterado. De 1980 a 2015, o número de idosos a viver sozinhos aumentou mais de seis vezes – falamos de quase 6 milhões de pessoas. Um inquérito realizado em 2017 pelo governo de Tóquio revelou que mais de metade dos séniores apanhados a furtar viviam sozinhos e 40% não tinham família ou raramente falavam com os seus familiares. Estas pessoas disseram não ter ninguém a quem recorrer quando precisavam de ajuda.
As mulheres idosas são também, normalmente, mais vulneráveis economicamente, sendo as que mais vivem em pobreza em relação à população em geral – o que explica ainda mais estes casos.
Aqui ficam alguns testemunhos de japonesas séniores presas. Caso não tenhas interesse no tema, podes saltar e continuar a ler mais abaixo.
Srª T, 80 anos
Motivo: Furto de ovas de bacalhau, sementes e uma frigideira
Sentença: Condenada a dois anos e meio de prisão
Histórico Familiar: É casada e tem dois filhos
O meu marido teve uma trombose há seis anos e tem estado acamado desde então. Ele também tem demência e sofre de delírios e paranóia. Foi muito duro cuidar dele física e emocionalmente devido à minha velhice. Mas não podia falar sobre o meu stress com ninguém porque tinha vergonha.
Fui presa pela primeira vez com 70 anos. Quando furtava, tinha dinheiro na carteira. Depois pensei na minha vida. Não queria ir para casa e não tinha para onde ir. Pedir ajuda na prisão era a única maneira.
A minha vida é muito mais fácil na prisão. Posso ser eu própria e respirar.
Srª N, 80 anos
Motivo: Furto de um livro de bolso, croquetes e um ventilador manual
Sentença: Condenada a três anos e dois meses de prisão
Histórico Familiar: É casada, tem dois filhos e seis netos
Estava sozinha todos os dias e sentia-me muito só. O meu marido dava-me muito dinheiro e as pessoas diziam-me sempre como tinha sorte, mas o dinheiro não era o que eu queria. Não me fazia feliz de todo.
A primeira vez que roubei em lojas foi há cerca de 13 anos. Vaguei por uma livraria na cidade e roubei um livro de bolso. Fui apanhada, levada para uma esquadra e interrogada por um polícia muito simpático. Ele foi muito gentil. Ouviu tudo o que queria dizer. Senti que estava a ser ouvida pela primeira vez na minha vida. [isto parece claramente o caso da senhora do episódio]
Gosto mais da minha vida na prisão. Há sempre pessoas à minha volta e não me sinto só aqui. Quando saí pela segunda vez, prometi que não voltaria atrás. Mas quando estava lá fora, não pude deixar de me sentir nostálgica.
Srª O, 78 anos
Motivo: Furto de bebidas energéticas, café, chá, um onigiri e uma manga
Sentença: Condenada a um ano e cinco meses de prisão
Histórico Familiar: Tem uma filha e um neto
A prisão é um oásis para mim – um lugar de relaxamento e conforto. Não tenho liberdade aqui, mas não tenho nada com que me preocupar também. Há muitas pessoas com quem falar. Eles fornecem-nos refeições nutritivas três vezes por dia.
A minha filha visita-me uma vez por mês. Ela diz: “Não tenho pena de ti. És patética”. Acho que ela tem razão.
Estes são apenas alguns dos testemunhos de mulheres mais velhas, presas no Japão. Existem mais e se quiseres podes lê-los clicando aqui.
O esquecimento dos cuidadores informais
Outro assunto que eles decidiram tratar foi o dos cuidadores informais que não têm o devido respeito ou atenção. Já aqui em Portugal vemos que esta classe está sempre à procura de melhores condições, tal como merecem, e no Japão acredito que a situação seja um pouco mais negligenciada devido à cultura das mulheres deixarem de trabalhar assim que decidem ter filhos. Como já estão em casa e estão, acaba por ficar nas suas costas todo o encargo de cuidar dos outros, sejam crianças ou idosos (muitas das vezes acamados, tal como o senhor no episódio).
Estas mulheres têm de ser enfermeiras particulares, sem remuneração, descanso ou ajuda, ao longo de vários anos e sem serem devidamente reconhecidas pelo trabalho árduo – cuidar de idosos, ainda por cima os que já não são autónomos, é muito difícil e esgotante. Entre 75% e 90% dos cuidados a idosos, no Japão, em situação de dependência são prestados pelo cuidador informal no domicílio (como o caso da mãe do Yuuta). Se tiveres interesse em ler mais sobre o assunto indico o artigo da Profª Helena Hirata, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, intitulado “O trabalho de cuidado aos idosos no Japão e alguns aspectos de comparação internacional” (clica em cima do título).
As palavras da Fuji para com esta mãe foram de extrema importância, já que pela primeira vez em muitos anos alguém “a viu”, ela deixou de ser invisível, de ser apenas um mecanismo que está ali para fazer a casa funcionar e cuidar dos outros. Alguém reconheceu o seu esforço e dedicação e por isso é que reagiu daquela forma. Fuji-san como sempre a merecer o posto de Best Girl.
Um novo personagem
Lado positivo, que esta análise já está macabra que chegue, tivemos a apresentação de um novo personagem (um dos que aparecem no opening): Seiji Minamoto!
Já de caras gostei bastante da interacção dele com a Fuji, existe uma rivalidade saudável entre os dois, que de certeza nos trarão muitas gargalhadas nos próximos episódios. Apreciei também o facto dele ser um personagem diferente daquilo que se espera de um homem polícia: enquanto a Fuji é mais perspicaz e, digamos, uma profissional de excelência, o talento dele recai mais na empatia que tem com as pessoas e na forma como lida com elas – a Fuji também é assim, só que acaba por o ser de uma forma mais estratégica e não emocional. No fundo, os dois são importantes nesta profissão, já que pessoas distintas requerem diferentes tipos de abordagens.
Solidão | Hakozume Episódio 3 – Opinião
Pensamentos Finais:
- Quando mandas parar um colega de trabalho que está a perseguir um criminoso
- A história desta senhora foi mesmo triste, principalmente porque sabemos que acontece várias vezes
- Eu quando for mais velha e o meu, possível futuro, marido tiver batido as botas
- Esta senhora é todo um mood
- A minha reacção quando deixam comentários nas minhas análises
- O momento em que chamam a polícia para prender a polícia
- Toda esta cena foi bastante pesada e interessante. Não sabia que a polícia era chamada, quando alguém falece, para fazer uma inspecção do corpo. Penso que aqui em Portugal esta passe pelos paramédicos quando são chamados a casa e depois caso seja necessário contactam a polícia. Felizmente não sei nada sobre o assunto
- Coitada da Kawai a ter que inspeccionar o seu primeiro cadáver (e homem nu)
- Ó meu senhor, ninguém lhe ensinou que quando mexemos no corpo de um morto não colocamos os dedos DENTRO da máscara?
- Muito interessante a abordagem da polícia neste tipo de situação, de respeito para com o falecido
- E mesmo com um episódio assim conseguimos terminá-lo na mesma a rir!
Gostaste deste episódio?
Até para a semana!
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