Perfect Blue – A fama tem um custo elevado

A ordem das coisas é de facto algo muito subjectivo. Sempre que me deparo com uma nova franquia, realizador, ou criador que cative o meu interesse, tenho por regra seguir os seus trabalhos pelo filtro cronológico. No entanto, com os trabalhos de Satoshi Kon, inadvertidamente, abri uma excepção, o que não foi de somenos. Vejamos porquê.

O primeiro trabalho de Kon que vi foi Paprika (2006): um filme de grande complexidade psicológica. Muito tempo depois, assisti a Tokyo Godfathers (2003): uma narrativa assolada pelo drama. Dois anos volvidos, aterro diante de Perfect Blue (1998): produção que combina as duas componentes dos projectos supra citados e assume a categoria de drama psicológico. Resumindo, melhor trajeto não podia eu ter traçado.

 

Um filme intemporal

Ainda antes de prosseguir com este texto, que não está isento de spoilers (aspecto que me parece muito pouco relevante nesta história), e que envereda por uma perspectiva muito pessoal (incentivada pelo conteúdo da obra), parece-me desde já importante realçar o seguinte. Perfect Blue é um filme com mais de 20 anos de existência, pelo que o espectador poderá precisar de alguns minutos para se adaptar ao aspecto visual da trama que, não sendo incómodo, está longe das produções mais modernas do século XXI. Para lá disso, a catalogação da longa-metragem na secção “Avant Garde”, pelo próprio MAL (MyAnimeList), diz muito da intemporalidade do tema que lhe dá vida. Segue-se a sinopse.

Mima Kirigoe é uma idol J-POP que está de saída do grupo CHAM! para apostar numa carreira como actriz. Contudo, esta decisão divide os seus fãs. Enquanto uns aceitam a decisão e ficam curiosos em relação ao seu futuro, outros não escondem o seu desagrado e mostram-se decididos a perseguir e a assombrar a vida de Mima. Na narrativa em questão – adaptada de um novel com o mesmo nome, com algumas cenas para adultos, e outras que podem ferir os espectadores mais sensíveis – este grupo de pessoas (stalkers) faz-se representar por Mamoru Uchida. Parte do interesse do filme, passa por descobrir até onde esta personagem é capaz de ir nas suas intenções, a reacção de Mima, e qual o desfecho para o caso.

Todavia, há um outro lado em Perfect Blue, que requer uma maior concentração do espectador. Refiro-me à distorção da realidade que, aos poucos e poucos, vai afectando Mima, à medida que esta “se deixa” ensombrar pelo seu perseguidor, pela pressão mediática, e pelos resultados das CHAM! após ter saído do grupo. A meu ver, é sobretudo esta distorção que faz sobressair este trabalho de Satoshi Kon. Está tão bem feita que o espectador, a par da própria Mima, em determinado momento, já não consegue distinguir o que faz parte da vida real da personagem do que é propriedade das suas alucinações e das cenas do filme que ela está a gravar enquanto actriz. Como tal, sentir-se confuso nos créditos finais parece-me algo natural e previsível.

 

 

Os riscos implícitos ao espaço mediático

Ora, independentemente das diferentes interpretações que se possam fazer das cenas mais bizarras e enigmáticas que compõe o filme, para mim, falar de Perfect Blue é reflectir sobre as vulnerabilidades daqueles que circulam pelo espaço público, sendo as fraquezas proporcionais ao nível de mediatismo (o que não quer dizer que as benesses também não o sejam, mas isso seria outro assunto muito extenso). Um palco que conta com um número cada vez maior de residentes, sobretudo devido ao boom das redes sociais e de outras plataformas web, o que, portanto, também faz aumentar o número de vítimas deste tipo de comportamentos. Seja por iniciativa de quem lhes quer mal, ou pela própria incapacidade que estas têm em controlar esse lado das suas vidas.

No caso de Mima Kirigoe, ela reúne os dois problemas. Porém, numa dose muito mais reduzida que o século XXI é capaz de oferecer. Não menosprezando o dilema da personagem principal, parece-me evidente que a intemporalidade desta obra se agudizou, precisamente pelo aparecimento dos meios web já mencionados. Se neste filme, a jovem Mima tem “apenas” um stalker e um site a expor a sua vida (endereço sobre o qual ela não tem controlo), nos dias de hoje, estes números dispararam, como resultado de uma maior acessibilidade ao espaço público e à interacção com as celebridades. Tudo isto torna a visualização do filme mais assustadora (e, ao mesmo tempo, mais recomendável), à medida que o ajustamos à nossa realidade.

 

 

A evolução da perseguição virtual

Mas para lá da obsessão de Mamoru, a ex-CHAM! tem algo mais com que se inquietar. Nomeadamente, a pressão para se afirmar como actriz e provar que tomou a decisão certa. Rodeada por pessoas que se mostram apenas preocupadas com a sua ascensão na carreira, ou conformadas/resignadas com os vários pedidos que surgem, a jovem fica cada vez mais debilitada, e, como consequência, sujeita-se a todas as solicitações profissionais que lhe fazem, incluindo aquelas que lhe denigrem a honra e a dignidade. Ao fazer a ligação com o presente, fico com a ideia que as coisas não mudaram. Pioraram. Estamos em tempos em que ascensão mediática (cujo mérito é discutível em cada caso; mais um assunto que dava “pano para mangas”) é muitas vezes repentina, surpreendendo às vezes até os próprios visados. Ou seja, não há um crescimento público paulatino, que dá tempo à pessoa para respirar as diversas situações com que se vê confrontada, amadurecendo durante esse caminho.

Nesta obra, mais do que a pressão do novo desafio profissional da rapariga, é a pressão mediática agressiva, representada pelo stalker, que funciona como o elemento catalisador para Mima ficar refém da sua instabilidade psicológica. Não obstante isso, é a decisão da idol em mudar de carreira que leva Mamoru a entrar em paranóia (obsessão) com ela, perseguindo-a afincadamente. Por outras palavras, esse foi o momento em que a recém-actriz, sem se aperceber na altura, perdeu a sua liberdade. Por mais enigmático que possa ser o desenlace da história e as cenas que o antecem, um nevoeiro ainda mais denso, carregado de mistério e de dúvida, parece pairar sobre a definição de liberdade. O quão subjectiva esta pode ser, tendo em conta a opressão, alicercada no anonimato, que é exibida neste drama psicológico.

 

 

Conclusão

Em suma, Perfect Blue é uma viagem aos primórdios do mundo do stalking virtual, que destapa a impreparação e as fragilidades das pessoas que têm uma exposição pública significativa. O nó no cérebro, que Satoshi Kon ata no espectador à medida que o filme avança, revela-se tão intrincado quanto parece ser hoje em dia lidar com a fama de uma forma sustentável. Isto é, sem se sujeitar a tudo; sem cair no rídiculo; sem que para isso se comprometa a integridade, as vontades, o próprio poder de decisão, e os valores em que se acredita. Nesta Era Digital, onde o mundo se pode desligar com um simples clique, como têm comprovado os ataques cibernéticos recentes (lembram-se de Summer Wars?), há ainda os que conseguem alcançar a fama com meia dúzia de vídeos e cliques, e ser cancelados com a mesma rapidez (pior: brutalmente ameaçados). Algo que, como aqui se comprova, para os impreparados e inocentes, tem grandes consequências na sua saúde mental. O preço a pagar pela fama é bastante elevado. Seja para os que procuram ser celebridades a todo o custo, seja para quem o é por mérito ou resultado de um sentido de dever. Assim sendo, é fundamental estar-se preparado para esse investimento. Até porque a maioria das consequências, dê por onde der, serão sempre pagas pelo seu proprietário.

Um filme disponível na Netflix.

 

Perfect Blue – Trailer