Nota: Este texto é uma tradução do artigo originalmente publicado no webstite The Atlantic, escrito pela Selana Hoy (freelancer residente em Tóquio). Algumas informações foram adicionadas e outras actualizadas.
É uma visão muito comum por entre o trânsito massivo japonês: crianças viajam, a pé e de transportes públicos, sozinhas ou em grupo com outras crianças da mesma idade, sem qualquer acompanhamento de um adulto. A idade mínima é de 6 a 7 anos e estão a caminho ou de regresso da escola.
O programa de entretenimento Hajimete no Otsukai (My First Errand, que poderá ser traduzido para O Meu Primeiro Recado), acaba por ser um bom exemplo desta realidade.
Os protagonistas são crianças enviadas pelas famílias para adiantar algumas tarefas familiares do quotidiano, como por exemplo comprar pão ou ir à mercearia. A viagem é secretamente gravada por uma equipa de profissionais.
É muito interessante espreitar esta realidade:
https://www.youtube.com/watch?v=e5k5XTZy0rA&list=PLygWUALNgaIdFdhuTYDOvHsQUNPMbNWQo
https://www.youtube.com/watch?v=9eMZp8KsZ5k
Este vídeo não é do programa acima mencionado. Foca-se mais na comparação de comportamentos com o ocidente, nomeadamente na Austrália, que acaba por ser muito semelhante à nossa realidade:
A independência das Crianças Japonesas
Além dos vídeos acima, a escritora Selena Hoy recolheu o seguinte relato:
Kaito, um rapaz de 12 anos a viver em Tóquio, viaja sozinho entre a casa da mãe e a casa do pai, que dividem a custódia desde os seus 9 anos. “No início estava um bocadinho preocupado” – Kaito admite – “se conseguiria andar sozinho no comboio, mas só um bocadinho”.
Agora ele afirma que é fácil. Os pais no início também estavam apreensivos, mas acabaram por seguir em frente com a decisão, porque sentiram que já tinha idade suficiente para o fazer e muitas crianças fazem-no diariamente em segurança.
“Honestamente, o que me lembro de pensar na altura da decisão foi: os comboios são seguros, chegam sempre a tempo e são fáceis de usar, além disso é um rapaz inteligente”.
“Quando era mais nova que ele, lembro-me de estar sempre a andar de comboio sozinha por Tóquio” – recorda a madrasta – “Naquela altura não tínhamos telemóveis e sempre consegui ir de ponto A a ponto B. Agora se ele se perder pode-nos ligar”.
Como se pode verificar por este relato e pelos vídeos acima, as crianças japonesas parecem ter um elevado grau de independência desde muito cedo. Qual será a razão?
Tudo aponta que não será um caso de auto-suficiência, mas sim um caso de “dependência de grupo”. De acordo com Dwayne Dixon, um antropologista cultural que escreveu a dissertação de doutoramento sobre a Juventude Japonesa, as crianças japonesas:
Aprendem muito cedo que, idealmente, qualquer membro da comunidade pode ser chamado para servir ou ajudar os outros.
Para isso, têm uma educação que reforça e sensibiliza para a existência de uma comunidade, através da promoção de turnos em limpezas escolares por parte das crianças, e até a servir os almoços, em vez de dependerem completamente dos auxiliares.
Isto faz com que o trabalho seja distribuído por vários ombros, enquanto os ensina sobre esforço necessário para limpar uma sanita, por exemplo.
Incutir o sentido de responsabilidade sobre os espaços partilhados, leva a que as crianças sintam orgulho por fazerem parte deles, leva-as a entender de uma forma muito concreta as consequências de os danificar, uma vez que se o fizerem terão de se responsabilizar. Esta ética estende-se até aos espaços públicos mais amplos, o que acaba por ser um factor determinante nas razões que levam a que as ruas japonesas sejam tão limpas.
Uma criança sozinha num local público, tem a consciência de que em caso de emergência pode depender do grupo presente para pedir ajuda.
O Japão apresenta uma baixíssima taxa de criminalidade, que é seguramente uma das razões que leva a que os pais se sintam confiantes em deixar os filhos andar sozinhos nas ruas. Contudo, os espaços urbanos de baixa escala e a cultura que o Japão tem de caminhar e de viajar em transportes públicos, alimenta a segurança e, talvez mais importante, aumenta a percepção de segurança.
No Japão, as pessoas estão habituadas a caminhar e os transportes públicos suplantam a escolha de viajar de carro. Em Tóquio, metade das viagens são realizadas de comboio ou de autocarro e um quarto é realizada a pé. Os condutores estão habituados a partilhar a estrada com pedestres e ciclistas.
A madrasta de Kaito acabou por provar um pouco as teorias e observações de Dwayne Dixon, ao afirmar que não deixaria o filho de 9 anos andar sozinho no metro de Londres ou de Nova Iorque, apenas em Tóquio. Claro que nada disto indica que os transportes públicos de Tóquio estejam isentos de perigo.
Existe, por exemplo, o frequente problema de mulheres e jovens raparigas serem assediadas verbal e fisicamente, que acabou por levar à introdução de carruagens exclusivas para mulheres, em algumas linhas, nos inícios de 2000. Mesmo assim, muitas crianças continuam a viajar de comboio para a escola, e para realizar tarefas dentro da sua vizinhança, sem qualquer tipo de supervisão por parte de um adulto.
Ao ser-lhes dada esta liberdade, os pais estão a colocar e a demonstrar uma enorme confiança nos filhos, mas também em toda a comunidade.
Para terminar deixo-vos com esta observação de Dixon:
Em qualquer parte do mundo é possível encontrar crianças que sejam auto-suficientes, mas uma das coisas que suspeito que intriga imenso os ocidentais em relação ao Japão, é esta sensação de confiança e cooperação que existe na sociedade japonesa e que, acontece, muitas vezes, sem ser comunicada ou pedida.
Fonte: The Atlantic