“Eu também estava a aprender a andar. (…) Um dia, quando puder caminhar por mim mesmo, irei ter com ela”. É com esta frase (tradução livre) que o filme “The Garden of Words”, de nome original: “Kotonoha no Niwa”, dirigio por Makoto Shinkai, se despede do público. E embora este texto seja sobre essa longa-metragem, ainda vou demorar a chegar a ela. Aos interessados, apelo a que se aguentem.
Crescer de acordo com a média
Aprender a andar. Não tenho memória de tal práctica, mas o acto remete-me para os primórdios da minha vida. Aquela fase de bebé repleta de momentos difusos que por vezes nem sei se existiram ou se são imaginação minha. Agora, muitos anos volvidos, a nova geração de recém-nascidos traz já consigo algumas faculdades que se coadunam com os padrões e as influências das sociedades modernas e tecnológicas. Mas apesar dessas alterações, não deixam de passar pelas várias etapas que caracterizam os primeiros tempos de vida. Ainda antes do aprender a andar, há (por vezes) o gatinhar, as dores e o aparecimento dos primeiros dentes, as primeiras viroses e sons proferidos, a ligação ao leite materno e à chupeta, entre outras coisas. Quanto a nós, com mais idade, quer no novo papel de pais, quer de familiares próximos de quem o seja, passamos a ouvir muito mais conversas sobre estes assuntos, onde se inclui a formação dos padrões de comportamento dos rebentos. Isto é: que o bebé deve fazer isto após X meses de vida, aquilo após meio ano, já deve ter dentes não sei quanto tempo depois, e caminhar a partir de Y anos. Quando isso se verifica, tudo parece estar bem. Caso contrário, se estas coisas começam a fugir demasiado do espectro formado pelas vozes que ouvimos, isso começa a tornar-se um problema e uma preocupação para os pais que, fruto da pressão, muitas vezes acabam por tomar medidas (precipitadas?) a fim de reinserir as crianças nos moldes convencionais à data.
Por outras palavras, desde muito cedo, começamos a ser programados de acordo com os parâmetros estabelecidos pela sociedade que nos acolhe. Há um conjunto de regras ou, se antes preferirem, de linhas orientadoras que devemos seguir com vista a sentirmo-nos inseridos na mesma. Porque estar dentro dessas linhas, supostamente, é o ideal para toda a gente. Ora, lá no fundo sabemos que não é assim. E com isto quero chegar é à parte dos nichos, das minorias, dos que estão à frente ou atrás do seu tempo, dos que, embora não se identifiquem com muitas das regras da civilização, ou estejam fora do intervalo de tempo ideal para cruzarem determinadas etapas da vida, acabam por desaguar numa das três seguintes situações: ou sucumbem à pressão das regras estipuladas pela sociedade e agem de forma controlada ou desesperada para se verem reinseridos o mais depressa possível; ou não têm qualquer tipo de problema com isso e encontram maneira de seguir as suas convicções, sem que as “consequências” dessa libertação do status quo seja um problema para eles; ou deixam-se invadir por uma certa apatia e indiferença, mantendo-se vivos dia após dia, mas paradoxalmente, sem vida.
Vidas para lá da generalização
A meu ver, é entre estes dois últimos casos que “The Garden of Words” encaixa. Ou melhor, as duas personagens principais do filme representam estes dois caminhos. Quer Yukari Yukino, quer Takao Akizuki, revelam muitas dificuldades em lidar com os parâmetros tradicionais, o que por sua vez origina rotinas anormais, da parte de ambos. E são precisamente essas rotinas fora do comum que acabam por cruzar as suas vidas. Enquanto Takao tem uma vida completamente diferente da de um jovem da sua idade, pois tem demasiadas responsabilidades sobre os ombros para o que seria de esperar, Yukari está a passar por uma grave depressão e tenta fugir da sua realidade do trabalho a todo o custo, sendo incapaz de a enfrentar. Além disso, como a própria confessa, e apesar dos seus 27 anos, ela sente que a sua mentalidade não amadureceu deste os 15 anos (idade cronológica de Takao). Portanto, é caso para dizer que as características de ambos estão trocadas e que esses papéis assentavam melhor se fossem invertidos. Mas a realidade deles é esta, e extrapolando a situação para fora do filme, será possivelmente a de muitas pessoas que habitam o nosso planeta.
Segundo é minha interpretação, esta longa-metragem de Makoto Shinkai é sobre essas pessoas e a possibilidade de também elas terem o seu próprio caminho, que não é o mais frequentado, mas existe!, para uma vida equilibrada e feliz. Porque estes dois apaixonam-se e, independentemente do desfecho do filme, reequilibram as suas vidas depois de se conhecerem, por vias que a sociedade não publicita. Aliás, até a ponte de contacto entre os dois (a chuva!) é fora do comum. Nesta história, a chuva é a “deixa” inusitada para um romance, à primeira vista, igualmente inusitado. Mas funciona e, feitas as contas, o resultado práctico é o mesmo alcançado por uma relação dita “normal”.
Sentimentos comuns, vivências diferentes
Em suma, tudo parece estar do avesso. Mas as jornadas (e o desfecho) destes protagonistas não fogem do espectro daquelas que as “pessoa da sociedade” atravessam. A estética exterior poderá ser diferente aos olhos de quem aprecia esta relação (que oscila entre a amizade e o amor), mas os sentimentos que circulam dentro daquelas personagens podem ser encontrados dentro de qualquer outro ser humano. Porque no fim das contas é isso que todos somos: meros seres humanos.
O filme é curto, contudo – para lá de ser das mais belas produções visuais anime a que já assisti, um assunto sem espaço nesta reflexão -, a mensagem dos seus responsáveis, subjectiva a muitas interpretações, parece-me bastante forte. Não será por acaso que a maior parte deste texto acabou por fugir, indirectamente, do contexto da obra. Porque assim como a vida não é linear, por mais que a tentemos formatar e amolgar dentro de algumas regras, esta história também não encaixa dentro dessas linhas. Aliás, não deixa de ser irónico que Takao tenha como passatempo confeccionar sapatos, que é tudo menos um hobbie que se possa imaginar por estes dias para um rapaz da sua idade. Além de ser uma arte muito rara, consigo “ler” esta atenção dada ao molde e fabrico do sapato no filme como um reforço dessa mensagem dos limites e linhas de orientação definidos por cada civilização.
Ainda sobre a chuva
E em jeito de despedida, volto novamente àquela protagonista mais sub-reptícia: a chuva. Além de cruzar o destino de Takao e Yukinari, encontro nela mais um exemplo de como há vida para lá dos padrões que nós próprios, a cada geração, década, século, ou milénio, numa qualquer região do globo, convencionamos como normais e adequados. A chuva pode ser desagradável, causar inundações, até deixar-nos desconfortáveis e ensopados a caminho de algum lugar onde queríamos chegar secos e quentinhos. No entanto, espreitando para o outro lado do espelho, quem nunca se divertiu a correr à chuva, a chapinhar e pisar as poças de água com convicção, para se molhar a si ou aos próprios amigos que alinharam na brincadeira? Quem nunca foi feliz assim, sem sentir falta do quase sempre bem-visto Sol? Eu já! E, volta e meia, ainda o continuo a ser.