Antes de começar mesmo a falar do assunto em mãos, quero tocar em duas pequenas coisas: o título, e a minha visão sobre o que se pretende com uma adaptação.
Primeiro, o título. É bait? Um bocado, mas uma pessoa faz o que pode para que vocês, leitores, possam chegar a este ponto. Se ficam, isso vai depender do quão interessante é tanto o tópico como a minha ótica sobre ele. Por isso, se mordeste o isco, já agora que valha a pena.
Segundo, uma adaptação. O que precisa de fazer uma adaptação para a considerarmos perfeita? Tem de seguir a história? Certamente. Deve respeitar a visão criador? Amplamente, com pontuais excepções, que aqui não vou tocar. Deve respeitar o design original? Depende, acho que há margem para muito, mas desvirtuamentos completos e sem propósito também me parece desnecessário. Deve tomar partido das características únicas do meio para o qual vai transportar a obra mãe, de forma a elevá-la ou colocá-la sobre uma nova luz? Decididamente.
O que eu acabei de escrever é lei ou sequer uma definição plausível do que deve ser uma adaptação entre duas formas de arte? Não, de todo! É plausível para mim; este é o meu ângulo de ataque quando me vejo perante uma adaptação, sobretudo de obras de partida que me são queridas ou que sigo com algum interesse.
Ah, e já agora, outra coisa que já deve ter sido papagaiada por toda a gente que alguma vez ousou escrever sobre o termo perfeição e sua família de palavras: o conceito em si mesmo, desprovido de subjectividade e assente em, chamados, “dados objectivos” e “provas concretas” não existe. A meu ver, este pedestal linguístico só se observa através de um filtro inteiramente pessoal, por muita objectividade que tentemos injectar no argumento. Isto é basicamente um TL;DR de: o que vou dizer é inteiramente a minha opinião, e só minha!
Posto isto, vamos começar!
Chainsaw Man tem uma adaptação anime perfeita…
A adaptação anime de Chainsaw Man estreou na presente temporada de outono (à data de escrita deste artigo) e dizer que era uma adaptação altamente aguardada é o mesmo que dizer que a Coca-Cola do McDonald’s é 100% Coca-Cola. Seguindo a tradição de anos recentes, adaptações de populares obras manga têm sido aguardas com hype exponencial; somando a isso o anúncio de que estaria nas mãos de provavelmente o estúdio mais HYPED do momento, MAPPA, pode-se dizer que até o Presidente da República deve ter recebido uma notificação no Twitter a alertá-lo para “check this shit out” com o link do teaser anexado.
Podia estar a exagerar, mas, dado que ando em cima do dossier Chainsaw Man desde que o manga tinha praí dez capítulos, sinto-me na capacidade de afirmar que até estou a ser bastante brando nesta descrição.
Agora que já foram lançados oito episódios, está na altura de tentar responder à questão: Que tal está a adaptação anime de Chainsaw Man?
Eu estava errado!
Achei que a adaptação ia falhar? Claro que não. Contudo, fui totalmente apanhado na curva quando me fui apercebendo e informando sobre o sentimento vigente do pessoal do estúdio MAPPA relativamente às obras de Tatsuki Fujimoto, em geral, e, mais concretamente, a Chainsaw Man. Não espero que toda a gente saiba isto, mas quem comprou o bilhete para a 1.ª classe do hypetrain deve com certeza recordar-se de que, em entrevista, o próprio CEO do estúdio disse que não só quer “completar Chainsaw Man“ [parafraseando], como um dia, quem sabe, podemos ver serem animadas as outras obras de Fujimoto-sensei [parafraseando… novamente].
Soma-se a isto o facto do estúdio ter prescindido de um comité de produção e estar a arcar com a totalidade dos encargos que envolvem a criação do anime. Popular ou não – e, sejamos honestos, de todas as obras que estão ou estiveram nas mãos do estúdio, Chainsaw Man não é a mais conhecida – este tipo de risco não se faz com os olhos na receita. Por algum motivo, o risco da criação de anime é dividido entre vários produtores: a maioria dos anime tem avenidas de retorno bem estreitas, e muitos deles têm sorte se recuperarem pelo menos o investimento. Portanto, seja o meu lado de fanboy a falar ou não, acho que isto quer dizer que há um legítimo interesse no autor e na obra.
E foi aqui que eu errei redondamente!
Eu achava, sobretudo depois de ver o teaser de anúncio do anime, que a estratégia do estúdio seria a de abordar Chainsaw Man com maior ênfase nos elementos tradicionais do género: shounen, ação, ‘poderes’, ação, lutas, ação, beldades, ação… E, em minha defesa, o teaser parecia mesmo alimentar esse meu receio.
A isto juntou-se outro facto que me deixou de pé atrás à partida e que, mesmo agora ao fim de oito episódios ainda penso bastante sobre: porque está tudo tão bonito? Não me interpretem mal, nada contra… no vácuo. As minhas reticências são que, o feel não é distintivo o suficiente de outras obras. Na altura lembro-me de comentar com o HYPEMAN (podem ouvi-lo a atura-me no GenkiCast!) de que mandava vibes, em termos de visuais, de Jujutsu Kaisen. Onde está o grotesco, a estranheza? Não sei porquê, mas enquanto lia o manga nunca me pareceu viável ou até que fosse desejável adaptar Chainsaw Man, porém, se tal acontecesse, a minha mente divagou sobre como seria realizado visualmente. “O mais estranho possível”, pensei eu.
O anúncio do MAPPA até me fez sonhar mais. Um estúdio que no seu catálogo conta com obras como Punch Line, Dororo, Zombieland Saga, Dorohedoro e, mais recentemente, Heion Sedai no Idaten-tachi, fez-me pensar: “Oh sim MAPPA, entrega-me o estranho, o bizarro e o abominável!”. Vi o teaser e tremi, bati o pé, fiz birra e fiz rants a quem quisesse ouvir de que a adaptação ia apelar às massas, e desviar-se o mais possível das pequenas, enormes coisas que são a essência de Chainsaw Man [Para mim. Chill malta!].
Acho que nunca me senti tão feliz por estar tão redondamente errado!
Habitat de cinéfilos
Começando pelo óbvio. A animação é fantástica, seja qual for o meu hot take para o design no geral. O como é fantástica é que me deixa em apneia de excitação. A realização do anime está qualquer coisa. Cada decisão é cuidada e parece-me obedecer à máxima de “invocar o espírito do manga” sempre que possível. E sim, estou a considerar as conceções e acidentes artísticos que fazem parte de qualquer processo criativo. Contudo, muito honestamente, estava quase a sacar de um bloco de notas para apontar todas as “falhas” da adaptação, qual treinador de bancada, e todos os episódios concluem comigo a ponderar se devo ou não mandar um cabaz de agradecimento a todo o staff. Seja pela geografia das cenas, o posicionamento da ‘câmara’, os cortes, os segmentos contínuos, os close-ups, os shot-reverse shot, os dutch angles, os wide shots, o foco no background, o foco no primeiro plano, as frames como se tivessem sido filmadas com uma lente olho de peixe; podia continuar a discorrer terminologia cinematográfica de ‘pseudo-entendido’ por pelo menos mais umas cinco linhas, e tudo isto para dizer que o anime é um mimo para todo o fã de cinema, como abertamente o é Tatsuki Fujimoto, o criador. E, como se o anime em si não fosse suficientemente claro a ilustrar esse amor à sétima arte através de tudo o que falei, eis que temos o Opening e os Endings.
Todavia, antes de falarmos dessas cerejas no topo do sundae de chocolate, responder a uma breve possível questão que possa ter ficado desta secção: Tudo isto de realização e estilo e tal, é empregue em prol da narrativa? São as ferramentas e mestria certas para servirem de guia ao mundo e personagens de Chainsaw Man? Yup, mas falarei disso mais abaixo, noutro ponto desta quase tese.
Voltando ao assunto em mãos, OP e EDs. Estes serão, porventura, os aspectos de um anime que a priori não faço qualquer conjuntura ou sobre os quais deposito qualquer expectativa. No caso de Chainsaw Man, isso não foi excepção, mas apenas para o ending. Para o opening eu, e não apenas eu, tinha um desejo: usar o tema dos SiM – Devil in your Heart [vídeo abaixo]. Isto porque, foi feito uma espécie de OP fanmade usando as imagens de um PV do manga e, vendo os cortes justapostos com este tema, mais do que apropriado em letra e estilo, sonhei com uma realidade na qual um hipotético anime da obra usaria o tema para abrir cada delicioso episódio.
Não aconteceu, mas sinceramente nem sinto falta! “KICK BACK” tem um groove bem particular e contagiante, e sinto que casa perfeitamente com a caótica natureza da obra. Ao tema, por entre várias homages a filmes bem conhecidos, facto mais que noticiado aquando da revelação do OP, juntam-se subtis e deliciosos momentos de personagem que, para o espetador mais astuto, ou para o fiel seguidor do manga, são brindes que elevam esta abertura a um patamar que transcende qualquer análise.
Ainda assim, o destaque tem que ir para os EDs. Os endings tendem a ser a parte mais negligenciada pelos espectadores, do fã casual, ao maior sugador de conteúdo. Aposto que se passa o mesmo com cada um de vós, admitam lá! O que me pasmou nem foi o número de EDs em si, foi aperceber-me que, uma produção praticamente toda in house, totalmente às costas do estúdio, que está a dar tudo o que pode em cada episódio, que fez um OP banger cheio de sumo, ainda arranjou forma de:
- convidar 12 artistas dos melhores que o país tem para oferecer, com estilos variadíssimos;
- fazer para cada tema uma sequência ending que, não só tenha em conta o conteúdo do respectivo episódio, como os elementos da obra como um todo, e para o qual emprega um estilo visual e técnicas próprias.
Como fazer endings impossíveis de ignorar: sugar, spice and a lot of love por uma obra e um criador.
Tanto para ver nas entrelinhas…
Caminhando para o final deste artigo, chega agora a altura de responder à tal questão que coloquei acima: Tudo isto de realização e estilo e tal, é empregue em prol da narrativa? São as ferramentas e mestria certas para servirem de guia ao mundo e personagens de Chainsaw Man?
Não me vou poder alongar tanto quanto gostaria, porque a maior parte das coisas que eu fosse dizer cairiam certamente na categoria de spoilers, e isso é algo que eu não quero fazer. Muito do genuíno fascínio de ler, e agora de ver, Chainsaw Man vem de todas as interações entre as personagens, e não somente das principais, vem de todos os momentos surpreendentes que acontecem e nos fazem puxar pela memória, voltar páginas atrás e fixar em linhas de diálogo, olhares, acções que serviram de premonição e nos passaram debaixo do radar, e vem do momento que temos as peças todas perfiladas em cima da mesa, pensamos que a imagem do puzzle montado vai ser a X e no final… E tudo isto é capturado desde o OP, passando pelo episódio e termina em cada ending. Para ilustrar vou dar dois exemplos deliciosos, um do opening e outro do episódio 4:
- Opening: Estão a ver aquela sequência com as várias personagens na sala de cinema? Aquela que várias fontes correctamente, a meu ver, associaram ao one-shot do Fujimoto-sensei, Goodbye, Eri? Essa parte tem uma das interações de personagem que eu mais gosto da obra. A Kobeni levanta-se para ir a algum lado, no seu lugar senta-se a Power que, quando a pobre regressa, lhe recusa o acesso ao lugar que era seu por direito e a Kobeni mete-se de cócoras a abraçar os joelhos. É um detalhe pequeno mas que é imediatamente uma janela para a dinâmica entre as duas personagens, a qual eventualmente veríamos nascer no episódio 6.
- Episódio 4: Aqui tenho de, obviamente, referir o retrato delicado da rotina matinal do Aki, e um pouco da do Denji, e o quanto isso diz sobre a sua dinâmica enquanto colegas de casa, e como isso mais tarde contrasta de forma sublime com a chegada da Power. Pondo isso de lado, meme ou não, repostada ou não, toda a rotina matinal mostra muito sobre a personagem do Aki através de cada uma das suas ações e todos os envolvidos trataram a cena com as mãos de uma avó que faz o bolo favorito do neto.
Isto são apenas dois exemplos. Quando digo que todos os episódios têm coisas assim não estou a exagerar. Para quem não lê manga, garanto, por muito que eu defenda sempre a leitura do manga, neste caso, entendo perfeitamente se apenas ficarem pelo anime. Não subtrai nada e adiciona tanto. E ainda falta mais uma dessas adições: a atuação vocal.
Para os mais distraídos, ou vá, mais focados no entretenimento da coisa, muitas vezes a forma como as personagens falam passa ao lado. Talvez por desconhecimento da língua, possam depreender que é necessário conhecê-la para apreciar as nuances de uma performance vocal? Não sei, estou a mandar o barro à parede. Não digo que o conhecimento da língua não ajude e até não abra portas a ainda mais ‘doces’, mas a forma como algo é dito, às vezes é tão ou mais importante do que aquilo que é dito. Este aspecto dos anime foi-se tornando cada vez mais importante na minha apreciação pelo meio com o passar dos anos.
Depois de tudo o que já disse sobre a produção, certamente não será surpresa quando digo que o casting foi mais um dos pontos da adaptação que parece ter sido tratado com pinças, e planeado como um jogo de um jogo de shogi. O elenco conta com novatos, seiyuu inexperientes sem papéis de protagonismo, estrelas em ascensão e veteranos da indústria. Estas diferenças de experiência sem dúvida que criam um ambiente propício a gerarem-se situações de constante aprendizagem, ingenuidade, aparecimento de novos pontos de vista e pensamentos fora de caixa e, acima de tudo, evolução constante. As vozes do Denji, Aki, Power e Makima estão no ponto, e quando somamos a isto as vozes da Himeno, Kobeni e, para coroar, a do Kishibe, não consigo ‘desver’ a vocalização ideal das personagens que tanto gosto.
Sobretudo as vozes da Power, da Makima, da Kobeni e do Kishibe…. chef’s kiss!
EPÍLOGO
Primeiro que tudo, se chegaste até aqui: Wow, obrigado! Este artigo começou com uma ideia simples, a de olhar para as adaptações que estão atualmente a fazer o pessoal vibrar e, tendo em conta o meu conhecimento sobre a obra original, colocar o anime sob a lupa e cachimbo e dar o meu parecer sobre o que está a ser feito. Nunca pensei que falar sobre o anime de Chainsaw Man levasse a algo desta extensão, ainda para mais quando nem sequer mexi em nada da narrativa ou diretamente sobre as personagens!
Ainda assim, sinto que tirei um peso de cima do peito e que, ao leres este artigo, possas olhar para esta adaptação e para outras de maneiras diferentes e, quiçá, mais ricas.
A adaptação faz tudo o que eu queria e mais: é um projecto que pega naquilo que tem de único, a cor, o movimento, o som, o dinamismo, para colocar a obra original sobre outra lupa ao mesmo tempo que lhe presta a maior das homenagens ao destacar todas as suas nuances. Na minha aceção da palavra perfeição, este anime encaixa que nem compota na torrada, não é Denji?