Notas:
- Este filme encontra-se disponível na Netflix. Lá também poderão encontrar a adaptação anime de 2003 e o remake de 2009.
- Este texto é orientado para quem já viu o filme e pelo menos uma das adaptações a anime. Se não quiseres saber detalhes, tanto do filme como das adaptações que o precederam, aconselho que primeiro passes por este artigo: Fullmetal Alchemist Live Action – Análise
É rara a coisa que me ofende e há pouca coisa que me chateie. Tenho a norma de procurar a parte boa de um filme muito mau. Tenho a tendência, talvez errada, de ver um filme muito mau e pensar: pelo menos tem aqueles cinco minutos muito bons que devem ter dado muito trabalho.
Contudo, Fullmetal Alchemist é das minhas coisas favoritas, de maneiras que tenho que fazer o exercício de, não só tentar encontrar algo bom nestas duas horas e quinze minutos como também de lhe escrutinar as entranhas. Atenção, eu não vi o filme a pensar que era mau. Eu vi o filme com zero expectativas, só tinha visto um teaser e até estava com um espírito minimamente positivo.
Está difícil entrarmos numa época em que criar algum tipo de expectativa seja uma tarefa fácil. E infelizmente parece-me que ainda se está muito longe de entender o que é preciso para fazer uma boa adaptação. O que é estranho, pois existem soberbos exemplos como a adaptação de Old Boy, criada em 2003, pelo magistral Chan-wook Park, ou até o recente exemplo da trilogia de Rurouni Kenshin, do Keishi Ohtomo.
Mas bem, vamos lá ao dito-cujo.
No seu todo não é um filme que cause muita agonia, até acho que o mais complicado de digerir será a primeira meia hora. Isto deve-se a muitas razões, sendo que a principal recai no facto destes trinta minutos serem essencialmente carregados pelo Ryôsuke Yamada, que foi o escolhido para interpretar o Edward Elric, talvez por ser uma cara bonita por terras nipónicas, porque ele como ator é péssimo.
De Edward tem muito pouco – ou nada – e claramente não estudou a personagem. Tem até certos momentos que está a tentar imitar o Jack Sparrow do Johnny Depp, e ultrapassa-me porque é que ele escolheu esta personagem como referência.
Ele falha nas mais variadíssimas ocasiões, é incapaz de retratar as características que definem o Edward, é incapaz de demonstrar expressões minimamente convincentes. Ele não me parece sequer capaz do necessário para retratar um humano, que fará quando a narrativa requer que ele interprete a dimensão emocional do Edward Elric.
Tenho o receio que este Edward seja a primeira exposição que muita gente vá ter à personagem.
Por outro lado, Atom Mizuishi, o rapaz que interpretou o Alphonse Elric, saiu-se muito bem. Até porque não teve que lhe dar expressões faciais nem corporais, o papel dele era em algo que os japoneses se safam muito bem: voice acting.
E uma vez que o Alphonse foi criado através de CGI, não tem aqueles momentos caricatos onde a armadura fica toda desenformada de modo a expressar emoção, aqui temos uma armadura estática, o que faz todo o sentido e pede muito da habilidade do ator. Daí ser importante referir que ele, com recurso à voz, conseguiu passar o estado de espírito da personagem sem ter que interpretar algo visualmente. Não é que esteja perfeito, mas não me chateou e fez-me lembrar muitas vezes a voz original, o que já é dizer muito.
Neste ponto destaco também quem trabalhou na voz do Truth – não encontro o nome de quem trabalhou nele em lado nenhum – que está interessante e muito próxima do original. A gesticulação, a interpretação e o visual do Truth estão no ponto.
O grande Jun Kunimura foi escolhido para interpretar o interessante Dr. Tim Marcoh, que deve ter sido o aneurisma positivo da equipa responsável pelo casting. O visual e a interpretação dele foram boas ao ponto de eu sentir que o Marcoh tinha saltado para a vida real. O único problema dele é ser a parte mais pequenina do filme. Ainda assim, em cinco minutos consegue ter mais propósito para a narrativa que a aquela coisa à qual decidiram chamar de Winry. A sério, não me façam falar da menina que tentou interpretar a Grande Winry Rockbell, porque ela de Winry só tinha… nada.
Se calhar vou mesmo falar, tenho que deitar cá para fora. A falta de entendimento do espaço que a Winry ocupa na história é no mínimo inquietante. Mas a culpa está longe de ser só da Tsubasa Honda (aliás, como em todos os casos que foram e serão mencionados)… Caros escritores desta “adaptação”, a Winry não é um objeto sem personalidade, que apenas está lá porque é engraçado ter uma menina ao lado do protagonista. Ela é uma mulher completamente independente, uma personagem com dimensão suficiente para existir sozinha e carregar alguns dos momentos mais marcantes da série.
Muito do que o Ed alcançou deve-se à Winry, muito do que o Ed é deve-se à Winry. Se o Ed chega vivo ao final da narrativa, de qualquer das iterações de Fullmetal, é porque a Winry existe. Ela é o pilar emocional e físico do Ed. Sabem quantas vezes vemos a Winry a trabalhar como mecânica nesta adaptação? Um número redondo delas.
Eu podia fazer todo um outro artigo só sobre a Winry…
https://youtu.be/iTvAh9Z0mGA?t=2m8s
Ainda nas personagens, gostei de como o Dean Fujioka foi encontrando um forma de dar vida ao Roy Mustang, começou mal, mas parece-me que lhe apanhou o jeito com o avançar dos minutos. Ao lado dele estava Misako Renbutsu a interpretar mais uma grande mulher, Riza Hawkeye, que quaaaase passa despercebida. Está longe de ser um caso como o da Winry, pelo menos a Riza ainda teve um momento para mostrar que não precisa do protagonista para existir.
Dos três pecados mortais, o Envy nem me aqueceu nem me arrefeceu, o Gluttony tinha um aspeto interessante e a interpretação não esteve mal, mas a que mais me cativou foi a Lust, interpretada pela Yasuko Matsuyuki. O visual estava próximo e sentia-se a Lust na interpretação.
Ainda assim deixou-me reticente, os momentos dela são bons mas a narrativa peca de novo, não lhe dá atenção suficiente para que a Lust tenha espaço para ser desenvolvida, e com ela a interpretação da Yasuko Matsuyuki.
E dito isto as interpretações são todas más no geral. Aliás, este, juntamente com a narrativa, é um dos pontos que mais estraga o filme. Ninguém ali sabe como são as personagens originais, ninguém se dignou a estudar as histórias, os pormenores que as caracterizam, nem as formas de falar e agir. É provável que exista aqui um completo desinteresse daquela gente pelo material original…
Tanto deles como de quem escreveu esta adaptação. Nota-se à distância que detalhes, assim pequeninos, que não interessam a ninguém, como por exemplo coerência narrativa, eram algo completamente secundário. Olharam para os pontos mais marcantes da história, como a transmutação humana dos irmãos Elric, o Padre Cornello da pequena aldeia de Reole, a conversa de Ed com o Truth, a revelação do Marcoh e a morte dele, a transmutação da Nina e do Alexander em Chimera, a pesquisa do Ed através das informações dadas pelo Marcoh, a discussão do Ed com o Al sobre a possibilidade das memórias deste terem sido implantadas, a morte do Hughes, os Mannequin Soldiers e a morte da Lust pelas mãos do Mustang, e decidiram meter tudo para lá.
Não importa como se vai de ponto A para ponto B, nem interessa porque se vai de ponto A para ponto B, o que interessa é percorrer os pontos todos para que a narrativa possa culminar na cena do Mustang e da Lust. Como é que num só filme temos cenas do episódio 4 (Shou Tucker) e do episódio 50 (Mannequin Soldiers)? Porque não interessa o recheio, não interessa as temáticas abordadas em FMA, apenas interessa mostrar muitas cenas icónicas, umas atrás das outras. E nenhuma delas consegue sequer ombrear as já existentes no manga, em FMA 2003 e em FMA Brotherhood.
Isto resulta em diálogos que servem o propósito exclusivo de exposição de informação, que entram na esfera do “tão mau que dá para rir, só para não chorar”. Era desnecessário.
É bizarro adaptarem a história dos irmãos Elric, mostrarem a transmutação humana, mas depois fugirem às consequências desta ação; fugirem ao momento que o Alphonse confuso, já dentro de uma armadura vazia, contempla o irmão ensanguentado, com um olhar perdido de pânico, mutilado fisicamente, a suplicar-lhe perdão porque só conseguiu remediar a situação onde os colocou; fugirem da cena em que o Alphonse entra na casa da Winry, com o Edward ao colo, a pedir ajuda; fugirem ao momento em que a jovem mecânica salva a vida do pequeno Edward e ainda lhe dá ferramentas para voltar a andar.
Eu compreendo que queiram tornar o filme visualmente acessível para todas as idades, mas há formas de mostrar a carga emocional que caracterizou estas personagens em tão tenra idade.
Acho estranho que abordem o arc da aldeia de Reole mas a personagem mais importante, a Rose, não exista. Faz-me confusão que introduzam o Marcoh só para colocar a informação da Pedra Filosofal e o matem minutos depois. Faz-me ainda mais confusão que tenham a audácia de tocar no arc do Shou Tucker e da Chimera, de mencionarem a guerra civil de Ishval, mas não exista a personagem do Scar, que é responsável por trazer a pesada conclusão ao arc. Aliás a história da Nina não tem conclusão, eles retiram o Scar da equação mas não escrevem algo a substituir. É apenas mencionado que o Ed vai tentar que ela volte ao normal.
E por fim, mas não menos importante, faz-me confusão que a filha do Hughes, a Elicia, ainda não exista, pois ela proporciona um grande momento no funeral do pai, coisa que também foi completamente ignorada. Denoto, nestes e noutros casos, um misto perturbante entre falta de coragem para executar a dita adaptação e falta de compreensão – e respeito – pela a obra adaptada.
Chateia-me tudo isto, chateia-me que no final metam uma cena de créditos finais que indica a produção de uma sequela. Isto porque, se têm intenções de fazer uma continuação, qual é o sentido de afunilar tanta narrativa em duas horas? Não faz sentido. Se não havia intenção de adaptar tudo num filme, para quê adaptar tanto?
E nem vou mencionar as coisas que eles inventaram lá para o meio, de forma a que a história termine no ponto que pretendem.
São cometidos imensos pecados do ponto de vista do que deve ser uma adaptação de Fullmetal Alchemist. Mas o maior é não conseguirem explicar o que é a Alquimia, ou melhor, explicarem muito mal o Conceito que é a Base daquele Universo. O conceito que dá peso ao pecado cometido pelos irmãos Elric. O conceito que torna a Pedra Filosofal algo abominável.
Eles lá tentam explicar através de um monólogo meio forçado do Al, mas não passa disso. E eles tinham a papinha feita, tanto FMA 2003, como FMAB, já tinham mostrado como se deve abordar um dos pontos mais cruciais desta narrativa.
Lembram-se da pequena introdução que passava antes de cada episódio?
– Versão FMA 2003 –
https://www.youtube.com/watch?v=9-mzbLXUgnw
– Versão FMA Brotherhood –
https://www.youtube.com/watch?v=mP_NWJGr6N0
Chateia-me que não saibam qual o tom que Fullmetal Alchemist tem, chateia-me que achem que é uma comédia com momentos dramáticos invés de um drama com momentos de comédia. Por um lado sinto que o realizador do filme, Fumihiko Sori, tem apreço pelo material fonte porque ele acerta em alguns pontos. Partes da cena do arc da Nina, a conversa do Ed com o Truth, a discussão do Ed com o Al, são momentos que têm ali algum poder do original, e em parte sinto que foi o Fumihiko Sori a trazer isto para o ecrã. Por outro lado, é possível que estes momentos só nos façam sentir algo porque estão apoiados na ligação que temos com os originais.
É que nada favorece a possibilidade de Fumihiko Sori ter ajudado na força de algumas cenas. Os aspetos técnicos estão com uma execução pobre, tem planos que não fazem qualquer tipo de sentido, tem uma banda sonora completamente desadequada, preguiçosa, genérica. Eles estão tão inseguros com a substância do filme que a colocam a tocar o filme todo, o que acabou por ser uma má decisão.
O CGI está pouco trabalhado e muito datado. Algumas coisas dão até para gargalhar, principalmente os momentos do Gluttony que fazem lembrar os clássicos cinematográficos de terror pertencentes à série B. Tem demasiado CGI, tem CGI em coisas que nem era necessário ter CGI.
E a edição do filme?… Essa sim é bastante sofrível!
Para quem precisar lavar os ouvidos (uma de cada iteração para não deixar ninguém triste):
O filme vai tendo os seus pontos de redenção, como os que fui mencionando pelo meio da minha hiperventilação. Há mérito na fidelidade e na forma como trouxeram para a realidade algum do guarda-roupa, há mérito em alguns atores, há mérito na execução de algumas cenas. Há mérito na parte visual no que toca à alquimia, não desgostei, por exemplo, de como foi executada a alquimia do Mustang, o CGI do Alphonse e do Truth também estavam bem. Há aqui partes complicadas de executar e eles conseguiram executar. A parte que era mais fácil, que era crucial, e que era completamente controlável, que era a narrativa, as personagens e tudo que rodeia estes dois elementos, eles não conseguiram. E isso chateia, porque podia ter sido uma boa adaptação se tivessem menos pressa.
O filme chateia mas não ofende. Tem algumas partes que são realmente complicadas de ver. Mas o que quero dizer é que não é tão difícil de ver como, por exemplo, o live action de Dragon Ball. Eu continuo a tentar encontrar uma razão para verem esta adaptação, mas estou com dificuldade. A única coisa boa que retiro daqui é que fiquei com vontade de ler o manga e de rever as duas iterações animadas.
Tirando isso foram duas horas e quinze minutos de filme que perdi para que vocês não tenham que perder (lá estou eu a arranjar fundamento para o tempo que perdi). Acho que esta adaptação tem apenas um público, aquele que não tem qualquer tipo de ligação com o que está por detrás da camada de ação/aventura de Fullmetal Alchemist porque isso tem presença. Se querem encontrar aqui as restantes camadas, não percam o vosso tempo.
Sigam o conselho.
A não ser que tenham um equilíbrio peculiar entre curiosidade mórbida e muito tempo livre, não vejam.
Optem antes por ver o Conqueror of Shamballa, é um filme do caraças, é um filme de Fullmetal e é tempo que não vão querer de volta.