O cinema americano sempre teve imensos problemas em adaptar as histórias de outros povos. Devido a restrições de conteúdo e ao seu apelo obrigatoriamente generalista, forma-se um ambiente que sufoca ideias e estilos diferentes. Algo que é ainda mais prejudicado pelo facto que a receção mediática a estes objetos culturais é de natureza caótica e imprevisível. Pelo que vemos nos últimos anos, o público está mais recetivo que nunca a reciclagens de ideias antigas ou pré-estabelecidas.
Esta realidade entra em conflito com uma vontade vanguardista de mudar coisas e ver novas ideias. A verdade é que isto não se trata de algo generalizado e não é o suficiente para por de frente algo de realmente novo até pelo menos os próximos 15 anos. E mesmo assim, esta vontade às vezes não consegue reconhecer quando um filme cumpre essa necessidade. E daí temos o génio ignorado do filme Pacific Rim nascido da visão de Guillermo Del Toro.
Este filme é injustamente visto como apenas uma versão mais visualmente coerente da franquia Transformers, só de si um ponto de comparação atrozmente depreciativo. O mais positivo que se diz acerca deste filme é simplesmente ”awesome” sem qualquer substância. Numa cultura que condena a adaptação de Godzilla de 1998 como uma traição do seu source material e uma completa falta de compreensão de um dos grandes produtos de cultura popular asiática, é triste ver que, especialmente quando alguém com paixão e sabedoria enciclopédica do género que está a homenagear o faz, o reverso é ignorado. Em vez, gostaria de fazer o caso que este filme compreende o género no qual está inserido e presta reverência e homenagem a mais de 50 anos de mecha, servindo de uma ponte de compreensão e amor mútuo de entretenimento e cultura entre povos díspares.
Antes de mais, gostaria só de fazer uma observação muito específica acerca deste filme. As apreciações deixadas em registo da qualidade deste filme não dizem que o filme é mau. O que estou a dizer não é necessariamente um debruçar acerca da qualidade deste filme cinematograficamente. Procuro é dar luz àquilo que faz de único e que o torna num potencial símbolo e exemplo para o futuro, na mesma onda daquilo que Star Wars fez para o fantástico. Como tal, vou explorar este filme através de 3 componentes.
Design Mecânico
Dado que estamos a lidar com uma entrada no género mecha (nome do género), naturalmente que os mechs (os robôs) são um ponto central. Mais especificamente, o seu aspeto e contraste entre si. Este elemento tem sido fulcral na criação da imagem do género como um todo. Um design mecânico memorável é uma parte indispensável da alma mecha. É por isso que veneramos nomes como Go Nagai, Kunio Okawara e Mamoru Nagano. Estes e muitos outros definiram o visual de uma das grandes facetas da cultura popular japonesa. Titãs tão importantes como Jack Kirby e Ralph McQuarrie para a cultura popular ocidental pelas suas imaginações incomparáveis.
Uma vista superficial do elenco mecânico deste filme revela que esta categoria está mais que satisfeita. As máquinas deste filmes são colectivamente batizadas e classificadas como Jeagers (caçadores em alemão). Em vez das superfícies caóticas e interiores pseudo-orgânicos dos Transformers, temos um ênfase mais em superfícies planas e interiores distintamente mecanizadas. Além disso, o filme estabelece a tecnologia subjacente à sua construção. Juntamente com isto, são máquinas que requerem manutenção e instalações especializadas para o efeito e o seu armazenamento. Apesar da inerente fantasia do que está a ser apresentado no ecrã, os Jeagers mexem-se de tal forma a realçar as consequências físicas associadas a uma escala tão grande. Isto contribui para a legitimidade da origem destas máquinas como produto da ciência humana. Desta forma, vemos que Pacific Rim recorre à linguagem visual de real robot. Neste sub-género de mecha, vemos um maior ênfase no realismo e a fundamentação científica.
Porém, o todo é 100% super robot que, por sua vez, é uma influência ainda mais profunda neste filme. Este género de mecha centra-se em máquinas um bocado mais fantásticas que o costume. Geralmente, costuma ter um design mais extravagante com habilidades e nomes coloridos. Embora não sejam tão superficialmente excêntricos como Getter Robo, os designs dos Jeagers recusam standardização e ostentam esquemas de cores distintos e chamativos. Estes são elementos visuais que referenciam diretamente super robot. Isto também se observa através da escala maior dos combatentes e um foco na luta contra criaturas monstruosas, criadas e enviadas com o propósito da destruição do ser humano e a conquista do nosso planeta. Esta era uma fórmula que caracterizava as séries mecha nos tempos primórdios do género. O resultado é um híbrido único de super robot, refeito com a estética e a sensibilidade de real robot.
Passando mais para o particular, os Jeagers individuais são todos excelentes e memoráveis. Cada um deles não só é algo de novo e refrescante mas também homenagens ao legado sobre o qual se apoiam. Para melhor analisar isso, escolho olhar mais de perto a estrela deste filme, a Gipsy Danger. De forma mais simples possível, é o mech mais lindo alguma vez posto no grande ecrã. Confesso que se trata de uma competição um bocado fácil de vencer dado o precedente de Robot Jox e G-Savior. Mas visto que os Jeagers em mostra automaticamente ocupam todos os lugares num qualquer Top 10 de mecha em cinema, não deixa de ser um feito notável Gipsy Danger ser o Jeager que se destaca como a mais memorável, mesmo excluindo a vantagem de um tempo de ecrã acrescentado e o papel de protagonista mecânico.
De uma forma mais complicada, é uma manifestação física de um dos maiores sucessos deste filme. Este representa uma triunfante tentativa ocidental de capturar e refazer a magia dos trabalhos de Go Nagai, além de o traduzir impecavelmente para o vivo. Especificamente, a Gipsy Danger é uma homenagem ocidental ao Mazinger Z. Vemos isso logo na primeira cena em que o Jeager é apresentado. Os seus pilotos, os irmãos Becket, embarcam o mech através da cabeça que serve de cockpit. Esta cabeça é posteriormente conduzida por um corredor descendente de forma a encaixar no resto do corpo. A sequência serve de uma reinterpretação interessante da maneira como o Mazinger Z é pilotado.
Na sua série, Mazinger Z é pilotado através de um hovercraft que voa e encaixa na cabeça. A partir daí, o hovercraft serve como ponto de acesso para o seu piloto, Koji Kabuto, o controlar. Execuções notavelmente diferentes, mas uma ideia unificadora bastante clara. Isto ilustra um diálogo cultural admirável que presta respeito aos seus progenitores. Eventualmente, vemos ainda mais uma espetacular homenagem durante o duelo no cais de Hong Kong.
Nesta sequência, a Gipsy Danger desfere um murro prodigioso ao seu adversário Kaiju com o auxílio de enormes propulsores no cotovelo. Este ato é acompanhado com a proclamação ”Elbow Rockets!” por parte do piloto. Este ataque é um power move característico da Gipsy Danger. Além de ser uma das melhores partes do filme, isto é uma homenagem a um dos mais famosos ataques de Mazinger Z. Nessa série, uma das grandes assinaturas do titular mech é o famoso Rocket Punch. Este consiste na separação do antebraço e punho do mech do resto do corpo de forma a ser impulsionado por um foguete poderoso na base deste e acertar no seu adversário a longa distância. Naturalmente, o piloto berra o nome deste ataque imediatamente antes de o executar.
Mais uma vez, execuções diferentes, mas o exemplo cronologicamente mais posterior está a oferecer uma reinterpretação um bocado mais ”realista” mas não menos clara de uma das sequências mais famosas e influentes da animação japonesa. Todos os restantes Jeagers têm ataques deste género em conjunção com designs que referenciam uma enorme variedade de outros mechs passados. Apesar de muita gente apontar a postura e movimentos pesados e ponderosos como pontos positivos que realçam o realismo e credibilidade do que está a ocorrer no ecrã, a alma e maior implementação por detrás destes duelos grita algo de mais fantástico que está mais em linha com algo saído de Power Rangers.
Drifting a sua simbologia temática
O Drift como um elemento importante neste filme tem sido um ponto de crítica nas apreciações deste. Parece haver consenso acerca da sua arbitrariedade e inutilidade que serve de barreira à sua qualidade. Dado a generalidade desta crítica, eu tenho um grande receio que será descartado no futuro. Algo de inimaginavelmente trágico, dado o génio que esta adição representa tematicamente para o filme. Antes de mais, devo também dizer que se trata de outra excelente homenagem às suas influências.
Especificamente, a ideia de combiner robots introduzida por Getter Robo. Esta série é responsável pela introdução de mecha pilotado por mais que um piloto. Nestas séries, cada piloto tinha um mech único a ele que era capaz de juntar-se aos seus colegas de modo a formar um mech maior e mais forte. Em Getter Robo, os três mechs eram capazes de ter três combinações diferentes consoante o desafio. Tematicamente, introduziu a ideia recorrente de trabalho de equipa e união face a desafios intransponíveis. Narrativamente, facilita oportunidades dramáticas entre as personagens, muitas vezes apresentadas como tendo personalidades diferentes e conflituosas entre si, que precisam de crescer e evoluir de forma a poder não só ultrapassar as suas falhas e diferenças mas também cumprir o seu destino como heróis e defensores da humanidade.
Esta adição criou o precedente importante de um desenvolvimento contínuo para as personagens de mecha. Como consequência, vemos que este género pode oferecer algo de mais para além do monstro semanal. O Drift facilita isto obrigando que o Jeager necessite de um par piloto de forma a cumprir a sua função. Como tal, requer que os pilotos sejam compatíveis mentalmente para pilotar o mech com sucesso. Dentro do contexto do filme, observamos que este sistema é um bocado restritivo, recorrendo a gémeos ou parentes próximos. Mais para a frente do filme, esta restrição é mais flexível de forma a permitir que a história aconteça. Esta aparente falta de consistência é o ponto de crítica que é apontado como justificação para a exclusão do Drift. Embora concorde que exista este problema, discordo com a solução sugerida.
Como já foi estabelecido acima, este sistema é mais uma ponte entre Pacific Rim e as suas raízes. Uma ponte que impulsiona a mensagem do filme de entre-ajuda e cooperação face a horrores incompreensíveis. Paralelamente, oferece uma forma visual de mostrar o passado e as motivações das personagens sem recorrer à exposição excessiva. Esta utilidade é demonstrada belissimamente quando Raleigh vê o evento traumático que fez com que a sua colega, a Mako, dedicasse a sua vida aos esforços contra as incursões Kaiju.
Dado isto, a solução mais apropriada será, logicamente, alterar ligeiramente a implementação do Drift. O descartar a ser feito deve incidir na restrição excessiva imposta nos pilotos que vemos neste filme. Uma simples justificação de avanço tecnológico resolve facilmente este problema. Em vez, pode existir um processo de seleção ainda restrito mas que permita a pessoas de diferentes origens e parentesco formarem pares com maior frequência. Talvez um que requeira um treino mental rigoroso entre o par que facilite conflito e crescimento interpessoal.
A Visão do filme e sua Mensagem
Através do que foi escrito anteriormente e de muitos outros argumentos que não foram postos em papel, percebemos que Pacific Rim carrega o estandarte de mecha com orgulho e distinção sem a necessidade de reciclar séries japonesas. Em conjunção com esta honra, não deixa de ser um excelente filme acessível a todos. É um produto cultural cuja dissecação e exploração não deixa de dar frutos a interessados. Tudo isto faz com que o filme mereça um pedestal no panteão da cultura popular ocidental. Mas o impacto e significância desta vai muito para além da superfície.
Cada vez mais damos passos à frente para um mundo verdadeiramente multicultural. Face a isto, as gerações presentes e futuras irão dar solução a questões importantes que vão definir o estado da humanidade como um todo no futuro. Parte desse esforço passará por normalizar uma visão desse futuro através do conteúdo mediático que consumimos. A solução mais imediata posta de frente consiste na diversificação acrescentada de persongens em termos de sexo e raça. Embora algo de admirável, acaba por ser uma mudança insuficiente a longo termo. Por mais que espere que continuemos a ver personagens verdadeiramente diferentes no ecrã, não deixa de ser verdade que ainda existe uma óbvia divisão de sensibilidades e gostos que não está a ser remediada.
A solução também requer que estejamos abertos a diferentes interpretações e estilos de cultura. Não podemos simplesmente aceitar que as franquias maiores de Hollywood monopolizem a visão artística do mundo. É necessária a inclusão igual da cultura de outros países e povos e os frutos que daí advêm. Nós devemos trabalhar por um mundo no qual Ghost in the Shell está inquestionavelmente ao mesmo nível que Blade Runner. Um mundo no qual olhamos para o esforço artístico estrangeiro com o mesmo respeito e dignidade que algo de mais familiar.
Porém, também precisamos de pontos em comum de forma a forjar uma identidade conjunta. Esta necessidade também deverá ser chefe no futuro. E nesse aspeto, Pacific Rim serve do seu maior campeão, o sucessor moderno de Matrix. Em vez de variações de anglo-saxónicos, temos um elenco multinacional. Em vez de uma história nos EUA, temos a ação passada em Hong Kong. Em vez de naves espaciais, temos mechs. Em vez do derradeiro herói solitário, a vitória é alcançada através do sacrifício e cooperação em serviço de algo para além do indivíduo. O trabalho de manutenção e controlo dos operadores e engenheiros e o trabalho de pesquisa dos cientistas é dada uma igual importância aos esforços mais físicos dos pilotos. Mesmo os monstros são desenhados e inspirados mais na sensibilidade e legado cultural asiático do que ocidental.
Apesar disso, não deixamos de ter ideias e temas comuns e familiares ao ocidente. Temos a conservação de uma narrativa de bom contra mal sem ambiguidade. A Gipsy Danger é apresentada como uma máquina mais velha mas ainda digna de e capaz de serviço por virtude dos seus pilotos e a sua tecnologia analógica. Também continuamos a tradição de um discurso final triunfante declamada pelo comandante com uma catch-frase memorável. Com tudo isto e mais, conseguimos melhor perceber a magnitude do sucesso deste filme. Algo que representa um casamento perfeito entre Este e Oeste. É por isso que o falhanço deste filme será para sempre uma marca negra. Curiosamente, foi o gosto asiático que salvou este filme.
Num mundo que aceita 7 filmes Transformers, aparentemente é um desafio arranjar uma sequela Pacific Rim. Felizmente vamos ter mais um destes filmes, embora com alguns asteriscos. Guillermo Del Toro não retornará ao assento do realizador. Algo de lamentável dado que foi a sua visão e carinho que criou este monumento. Espero que a sua função como produtor mantenha intacta esta possível franquia. E a generalização de algumas críticas preocupa-me pela possível exclusão de elementos que constituem partes integrais da maior mensagem, visão e alma que tornam este filme tão especial. A procura de lucro e sucesso na América pode diluir e alterar irremediavelmente a franquia.
Como sempre, só iremos ter certezas quando o filme aparecer nas nossas salas de cinema. Espero, com todo o coração, que esteja a ser pessimista quanto a isto. Venha o que vier, iremos ter sempre o original. Este filme continua a ser uma história contida com início, meio e fim. Uma obra singular que, caso seja necessário, não carece de continuação. Quando chegar o dia, cabe a nós fazer sentir a nossa presença e finalmente dar o sucesso merecido a esta franquia. Eu espero que sirva de percursor para um futuro que continue a misturar histórias e estilos de diferentes países. Especificamente, espero que ofereça um precedente que não será necessário que anime e manga sacrifique a sua alma através de bastardizações e más adaptações, mas sim através de novas ideias que foram inspiradas por estes e incorporam as suas temáticas e linguagem artística.