“Do you like mystery novels?” – pergunta uma senhora sob interrogatório, no filme “Take Aim at the Police Van” (1960), realizado por Seijun Suzuki. “I prefer mysteries set in Japan.” – o detective responde-lhe.
Este diálogo expressa muito da influência da cultura americana num Japão da época pós-ocupação, não só em terras nipónicas, mas no mundo inteiro. Os popularizados “filmes de detectives“ deixaram uma marca indelével nas cinematografias mais relevantes.
A vaga noir, nascida nos Estados Unidos, e desconstruída na Europa, chega ao Japão nos anos 60, um país cuja indústria cinematográfica era muito controlada pelas forças americanas da ocupação.
Porém, as sensibilidades que tornam um filme numa peça noir já teriam sido vislumbradas nos anos 30, com os gangster films de Yasujiro Ozu – por exemplo o “Dragnet Girl”, de 1933. Apenas nos anos posteriores à ocupação americana é que se cimenta o movimento noir no Japão, começando com as obras de Akira Kurosawa.
Assim como os outros movimentos noir conterrâneos, o “cinema de crime” não tem uma definição nem um conjunto de critérios representativos. Tal como o próprio conceito, que fora cunhado em 1946 pelo crítico francês Nino Frank – referindo-se a um género de longa-metragem de suspense em voga nos anos 30, 40 e 50, situada em ambientes urbanos, com temática criminal e protagonizada por anti-heróis.
O ptAnime curou uma lista de peças noir, que em nada encapsulam este género, mas que ajudam a moldar o cinema japonês – podes ver a lista clicando aqui.
Uma retrospetiva sobre o cinema noir japonês
#1 – “Intimidation” (1960), de Koreyoshi Kurahara
Koreyoshi Kurahara estreou-se na realização para o estúdio Nikkatsu em 1957 e foi em plena era de ouro da produtora que assinou este drama criminal cheio de ganância e vingança.
Em pouco mais de uma hora, Kurahara explora os destinos entrelaçados dos antigos colegas de escola Kyosuke Takita (Nobuo Kaneko) e Matakichi Nakaike (Akira Nishimura), bem como os das suas esposas. Descobre-se que ambos os homens estiveram envolvidos com ambas as mulheres – há até mesmo uma discussão bastante franca sobre um aborto feito por uma das esposas infiéis – e que Nakaike esteve sempre na sombra de Takita, quer seja no amor, na profissão, ou na vida. Ambos trabalham para o mesmo banco, no entanto, Takita é casado com a filha do presidente do banco e vai aceitar uma grande promoção oferecida por um banco concorrente, enquanto Nakaike não é nada além de um homem sem rosto, cuja falta de ambição levou a sua esposa a desprezá-lo.
“Intimidation” é um filme cuja cadência lembra as películas americanas de série B, onde a narrativa torce-se sucessivamente, e é cruel para com as personagens que abriga, dando-nos sempre a ideia de que as coisas que estão a acontecer no filme poderão ser muito piores.
#2 – “Zero Focus” (1961), de Yoshitaro Nomura
Rumando até ao estúdio Shochiku, casa de mestres como Yasujiro Ozu, Mikio Naruse e Kenji Mizoguchi, cria-se “Zero Focus”, um noir à moda de Hitchcock centrado num trio feminino.
Uma semana após o casamento de Teiko Uhara (Yoshiko Kuga), o seu marido, Kenichi, faz uma curta viagem de negócios a Tóquio e nunca mais regressa a casa. Teiko viaja pelo Japão em sua procura, e ao longo do caminho descobre factos surpreendentes sobre o passado do seu esposo. Tudo o que Teiko tem em sua posse, para ajudá-la a encontrar o seu marido, são umas poucas fotografias antigas.
O que começa como um “missing person case” ostensivo, evolui para algo mais obscuro, revelando que os fios da trama são mais espessos do que aparentavam ser.
Um estudo interessante sobre personagem-arquétipos, incitando-nos a ponderar sobre a pressão sofrida por todas as partes, seja em busca da verdade ou de simplesmente, agulhas num palheiro.
#3 – “Stray Dog” (1949), de Akira Kurosawa
Akira Kurosawa viria mais tarde a realizar filmes substanciais com requinte noir, como “The Bad Sleep Well” (1960), ou “High and Low” (1963) – o último adaptado de uma peça do escritor americano Ed McBain. Mas é neste “Stray Dog” (1949) (e também em “Drunken Angel” (1948)) que é possível ver-se enraizada uma noção de um estilo noir intrinsecamente japonês.
A estrela regular de Kurosawa, Toshiro Mifune, interpreta um detetive de homicídios novato, do departamento de Homicídio, que tem a sua arma roubada num autocarro urbano. Lentamente, ele aproxima-se do culpado com a ajuda do parceiro mais velho, mais sábio e também mais cansado, Takashi Shimura.
“Stray Dog” está entre os exemplos de filmes feitos muito à frente do seu tempo, este estabelecendo uma linguagem formal do género buddy-cop movie. Trinta anos depois, os E.U.A dar-lhe-iam o tratamento à Hollywood, gerando franchises como “Die Hard”.
#4 – “Rusty Knife” (1958), de Toshio Masuda
Como a maioria dos cineastas da época, Toshio Masuda era um homem de empresa, um jovem realizador cujos projetos atribuídos eram de estúdio. O que não quer dizer que não lhe foi dada liberdade criativa. Tal como acontece com os filmes noir de série B produzidos simultaneamente em Hollywood, tempo, dinheiro e distribuição eram as principais preocupações dos estúdios. Nikkatsu tinha agora cashier certo com o ator Yujiro Ishihara, com quem Masuda trabalharia em cerca de 24 películas. “Rusty Knife” foi a sua primeira colaboração, reunindo Ishihara com a sua co-estrela (e mais tarde esposa) de “I Am Waiting” (1957), Mie Kitahara.
O filme mostra Ukada, uma cidade recém-industrializada em processo de transformação todas as suas fábricas militares em propriedades comerciais, a ser infestada por gangsters. Um grupo de jovens delinquentes recebe pagamentos de um chefe yakuza para se manterem calados ao testemunharem um homicídio posteriormente mascarado como um suicídio. Um deles quer mais do que o que a mão lhe dá e o caos instala-se.
“Rusty Knife” combina dois momentos chave da história de Hollywood: os gangster films dos anos 30, e o pulsante estilo noir dos anos 40. Uma análise niilista de como a sociedade encontrava-se disposta a viver da maneira que era espectável, onde realmente a corrupção é que nos faz chegar ao topo. A podridão social é um dos motores deste filme e também de todo o género noir.
#5 – “Black River” (1957), de Masaki Kobayashi
“Black River” é um filme de muitas primeiras vezes. É o primeiro filme que confronta a presença dos E.U.A em terras nipónicas (já em período pós-ocupação) e também marca a primeira aparição no ecrã de Tatsuya Nakadai, que viria a estrelar em gemas como “Ran – Os Senhores da Guerra” (1985), “Harakiri” (1962) e “Kagemusha – A Sombra do Guerreiro” (1980). “Black River” é também a peça em que Kobayashi cimenta o seu estilo e essência fílmica – o primeiro filme propriamente kobayashiano.
“Black River” cresce à volta de um triângulo amoroso entre um inocente estudante universitário, a sua namorada e um criminoso de terceira sem escrúpulos (Tatsuya Nakadai), tendo como pano de fundo uma nação que sucumbe à violência e anarquia.
É uma experiência visual fantástica, e em simultâneo profundamente desagradável, cujo desprazer parece vir de lugares não intencionais.
#6 – “Branded to Kill” (1967), de Seijun Suzuki
Quais seriam as condições para que um cineasta fosse demitido de um renomeado estúdio, conhecido pelas suas representações experimentais e ousadas sobre sexo e violência? A produtora Nikkatsu queria um follow up de “Tokyo Drifter” (1966) – um filme marcado pelo estilo incomum e provocador da estética inquietante de Seijun Suzuki, repleto de cores vibrantes e de uma atmosfera pop-art e modernista. O resultado foi “Branded to Kill”, uma obra cinematográfica prismática, que desafiou os cânones dos filmes yakuza, apresentando uma abordagem mais abstrata.
A premissa é muito simples: “Branded to Kill” segue um assassino de terceira que se torna no alvo de outro hit-man após de ter fracassado na sua missão.
É um noir obscuro, suado e fetichista, onde 90 minutos intensos transbordam de cinema puro de suspense e caos psicológico e sexual. A fusão de desejo e violência explosiva é tão intrincada que pode ser desafiador discernir com precisão onde estamos e o que está a acontecer.
#7 – “Tokyo Drifter” (1966), de Seijun Suzuki
Suzuki reaparece nesta lista, desta vez com “Tokyo Drifter” (o primo a cores de “Branded to Kill”), um quase exemplo académico, onde se trabalha a forma para elevar a mensagem. Em premissa, não há muito: uma história de crime rotineira sobre um gangster que tenta redimir-se, mas que as engrenagens do crime organizado o puxam de volta. Suzuki trabalha o que é superficial e torna-o existencial, com uma estilização pop e um distanciamento quase brechtiano.
Essencialmente, o assassino reformado “Phoenix” Tetsu vagueia pelo Japão, aguardando a sua própria execução, até ser chamado de volta a Tóquio para ajudar a combater um gangue rival.
Em conjunto com “Branded to Kill“, a sua obra-prima posterior a preto e branco, que foi tanto a apoteose quanto a queda de Suzuki (o estúdio Nikkatsu despediu-o por insubordinação e o filme fora banido das instituições de ensino), este tornou-se numa cause-celebre. Qualquer que tenha sido o objetivo de Suzuki, o resultado foi um delírio de filme que colocou o realizador na lista dos melhores no Japão.
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