O início da história do cinema de Hong Kong foi absolutamente negligenciado e ofuscado por Xangai, que era a capital da indústria cinematográfica na época.
No final dos anos 1960, a indústria cinematográfica de Hong Kong cresceu. Tinha-se tornado mundialmente conhecida pela impetuosidade dos seus filmes de ação, trabalhados com tanta exuberância e precisão. As acrobacias nos filmes tornaram-se lendárias. Houve uma verdadeira proliferação de filmes de todos os géneros, incluindo as comédias, romances e dramas. A partir da década de 1980, o cinema de Hong Kong ajudou a restabelecer muitos géneros, como filmes de gangsters, dramas policiais e comédias de kung fu, o que forneceu impacto a nível mundial. No entanto, a liberdade que o cinema de Hong Kong experienciou foi restringida pelos contornos do comercialismo irrestrito.
Hong Kong já foi considerada a Hollywood do Ocidente. No seu auge, por volta do início dos anos 90, a indústria cinematográfica local foi a primeira no mundo em termos de produção per capita, bem como o segundo maior exportador de filmes, perdendo apenas para os EUA.
Talvez a Era de Ouro do cinema de Hong Kong tenha passado, mas é provável que as mudanças na eficácia do cinema de Hong Kong tenham muito a ver com as mudanças na tecnologia. No entanto, os próprios filmes, tanto os apresentados como os muitos mais que foram produzidos, contam não uma única história de atitudes políticas, mas uma história multifacetada de muitos impulsos culturais e sociais contrastantes, que se combinaram para continuar a vitalidade desta entidade mais anómala, enquanto enfrenta o seu futuro.
Desconfinamento Cinéfilo – Clássicos do Cinema De Hong Kong
Orphan Island Paradise (1939)
Na história do cinema chinês poucas produções de Hong Kong representaram as esperanças e os sonhos dos “cineastas do continente” mais eloquentemente do que Orphan Island Paradise, de Chusheng Cai.
O filme mais antigo desta lista é um drama de guerra que funde a espionagem noir com um drama socio-realista. Ambientado durante o período da Ilha Órfã de Xangai, Orphan Island Paradise conta a história de um grupo de jovens patriotas que combate traidores e espiões, depois de Xangai ter sido capturada por invasores japoneses.
À medida que a história se desenrola, o público cinéfilo facilmente reconhecerá elementos que viriam a ser concretizados em The Spring River Flows East, de 1947, do pós-guerra, do mesmo realizador. A relativa falta de sutileza de Orphan Island Paradise serve apenas para enfatizar a natureza da sua realização enquanto obra de propaganda em tempo de guerra. Ao atender aos desafios enfrentados pelos cineastas em 1939, a sua ousadia também foi um reflexo do status de Hong Kong como um farol de liberdade criativa durante uma época em que a China enfrentava uma enorme crise.
Laugh, Clown, Laugh (1960)
Uma história símbolo de tristeza, sobre um otimista, amante da diversão, cujo interesse em performar comédia é desprezado pela sua família e os seus futuros sogros ricos.
A comédia trágica de Li Pingqian segue o pai de 50 anos, Bao Fang, e a forma como este manteve uma farsa dignificada, depois de perder o seu emprego de longa data, trabalhando como contabilista, na Tianjin ocupada dos anos 40.
A carreira de Li variou de filmes mudos em escala de cinzas a filmes sonoros coloridos e dos períodos pré-guerra e pós-guerra de Xangai e Hong Kong. Com quase 100 filmes na carteira como realizador e cerca de 25 peças como roteirista, as obras de Li são tão versáteis em tema e género quanto ele próprio – um verdadeiro virtuoso do cinema.
Li Pingqian é um especialista em tragicomédias, conseguindo educar e simultaneamente entreter.
The Way of the Dragon (1972)
O único filme escrito, produzido e realizado por Bruce Lee foi o primeiro de uma série em que ele se elencou como Tan Lung, um fora-da-cidade com braço de ferro, aqui contratado pelo proprietário chinês de um restaurante em Roma para resolver os seus sarilhos com o sindicato local. O filme tem a aspereza que se poderia esperar de um primeiro esforço de realização e também uma inclinação talvez inesperada para a comédia. Lee joga muito bem com a sua personagem de menino do campo sem armas, confrontando os monstros tecnologicamente poderosos do Ocidente e ganhando, qual David e Golias.
The Way of the Dragon é imprescindível para qualquer fã de Bruce Lee, uma vez que, infelizmente, deixou-nos com tão poucas obras, numa morte precoce em 1973. Depois de The Way of the Dragon, Lee seguiu com o seu último trabalho finalizado, Enter the Dragon, em 1973, que, em última análise, pode ser considerado como o seu melhor filme.
Os viciados em ação apreciarão os confrontos com Chuck Norris, Robert Wall e Wang Ing Sik, todos excelentes profissionais.
The Private Eyes (1976)
À medida que a sua popularidade crescia desde os primeiros dias da transmissão televisiva, a icónica equipa dos Irmãos Hui deixou um legado de comédias vernaculares que acertaram em cheio no coração do público da classe operária. Facilmente um dos melhores trabalhos do realizador e roteirista Michael Hui, The Private Eyes impressiona logo com a sua sequência de créditos de abertura, mostrando apenas os pés das personagens – em que um detetive privado segue o seu alvo usando um par de sapatos miseravelmente quebrados, apenas para ter uma das solas arrancada acidentalmente, antes de pisar na tigela de um mendigo e numa beata mal apagada com o pé exposto.
Aclamado como um dos filmes mais engraçados – pelos padrões de Hong Kong – dos anos 70, que emerge como resposta a uma indústria no limbo (embora temporariamente) depois do adeus a Bruce Lee. Hui, ingénua e alegremente agarra o centro do palco como Joseph Wong Yeuk-Sze, um cauteloso, vaidoso e totalmente inepto olho-privado, que fica sempre mais atento ao seu status social e saldo bancário do que propriamente investigar as andanças de filantropos enamorados, impostores, de um bombista enlouquecido e uns quantos ladrõezecos previsíveis.
A Better Tomorrow (1986)
Depois de uma década de altos e baixos como “realizador de aluguer” nos dias finais dos Irmãos Shaw, trabalhando alternadamente nos géneros de comédia tosca e wuxia, John Woo teve finalmente sucesso em 1986, quando se juntou a Tsui Hark e ao estúdio Cinema City para refazer o drama de 1967 de Patrick Lung Kong. Um dos filmes mais influentes dos últimos 30 anos, A Better Tomorrow estabeleceu o modelo formal e temático para uma nova era de filmes policiais: desde as obras-primas de Woo, The Killer e Hard-Boiled, até às trilogias fílmicas de Johnnie To, passando pelos copycat internacionais.
Em vez dos seus mais estilisticamente realizados The Killer ou Hard Boiled, John Woo capturou a imaginação de uma geração e traçou a história da cinefilia em Hong Kong com A Better Tomorrow. Com um título chinês que se traduz como “A verdadeira Natureza dos Heróis’, o filme heróico de Woo combinou realmente o melhor de vários mundos cinematográficos: é um remake relativamente fiel de The Story of a Discharged Prisoner, sendo ainda mais temperado pelos princípios de fraternidade e de códigos honrosos decorrentes das artes marciais de outrora – especialmente aqueles desenhados pelo seu mentor Chang Cheh, para quem Woo tinha trabalhado anteriormente como assistente de realização.
Colocando deliciosamente os irmãos-em-ecrã Ti Lung e Leslie Cheung, um contra o outro, como inimigos mortais, em lados opostos da lei, o clássico de ação também é exponencialmente reforçado pelo retrato carismático de Mark (Yun-Fat Chow), um criminoso que queima a nossa consciência: quem poderia esquecer a visão dele a acender um cigarro com uma nota em fogo? A sua arrogância é excedida apenas pela sua lealdade e heroísmo; nas nossas mentes, Mark somos todos nós.
Farewell, My Concubine (1993)
Sendo esta uma escolha pessoal, é impossível mencionar cinema de Hong Kong sem falar da sua base artística: a ópera chinesa.
Farewell My Concubine, de Chen Keige, é duas obras simultâneas: um épico histórico que abrange uma metade da história chinesa moderna e um melodrama sobre a vida nos bastidores da famosa Ópera de Pequim. A ideia de ver a China moderna através dos olhos de duas estrelas da ópera não pareceria, a princípio, lógica: como poderiam as dores do nascimento de uma nação em desenvolvimento ter em comum com as dores da morte à mercê de uma de arte antiga e ritualística? No entanto, o filme flui com tanta urgência que todas as suas conexões parecem lógicas. É filmado com tal esplendor visual que possíveis objeções sequer são ignoradas.
A obra-prima de Chen usa um triângulo amoroso incomum como lupa para observar mais de 50 anos da História tumultuosa da China, começando em meados dos anos 20. Durante a era dos senhores da guerra, e progredindo através da Segunda Guerra Mundial, a vitória comunista sobre Chiang Kai-shek e a Revolução Cultural, a história de Chen é contada através do foco íntimo de duas estrelas da Ópera de Pequim. Eles encontram-se enquanto crianças numa academia de ópera. Cheng Dieyi, com as suas características femininas, é treinado para interpretar a Concubina que morre pelo seu Rei na tradicional ópera “Farewell My Concubine”. Duan Xiaolou interpreta o Rei. Para o esteta fanático Dieyi (o incrível Leslie Cheung), a vida e a arte, o masculino e o feminino, mesclam-se perigosamente: no amor pelo seu amigo, alheio à política, ele vive apenas para a Ópera e fica devastado quando Xiaolou (Zhang Fengyi) casa-se com uma verdadeira concubina, a linda e oportunista Juxian (Gong Li).
Não tem que se ser um conhecedor do panorama sociopolítico da China para entender por que razão Farewell, My Concubine pôs as autoridades de Pequim às aranhas. Embora os males que descreve não seriam propriamente negados pelo atual regime comunista, o filme não prega truísmos, antes celebra os direitos do indivíduo e a importância do conceito de idiossincrasia. O seu tratamento do homossexual Dieyi é simpático ao ponto de ser profundamente romântico. Farewell My Concubine examina as atividades dos Red Guards (um movimento paramilitar social liderado pela classe estudantil), com tal fúria implacável que a crítica se estende a todo o core do sistema, antes e depois da Revolução Cultural.
Happy Together (1997)
O cinema de Wong Kar-Wai sempre tende para o romântico, tanto em termos das suas histórias como dos visuais. Chungking Express e Fallen Angels são sobre pessoas que se apaixonam e que se movem lenta e inexoravelmente de uns para os outros. Se acabam juntos ou não no final é, em algum sentido, menos importante do que o processo em si. Isso também é verídico para o seu estilo, que replica a experiência sensorial da vida moderna, através da sua exuberância visual e, particularmente nos seus filmes anteriores, através do seu “cinematismo” e ecletismo. Nos seus filmes, as próprias imagens são tão importantes – se não mais – do que os eventos que estão a ser retratados, uma vez que são a chave para atravessar a atmosfera e textura do seu mundo – que é o do amor e dos sentidos.
O que é interessante em Happy Together, o filme de Wai sobre um casal gay (interpretado por Leslie Cheung e Tony Leung) que viaja pela Argentina, é o quão pouco romântico ele é. Um par de amantes cantoneses encalhados na Argentina é uma ideia incomum de poesia cinematográfica, mas Wong Kar-Wai, que foi nomeado para melhor realizador em Cannes, conseguiu o impossível com este filme lírico sobre a separação. O seu olho para o simbolismo melancólico – destacando Buenos Aires como a antípoda geográfica de Hong Kong – é fora deste mundo. Uma peça icónica do cinema queer.
In the Mood for Love (2000)
In the Mood for Love, de Wong Kar-Wai é uma evocação arrebatadora de uma relação romântica não-consumada, perspetivada em camadas emocionais e culturais, uma espécie de capeamento já explorado em Happy Together.
O seu nome é Mr. Chow (Tony Leung Chiu-wai). O dela é Su Li-Zhen, ou então, Mrs. Chan (Maggie Cheung Man-Yuk). Na Hong Kong lotada de 1962, eles arrendam quartos em apartamentos próximos um do outro. Ele é repórter de redação, ela é assistente executiva, mas já não há espaço na cidade saturada e ainda menos espaço para segredos.
Encharcado em cores sumptuosas e com uma trilha sonora hipnótica que oscila de Nat King Cole para melodias latinas, o filme é habilmente montado por William Chang e imaculadamente fotografado por Christopher Doyle e Mark Lee Ping-bin, dois dos melhores cineastas do cinema mundial. Sob esta fascinante paleta visual está um romance reprimido que encontra o seu desfecho adequado por entre as ruínas de Angkor Wat – um toque sublime da narrativa que torna In the Mood for Love tão perto da perfeição.
Mr. Chow e Mrs. Chan estão “in the mood for love”, mas pouco mais do que isso. Tudo o que podem partilhar são olhares furtivos, palavras sem peso e uma garantia concreta de que a sua história é efémera.
Dumplings (2004)
Dumplings começou como uma curta-metragem de 30 minutos, que o realizador de Public Toilet, Fruit Chan, contribuiu, ao lado de Miike Takeshi e Park Chan-wook, para o filme-compêndio Sam gang 2.
Qing, uma ex-atriz de telenovelas decide comer uns “dumplings” especiais, feitos por uma mulher da China Continental, na sua busca para obter a juventude eterna. A imigrante no continente Mei é uma ex-cantora tornada médica, cujos dumplings patenteados fornecem uma tábua de salvação para Qing, cujo casamento com o empresário Mr. Li está em plena estagnação sexual. Agora, o próprio Mr. Li, que come ovos que contêm fetos de galinhas, é igualmente obcecado em manter o seu fascínio sexual. Isso leva-o a procurar também os serviços de Mei, com resultados surpreendentes.
A cinematografia é requintada (e muito do visual elegante e sofisticado resultante do filme), podendo ser atribuída a Christopher Doyle, cujo trabalho inclui obras visualmente impressionantes como 2046, Infernal Affairs, The Quiet American e o já mencionado In the Mood for Love. Os dumplings podem ser de mau gosto, mas são servidos com delicadeza e com muito do seu ‘horror’ a escorrer da credibilidade da trama um pouco básica.
Encham o estômago antes de verem o filme.
Fagara (2019)
Fagara marca o surpreendente e assegurado regresso à realização da menina-prodígio Heiward Mak, que teve a sua promissora estreia aos 23 anos, com o drama adolescente High Noon (2008). Desde aí, ela caiu um pouco fora do radar, desde que fez alguns filmes comerciais mal recebidos e aguentou batalhas com a depressão.
Em Fagara, uma mulher de Hong Kong redescobre o tesouro dos laços de família após a morte do seu pai, num drama requintado e silenciosamente pungente. Produzido por Ann Hui On-wah e adaptado de um romance de 2010 pela autora popular Amy Cheung Siu-han, Fagara apresenta o melhor papel em anos para a superestrela do pop cantonês Sammi Cheng.
Independentemente de quaisquer tons políticos, Fagara tem no seu coração um drama familiar comovente. Enquanto as personagens de Cherry e Branch caem perdidas no desenvolvimento da narrativa, Acacia cresce a partir do ressentimento para com o seu pai, para desejar que ela tenha passado mais tempo com ele, enquanto este ainda estava vivo. Talvez a história e as personagens teriam recebido um tratamento mais profundo, na forma de uma série de televisão do que propriamente um filme de duas horas, mas Mak ainda oferece drama mais do que suficiente para manter o público envolvido e para fluir lágrimas.
Estes são 10 clássicos do cinema de Hong Kong que qualquer amante de cinema deve ter na sua lista. Recomendam alguma outra obra para este “desconfinamento cinéfilo”?
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