Aqueles que seguem há alguns anos com atenção o cinema sul-coreano, sabem que o país é berço de produções de alta qualidade há muito tempo, chegando com “Parasite” a um tardio reconhecimento da sua contribuição para a sétima arte. Muitos consideram o período “New Wave” uma faceta da propagação internacional da cultura pop sul-coreana chamada “Hallyu”, que cobre o final dos anos 90, como o apogeu da indústria sul-coreana. No entanto, após a democratização da Coreia do Sul, no final dos anos 1980, o cinema não se encontrava mais restrito pela censura, proporcionando uma espécie de uma segunda “New Wave” comparativamente menor em relação à década seguinte.
Aqui ficam 10 representantes do cinema sul-coreano.
Uma Quarentena Cinéfila – Clássicos do Cinema Coreano
Arirang (1926)
O primeiro filme mudo coreano, “Arirang“, pintou as vidas dos coreanos que tinham perdido o seu país. Foi também o primeiro filme coreano considerado nacionalista e crítico da ocupação japonesa. No entanto, devido à censura severa, o conteúdo mostrado fora relativamente não-político.
O jovem protagonista, Choi Yongjin, foi preso e torturado pelo “crime” de se ter juntado a movimentos independentistas. Mais tarde, foi libertado para voltar à sua cidade natal, com a desculpa de ter tido um transtorno mental. O enredo gira em torno da irmã do protagonista, do seu amigo e do assassinato de um colaborador japonês. Pioneiro do cinema coreano, Na Un-gyu foi um homem de muitos ofícios: realizou, escreveu o roteiro e também teve o papel principal neste filme.
Infelizmente, como a maioria dos filmes produzidos na época, todas as bobinas originais perderam-se e “Arirang” tornara-se uma película do passado. Acredita-se que as nove bobinas do filme foram perdidas durante a Guerra da Coreia. No entanto, houve rumores de que uma cópia do filme estaria na posse de um colecionador japonês, Abe Yoshishige, que morreu em fevereiro de 2005. A sua coleção de cerca de 50.000 filmes reverteu para o governo japonês após a sua morte, mas até hoje não há notícias se “Arirang” estava na coleção.
Hurrah! For Freedom (1946)
“Hurrah! For Freedom” é um filme coreano de 1946 realizado e escrito por Choi In-kyu. Foi o primeiro filme feito no país depois de se alcançar a independência do Japão. Durante a ocupação do país, Choi só foi autorizado a fazer filmes amigáveis ao Japão, mas o enredo de “Hurrah! For Freedom” é distintamente diferente, contando as lutas dos soldados da resistência coreana contra o exército japonês, durante a ocupação nipónica na Coreia, em 1945.
“Hurrah! For Freedom”, apesar da sua mensagem política bastante intensa contra os japoneses e o regime imperialista em geral, mostra a complexidade das decisões a nível artístico e pessoal que os cidadãos tiveram de tomar durante o domínio colonial.
The Housemaid (1960)
“The Housemaid”, de Kim Ki-young, foi realizado dentro da chamada segunda Era de Ouro do cinema coreano, entre 1956 e 1969 (a primeira havia sido entre 1926 e 1933), um período que sucedeu a Guerra da Coreia, que por sua vez havia sucedido o longo domínio japonês de quase toda a primeira metade do século (influenciando o cinema do país).
Conta a história de um professor de música e da sua mulher, com dois filhos, que acabaram de se mudar para uma grande casa e contratam uma empregada para ajudar no dia-a-dia doméstico. A rapariga é emocionalmente instável, acabando por seduzir o dono da casa e pôr em perigo o equilíbrio e a segurança da família.
Começando com um olhar realista da Coreia do Sul nos anos 60 e centrado numa família em ascensão, a trama desenvolve-se para um conto histérico e expressionista, de pecado corrosivo e deceção. Considerado por muitos como o filme fundador do moderno cinema sul-coreano, “The Housemaid” inspirou “Parasite”, segundo o próprio Bong Joon-ho.
March of Fools (1975)
Um clássico muito amado do cinema coreano, “The March of Fools”, de 1975, começa como uma simples comédia desbocada, enquanto dois estudantes relaxados ficam bêbados e tentam encontrar raparigas com quem passar a noite, com vários graus de sucesso. Lentamente, o tom muda para a melancolia, com os dois homens a considerar o seu futuro, numa sociedade repressiva, de onde se sentem deslocados.
Embora tenha sido censurado pela sua representação da vida sob ditadura militar, “The March of Fools” continua a ser uma história única e emocionante sobre a juventude em crise, enquanto as suas modas, a sua música e fotos das ruas de Seul fazem deste filme uma cápsula do tempo inestimável sobre cultura juvenil coreana dos anos 70.
Este filme teve uma sequela muito menos famosa (e, portanto, mais difícil de encontrar), em 1979. No entanto, foi acabada poucos meses antes de o realizador, Ha Gil-Jong, morrer devido a um derrame, com apenas 38 anos, e depois de ter feito apenas sete longas-metragens.
Seopyeonje (1993)
Perguntem a qualquer músico e eles vos dirão que a paixão é essencial para a produção da sua arte e que, sem ela, a música seria pouco mais do que uma coleção vazia de notas e sons.
Este melodrama comovente diz respeito à relação entre duas crianças e do seu ‘pai’/mestre adotivo, um viajante – necessariamente pobre – músico de Pansori.
Pansori, um estilo de música tradicional que canta sobre lamentos de amor doloroso ou então toca canções festivas, realizada com o acompanhamento de um tambor solitário, dá ao filme o seu tom melancólico. Passado no início dos anos 50, o filme segue as três personagens em viagens através do amor, fotografadas por paisagens da natureza do país, em todas as estações: como eles lutam pelo seu sonho, enquanto a sua música é afogada pelas modas emergentes da sonoridade ocidental. É um filme de olhares, ritmos, intimidades e sentimentos, expresso em termos puramente cinematográficos e é quase impossível não ser movido por este.
Oldboy (2003)
Quase que em unanimidade, “Oldboy” é considerado a obra-prima do realizador Park Chan-wook, o que não seria uma afirmação nada injusta: o diretor aperfeiçoou-se no requinte visual e na narrativa, na elaboração de cenas não recomendadas para os fracos de estômago, mas que não soam gratuitas. “Oldboy” é um filme ainda mais profundo sobre o tema da vingança do que “Sympathy for Mr. Vengeance” (2000) ou então “Lady Vengeance” (2005), além de ser um dos thrillers mais inteligentes dos últimos anos.
“Oldboy” conta a história de Oh Dae-Su que, sem motivo aparente, se vê trancado numa prisão secreta. Passa 15 anos dentro de um quarto sem saber o motivo de toda esta encrenca. Quando sai, procura a sua vingança, porém descobre pelo próprio responsável da sua prisão – Lee Woo-Jin – que possui apenas cinco dias para concretizar o seu acerto de contas.
“Oldboy” tem um ritmo ágil, prende logo a atenção do espectador desde os primeiros minutos de filme. Mesmo durante o segundo ato do filme, quando o ritmo frenético da ação dá um abrandamento para exibir os flashbacks do passado de Oh-Dae-su, a curiosidade para finalmente descobrir tudo é tanta que não dá nem para piscar. Não é à toa que o filme foi bastante elogiado por Quentin Tarantino no Festival de Cannes em 2004.
A Tale of Two Sisters (2003)
“A Tale of Two Sisters” é o filme da consagração do cineasta da nova vaga de realizadores coreanos, Kim Ji-Woon.
A trama começa com Su-mi a contar “o que aconteceu naquele dia” a um psiquiatra. A sua história começa com a sua chegada e da sua irmã Su-Yoen à isolada mansão do pai. A relação entre Su-mi e o seu pai é conturbada – ele tenta aproximar-se da filha, mas a mesma guarda rancor devido ao misterioso passado da família, revelado somente nos minutos finais da história. Su-mi protege sempre a irmã da jovem e desequilibrada madrasta. Com a chegada das meninas à casa, coisas estranhas começam a acontecer – aparições de uma misteriosa entidade durante a noite começam a aterrorizar não só as irmãs, mas também a madrasta. O pai assiste com tristeza a relação entre Su-Mi e a madrasta, tenta ajudar a filha mas parece não entender os motivos que estão a levar Su-mi à loucura.
O realizador leva o espectador a conhecer primeiro o presente insano das personagens e depois o triste e sombrio passado que explica assim o futuro trágico de cada um. Um final em aberto que questiona o sobrenatural e a insanidade de Su-Mi – os eventos passados na casa seriam reais? Ou apenas um reflexo da loucura da protagonista?
Memories of Murder (2003)
O ano de 2003 foi um ano marcante no cinema sul-coreano. Este ano foi também marcante na carreira de Bong Joon-ho, que recentemente levou para casa 4 Óscares com o seu último filme “Parasite”. “Memories of Murder“, sobre o primeiro serial killer da Coreia do Sul, foi o filme que lançou o cineasta.
O filme acompanha os esforços diários de dois detetives que tentam, a todo o custo, resolver o caso mais complexo das suas vidas, quando várias mulheres são encontradas mortas e violadas em partes diferentes de uma pequena província.
Bong faz a conexão crítica entre as personagens e a sociedade repressiva em que vivem – uma em que a violência é comum e onde a própria natureza da realidade está em constante disputa. No final, as perguntas feitas a testemunhas e suspeitos provam-se mais existenciais do que específicas – como se, à medida que os agentes se aproximam cada vez mais dos factos, tudo se torna menos certo. No momento em que a mágica e misteriosa cena final rola ficamos com este pensamento sobre a triste e louca verdade de um mundo autoritário: na verdade, ninguém é inocente e todos são vítimas.
Spoiler alert: o verdadeiro assassino só foi descoberto em 2019, quase 40 anos após o primeiro crime.
The Handmaiden (2016)
Realizador consagrado por sucessos como “Oldboy” (2003) e “Lady Vengeance” (2005), Park Chan-Wook filma histórias poderosas, com representações gráficas da violência e uma requintada direção artística. Ao lado de cineastas seus contemporâneos, como Kim-ki Duk (“Pietá”, 2012) e Bong Joon-ho (“The Host”, 2006), tem sido responsável pela popularização da cultura sul-coreana no cinema, em tempos em que as produções orientais vêm agradando o público e a crítica ao redor do mundo.
Escrito pelo realizador ao lado de Jeong Seo-kyeong, a partir do livro de Sarah Waters, esta obra gira em torno do triângulo amoroso formado pela jovem criada Sook-hee, pelo trapaceiro “Conde” Fujiwara e pela rica Lady Hideko. Os dois primeiros unem-se para aplicar um golpe nesta última – um plano que se revela fracasso quando as duas mulheres se encontram.
“The Handmaiden” é um filme que exige fôlego e investimento dos espectadores, mas sabe como recompensá-los com as suas belas passagens, os deliciosos alívios cómicos e a história poderosa e envolvente. Tendo a sagacidade de adaptar um romance ocidental ao universo coreano, Park mescla os particularismos da sua cultura com uma história potencialmente cativante para todos os públicos.
Burning (2018)
“Burning”, de Chang-Dong, é um enigmático thriller psicológico com um ritmo e características peculiares, que se constitui como um excecional exercício de observação humana, testando os limites da nossa própria perceção.
Lee Jong-su (Ah-In Yoo) é um jovem que caminha à margem do mundo, realizando as tarefas do dia-a-dia necessárias ao sustento próprio, até ser encontrado por Shin Hae-Mi (Jeon Jong-Seo), uma amiga de infância, que vê nele o candidato ideal para cuidar do seu gato enquanto viaja para África. Ao voltar dessa viagem, Hae-Mi introduz Bem (Steven Yeun) a Jong-Su, um jovem rico, afável, calmíssimo, mas perturbador, que flameja o relacionamento entre os dois amigos.
Numa bela masterclass sobre o jogo perigoso do ritmo cinematográfico, Chang-Dong diz-nos que o ódio flameja sempre quando cambaleamos pela fronteira do medo e da irracionalidade. “Burning” é essencialmente um estudo de personagens e das suas intrincadas emoções, onde o mundo que estas habitam torna-se num incendiável mistério.
Podem ler a análise deste filme, AQUI.
Estes são 10 clássicos do cinema sul-coreano que qualquer amante de cinema deve ter na sua lista. Recomendam alguma outra obra para uma quarentena cinéfila?
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