Quando era criança, tive a sorte de poder ter tido um contacto abundante com a natureza. Por mais que, na altura, o fizesse contrariado, agora percebo que foi um privilégio. Numa ilha perto de minha casa, havia um zoológico na qual ia dar pão aos cisnes com meu pai. Eram dos momentos mais preciosos da minha infância. Para lá ir, tinha que atravessar uma ponte de terra artificial. Uma na qual nada se via exceto o meu ponto de partida atrás e o meu destino à frente. Para além disso, era capaz de ver o aeroporto local à esquerda com o ocasional avião a descolar ou aterrar. Na altura, era apenas um percurso. Porém, agora é tão mais que isso. Agora, é um dos grandes centros do mundo, um farol de LEDs, espetáculo e chips. Pois vivia na Taipa, o zoológico era em Coloane e atravessava o aterro do Cotai.
O meu crescimento foi acompanhado intimamente pelo desenvolvimento meteórico da indústria do jogo em Macau. Houve uma altura da minha vida que parecia que abria um casino novo todos os semestres. Eram de tal forma rápidos a construí-los que podia ir a Portugal de férias e voltar a tempo de abrir um novo. Sendo assim, sempre tive uma grande curiosidade no jogo pois era omnipresente na minha vida. A obsessão em atirar o dinheiro ao acaso na promessa de um retorno estrondoso era em igual medida irracional como fascinante. Além de que, como representação de uma realidade e um cenário que me é familiar, tive sempre enorme interesse por media que lidasse ou com o jogo, ou tivesse cenário em capitais do jogo.
Eu desisti de Kakegurui:
https://www.youtube.com/watch?v=Ce-yqZcRSHc
Nesse espírito, a minha curiosidade foi aliciada pela adaptação anime do manga Kakegurui: Compulsive Gambler. Dado o precedente de anime de jogo, destacando em particular o duelo entre Jotaro e D’Arby the Elder de JoJo’s Bizarre Adventure: Stardust Crusaders e Kaiji: Ultimate Survivor, estava numa posição para querer mais deste sub-género.
Kakegurui e Kakegurui XX são ambos anime de 12 episódios cada, produzidos pelo estúdio MAPPA. São escritos e realizados por Yuishiro Hayashi, com auxílio em realização de Kiyoshi Matsuda em Kakegurui XX. Estão ambos disponíveis para streaming legal na NETFLIX.
Eu desisti de Kakegurui – História e Falhas
A história tem como cenário a prestigiosa Academia Privada Hyakkaou. Uma conceituada instituição de ensino que alberga a progenia das mais afluentes famílias do Japão. Sendo um campo da elite, governa-se através de uma estrita hierarquia interna a qual nenhum aluno escapa. Porém, tal hierarquia não é determinada por nada de tão mundano como notas. A sua cadeia de poder é determinada pela aptidão e habilidade de jogo dos estudantes, de tal forma que quaisquer obrigações e preocupações académicas são secundárias à formação de jogadores prodígio.
Sendo assim, os estudantes mais influentes, poderosos e populares destacam-se pela sua astúcia e implacabilidade no jogo. Por outro lado, o “proletariado” caracteriza-se por dívidas monumentais aos primeiros. Tal estatuto torna estes estudantes em escravos, servos apenas dignos de serem considerados animais. Se não forem capazes de saldar essas dívidas antes de completarem o ensino, o seu estatuto de servidão torna-se vitalício.
Este mundo é-nos introduzido a partir do ponto de vista do jovem Ryota Suzui. Apesar de ser bom aluno, a sua falta de perícia no jogo tornou-o servo da impiedosa Mary Saotome. Porém, conhece alguém que não só o libertará, como também transtornará toda a academia. Eis que aparece a estudante transferida de nome Yumeko Jabami. Uma jovem aparentemente simpática e inocente, é vista como presa fácil pela Mary e daí desafiada para jogar. Porém, Mary rapidamente percebe que cometeu um erro crasso.
Apesar da sua aparência, Yumeko é, na realidade, uma jogadora obcecada e inimaginavelmente louca. Longe de se preocupar pelo retorno de uma qualquer partida, persegue e deseja furiosamente a pura excitação da aposta. Esta sua natureza maníaca, em conjunção com uma capacidade quase sobrenatural de perceber qualquer partida e qualquer batota, torna-a num perigo anárquico para a hierarquia da academia.
Tanto o Ryota como a Mary, derrotada, tornam-se amigos dela, e servem de audiência para a ascensão estrondosa da Yumeko na cadeia de poder.
Em igual medida imbatível e assustadora, ela ganha a atenção da associação de estudantes da academia. Associação esta que reúne os seus melhores e mais poderosos jogadores. Cada um deseja confronta-la por razões várias, quer seja por prazer ou dever. Porém, é a presidente que mais se destaca pelo seu interesse em Yumeko. Kirari Momobami, líder do seu clã, é uma autocrata que vê a academia como sua, um tanque de peixes a comerem-se uns aos outros para seu entretenimento. Porém, sendo ela própria uma jogadora irredutível e intocável, anseia o desafio e a turbulência que Yumeko inaugura. Duas mulheres atadas pelo fio rubro do destino de forma a realizarem e saciarem os seus imponentes desejos pela emoção e perigo que apenas o jogo oferece.
O apelo deste programa é tanto simples como directo. Uma sequência ininterrupta de encontros à D’Arby com um jogo diferente a cada novo oponente. A adição da Yumeko e a sua paixão anárquica pelo jogo serve de um gosto catártico à medida que ele destrona e destrói uma hierarquia ditatorial injusta. Além do mais, a premissa e o cenário serve como uma fácil alegoria para as relações de poder economicamente informadas que caracterizam a sociedade contemporânea. Eu próprio, admito, vi-me cativado pela dinâmica entre a a Yumeko e a Kirari. A sua loucura maniqueísta servia de uma exemplificação do terror claro e existencial que serve de derradeira consequência de neoliberalismo.
Naturalmente que, dado o formato deste artigo, me arrependi. Contudo, neste caso, demorou mais que o normal. Quanto mais, tratou-se de uma erosão gradual que culminou numa catástrofe fenomenal. Começou, desde já, pela caracterização de praticamente todas as personagens femininas no programa. A própria Yumeko serve de barómetro para esta parte particularmente infâme da franquia.
Aquando a descrição dada acima, como é que uma pessoa imaginaria que se manifesta esta obsessão pelo jogo? Dado os adjetivos utilizados, no mínimo, apontaria para uma pessoa hiperativa e maníaca quando em tais situações. Na perspectiva da obra, quando uma mulher manifesta tal coisa, traduz-se numa ânsia explicitamente sexual ou numa violenta explosão orgásmica. Não seria hipérbole dizer que um supercut destas cenas poderiam entrar confortavelmente no domínio de softcore porn.
Esta vertente do programa, inequivocamente veiculada e destacada, torna-se numa característica inescapável. É de tal forma frequente que genuinamente pergunto se o autor do manga não estaria mais interessado em criar um hentai. Quanto mais, se calhar a história poderia utilizar um jogo de aposta e risco mais adequado às suas capacidades, como o strip poker ou algo do género. O que me leva à outra grande crítica que tenho desta franquia em geral.
Apesar da centralidade do jogo, a maneira que lida com o mesmo é lastimável. As partidas são quase universalmente caracterizadas por jogos viciados ou batotas que tornam os resultados completamente arbitrários. Além disso, os jogos escolhidos são atrozes, sendo muitas vezes desnecessariamente complicados, provavelmente de forma a ocultar a falta de perícia de escrita no lidar com o assunto em mãos, ou então jogos de 50-50.
Por mais que talvez não perceba a infindável imaginação humana de tornar qualquer jogo num jogo de apostas, não é necessário ser um profissional do Venetian para perceber que o jogo aqui é tanto absurdo como mal escrito. Porém, não foi aqui que ocorreu o evento que me encheu de vontade de escrever este artigo. A premissa da segunda temporada, que fica a meio de uma história maior, consiste numa espécie de tournament arc. A Kirari, eternamente aborrecida de um mundo que lhe é indigno, decide inaugurar uma eleição para formar uma nova associação de estudantes. Isto assinala a chegada de um batalhão de familiares dela, todos jogadores naturalmente exímios, que desejam a sua posição de presidente. Isto deve-se ao facto que, graças à ambição implacável de Kirari, ser presidente da AE de Hyakkaou é uma posição simbólica que atribui poder sobre a família mais poderosa do Japão, os Momobami.
Apesar dos vários apelidos, todos este novos alunos são distinguidos pelo sufixo Bami. Este é um nome que os distingue como linhagens descendentes dos Momobami. Todos são os herdeiros destas diferentes famílias que desejam o poder que Kirari tão magistralmente centralizou na sua pessoa. Entre estes, destaca-se Terano Totobami, cuja conduta e atitude indiferente de Kirari ela desdenha.
De interesse para o meu flagelo, temos o aparentemente inócuo mordomo que serve estes novos alunos. Caracterizado, inicialmente, pela sua devoção, descobre-se que tem um nojo enorme pela procura cega e sem remorsos do jogo. Eventualmente, percebemos que se trata de Rei Batsubami, filha oculta dos Momobami.
O seu disfarce serviu de veículo para realizar uma vingança vitalícia não só contra a sua condição de escrava, que sofreu desde que a sua família perdeu catastroficamente em jogo quando ainda era criança, como também pela injustiça e sofrimento cometida contra a única pessoa que se dignou a reconhecê-la como gente, outra vítima dos Momobami.
Esta criação original do anime, é ainda reforçada a sua posição como campeã dos escravos e desprivilegiados ao lhe terem sido dados votos, que normalmente são ganhos através de apostas, por escolha dos que mais sofrem. Um poderoso ato simbólico de democracia, que rejeita a natureza predatória da eleição que está a ocorrer. A resolução da história dela é de tal forma revoltante que singularmente destrói este anime.
É feito claro que Rei anseia libertar-se da suas correntes de servidão e da maldição do seu nome de família. Como é que atingiríamos isso? Antes que qualquer pessoa com dois dedos de testa demonstre os seus conhecimentos de uma aula introdutória de ciência política, vou descrever a solução imbecil que o anime arranjou.
Basicamente, ela é capaz de se libertar, não através da rejeição do legado da sua família, mas sim ao abraçá-lo, reconhecendo a majestade e prazer do jogo. O seu desafio e aposta final com Yumeko é de tal forma impressionante aos olhos de Kirari, que esta a liberta do seu estatuto de escrava e serva ,dando-lhe um novo nome na família Momobami. A solução para todos os seus problemas, essencialmente, jazia numa radical transformação intra-pessoal e conformação a um sistema injusto, em vez de algo mais sensível como uma guilhotina.
Trata-se de uma resolução narrativa de tal forma tone deaf e irresponsável que desnuda a superficialidade e imbecilidade de todo o programa.
Para piorar ainda mais as coisas, esta personagem, que é apresentada como andrógena e irredutível quando declarando o seu desafio à injustiça, é inequivocamente feminina e gentil quando atinge a sua suposta resolução e final feliz. Toda a semiótica problemática aqui em exibição, põe-me a cabeça a girar. É uma narrativa de tal forma anti-reformista, anti-revolucionária, pro-aristocrática, conservadora e sexista que sozinha anula qualquer tipo de mérito que o anime possa ter.
Além de que, qualquer concessão do papel anárquico da Yumeko desvanece com a revelação que ela própria é parte dos Momobami. A paixão e a perícia pelo jogo, neste cenário, consiste numa virtude aristocrática, sendo os maiores jogadores de uma fonte biológica comum.
Eu desisti de Kakegurui – Conclusão
Ver este anime foi uma experiência em igual forma enfurecedor como desgastante. Ainda para mais que, no geral, apenas posso utilizar o adjetivo medíocre para o caracterizar. Foi sobretudo esta inclusão anime-only que me quebrou.
Mesmo assim, em circunstância alguma diria que este é uma obra que valha a pena ver. Nem sequer ler, dado que não deixa de ter os mesmos problemas sistemáticos. Isto é a definição daquilo que gosto de chamar figure fodder. Uma franquia ou obra cujo único propósito é criar merchandise para sacar de uns cobres no mercado otaku. Mas isso é mais que óbvio com a quantidade de jovens em mini-saias e peito quase a rebentar da camisa em êxtase sexual cada vez que se vira um par de cartas. Seria ingénuo da minha parte dizer que isto não ocorre até nos melhores dos programas. Porém, este é todo um caso à parte.
A verdade do assunto é que não vivemos em tempos na qual a causal “fetichização” da dinâmica de poder económica injusta possa ser vista como inconsequente. Não deixa de ser um ato de representação política com enorme peso, especialmente com as desvantagens económicas que afetam a população mais jovem contemporânea. Eu não consigo levar a sério um programa que me está a tentar apelar à luxúria através de psicopatas capitalistas. Ainda para mais quando me está a tentar vender tais personagens como protagonistas isentos de culpabilidade. Uma perda de tempo.
Para ver jogo bem-feito, temos as obras de Nobuyuki Fukumoto. Quanto a raparigas anime em situações sexuais, isso há ao pontapé e ainda com o benefício de ser mais explícito.
Agora que limpei o meu sistema disto, terei que ir ver o Drácula de Andy Warhol para me sentir melhor.
Artigos relacionados:
NETFLIX revela Chegada Ocidental de KakeguruiXX