Um dia tive uma experiência literária que me marcou para a vida. Deparei-me com um excerto de um livro escrito por Jonathan Littell, intitulado Les Bienveillantes. Traduzido para Os Benevolentes em português, trata-se da autobiografia fictícia de um oficial SS durante a Segunda Guerra Mundial. Maximilien Aue é-nos introduzido através de um exercício de matemática arrepiante. Aue calcula a taxa de mortalidade da Frente Este da Guerra na Europa, composta pelos óbitos declarados de alemães, judeus e soviéticos. Nos 3 anos, 10 meses, 16 dias, 20 horas e um minuto que assinalaram o período oficial de guerra na Frente Este, morria um alemão a cada 40.8 segundos, um judeu a cada 24 segundos e um soviético (inclusive judeus soviéticos) a cada 6.12 segundos.
Aglomerados, trata-se de um período de tempo na qual morria uma pessoa a cada 4.12 segundos. Para por as coisas em perspetiva, Aue nota que a Guerra do Vietname, em termos de fatalidade para os americanos, equivaleu apenas a 3 dias e 2 horas da dos judeus. Ele observa que tais contas são um bom exercício de meditação, concluindo com a expressão de Sófocles: “melhor era não ter nascido”. A natureza clínica e fria desta introdução ao livro, em colocar o leitor no horror incompreensível e enlouquecedor do Holocausto, serve como uma sóbria lembrança do futuro que agora nos espera. É um bom livro, recomendo a sua leitura, hoje mais que nunca.
Relembrar as pessoas da total bancarrota moral de fascistas costumava se um dado adquirido. Porém, o curso da história parece ter dado uma curva absurda, pois agora somos obrigados a dar ouvidos e validação pública a imbecis maliciosos que apenas visam a dor e sofrimento dos mais desprivilegiados. Daí que, abraço ferozmente qualquer obra que apareça e que, claramente e inequivocamente, mostra o que realmente significa ter fascistas em poder.
Produzido pela Sunrise, Mobile Suit Gundam: The Origin trata-se de uma série OVA de 4 episódios, baseada no manga do mesmo nome escrito e ilustrado por Yoshikazu Yasuhiko. A realização foi feita através de uma parceria entre Yasuhiko e Takashi Imanishi, com escrita de Katsuyuki Sumisawa. Está disponível uma versão em série, com o subtítulo Advent of the Red Comet, para streaming legal na Crunchyroll.
Mobile Suit Gundam: The Origin – História
A humanidade iniciou firmemente a sua vivência nos astros, celebrando através de um novo calendário, a Universal Century. Porém, a crescente privatização e poder dos mais ricos na Terra resultou numa dinâmica entre terrestres e colonos espaciais na qual estes últimos são tratados como cidadãos de segunda-classe. Face a isto, reúnem-se à volta de uma emergente figura política revolucionária, o filosofo Zeon Zum Deikun. Este, através da sua retórica de uma humanidade espacial livre, organiza uma entidade política espacial independente da Terra, capaz de dar voz aos colonos. Em resposta, a Federação Terrestre impõe sanções económicas e bloqueios militares. O ambiente político torna-se instável em Munzo, culminando com o assassinato de Deikun em pleno parlamento, quando se encontrava no ato de declarar independência da Terra.
O assassinato foi secretamente executado pelo seu amigo e conselheiro Degwin Sodo Zabi, o qual rapidamente fomenta movimentos políticos anti-Terra e purga qualquer oposição política. Desta forma, Zabi, toma controlo autocrático de Munzo. Inaugura o Principado de Zeon, formando governo com os seus apoiantes e vários filhos, e denotando a sua visão neo-aristocrática e nepotista de poder.
Em paralelo, temos a família ilícita de Deikun. Além da sua amante, Astraia Tor Deikun, temos a sua filha Artesia Som Deikun e o seu filho Casval Rem Deikun. Artesia dedicará a sua vida à ajuda e auxílio de outros, culminando num papel decisivo na vanguarda da Federação na One Year War. Por sua vez, Casval atingirá um destino tanto de formidável quanto de terrível. Trairá e matará implacavelmente de forma a cumprir a sua vingança sobre a família Zabi. Nasce, desta forma, a lenda violenta do Cometa Vermelho de Zeon.
Há sempre aquela obra que se destaca pelo tipo de profundidade de escrita, direção e concepção que realmente marca uma pessoa para a vida. Sendo assim, aqueles com uma propensão mais intelectualista na comunidade elevam Legend of the Galactic Heroes como o mais alto exponente do meio. Aquando do total visionamento do objeto em análise, sinto que agora temos um irascível rival, senão até mesmo um triunfante sucessor. Uma obra cujo nível de excelência em qualquer uma das suas categorias por si só, faria de qualquer outro anime o destaque do seu ano de estreia. Estamos a falar de um artigo de alto cinema que, hábil e destemidamente, é mais capaz de confrontar a realidade política e social dos nossos tempos que qualquer outro esta década. A história deste anime não tem qualquer tipo de medo em criticar e denunciar movimentos políticos de extrema direita e fascismo.
A obra não esconde o facto de que são posições sustentadas em malícia e ganância, cujo único objetivo e realidade são a violência, a destruição e a morte. Além de postular o advento de fascismo como um reflexo de ódio institucionalizado, Gundam: The Origin faz questão de apontar o dedo àqueles que se identificam como seus cabecilhas, tornando claro as suas ambições egoístas e autocráticas. Como manipulam as massas e engendram conflito de forma a tornar a sua retórica mais fácil. Uma vigarice social que visa instaurar um controlo sobre poder, ainda mais apertado e inquestionável, pelos mais poderosos. A inseparável associação de iconografia aristocrática às altas patentes do Principado de Zeon, inteligentemente desnuda as verdadeiras aspirações de líderes fascistas. Neste aspeto, prévios antagonistas de anime esquecidos, adquirem aqui uma inescapável aura de terror pela sua proximidade com a contemporaneidade.
Toda a família Zabi oferece facetas diferentes da monstruosidade da extrema direita. Em particular, vemos a implacável ambição autocrática do patriarca Degwin na maneira como se instaura no poder, a hipocrisia ignorante de Dozle na maneira como ele se conduz em guerra, e a implacabilidade imperdoável de Kycillia que a leva a cometer fratricídio. Porém, nenhum destes chega aos pés de Ghiren. Apesar de significar nada no fã comum, este relembra aqui o que o torna um vilão tão assustador. O seu ar composto esconde por detrás uma inimaginável malevolência que invoca os piores criminosos de Nuremberga. Um homem de tal forma sedento por poder que está mais do que disposto e confortável em cometer sucessivos crimes de guerra, e contra a humanidade, de forma a perpetuar um conflito que tanto poder lhe dá. Alguém que, ao ouvir acerca de Hitler pelo seu pai, orgulhosamente se declarou ser discípulo seu discípulo.
Essa mesma loucura sanguinária está presente naquele que seria o protagonista desta história. Muitas vezes visto como uma espécie de anti-herói ou até mesmo um byronic hero, aqui Char Aznable é caracterizado como um homicida desumano, que utiliza o seu talento para a morte afim de cumprir a sua vingança. Vingança esta que o leva a abandonar a sua irmã, a matar o seu melhor amigo de forma a adquirir uma identidade falsa, e a engendrar a morte de um camarada devoto para que este não revelasse o seu segredo. Tudo isto serve de prelúdio para a sua infame traição a Garma Zabi que, apesar da amizade que este segundo tanto valoriza, Char apenas vê como primeiro dominó na sua teleologia. Mesmo a sua famosa relação com Lalah Sune adquire aqui uma conotação mais sinistra dado a natureza profundamente egoísta e dominadora que o favorece.
Esta aparentemente infindável loucura traduz-se na incompreensível selvageria da eventual One Year War. Uma guerra já inexoravelmente caracterizada pela sua brutalidade, atinge o auge da barbárie através do ato central da Operation British. Um plano que procura despejar um cilindro O’Neill na Terra, aniquilando milhares de milhões de pessoas e destruindo irrevogavelmente o ambiente. Através da perspetiva dos civis da colónia de Illish Island, vemos como a frota zeónica a “limpa” com armas químicas, de forma a torná-la numa bala. Invocando os mais sombrios e desesperantes momentos de Grave of the Fireflies e Barefoot Gen, um jovem moribundo rasteja em vão para um abrigo de civis, sem saber que é agora um túmulo para incontáveis idosos, mulheres e crianças. Pede, sem resposta, à sua amiga que lhe abra a porta, rouco pelos seus últimos suspiros desumanamente envenenados.
Gundam: The Origin, seguindo o precedente da sua franquia-mãe, é veementemente anti-guerra. Denuncia-a com toda a fibra do seu ser, optando por mostrar o seu custo, em particular, para não combatentes. Para as pessoas que de guerra nada querem e que mais sofrem pois não têm como se defender. Para os que não escolheram ter canos de espingarda a si apontados e, nas piores das circunstâncias, ser vítimas de armas de destruição maciça.
Nesta instância é também feita uma forte associação ideológica, na medida em se trata de um conflito instigado, perseguido e perpetuado por Zeon. A centralidade que este tem para a sustentação do poder das suas elites pós-republicanas, denota como guerra é inexorável a estados autocráticos e de extrema-direita. O anime não tem qualquer tipo de ilusões acerca da natureza política da guerra que retrata e como a crueldade calculada é o default de fascistas e por estes ansiado.
Mobile Suit Gundam: The Origin – Ambiente
A um nível de direção artística, Gundam: The Origin opta por um visual extremamente retro. Uma escolha estética deliberada que a situa não só no coletivo da Universal Century, como também nas obras encabeçadas por Yoshiyuki Tomino. Seria espectável, dado que o autor do manga na qual é baseado, Yoshizaku Yasuhiko, serviu como designer de personagens para o anime Mobile Suit Gundam de 1979. Dessa forma, vemos a principal manifestação das sensibilidades mais tradicionalistas estéticas do anime no desenho do elenco. Já anteriormente algo de semelhante foi feito com Mobile Suit Gundam Unicorn. Curiosamente, esta sensibilidade destaca a obra, dando-lhe um ar mais maduro e dignificado. Põe-se de parte da estética mais contemporânea de anime, não necessariamente como maneira de se manifestar superior, mas mais como recuperação do trauma pós-guerra do passado recente japonês e enquanto aspiração a uma harmonia estética para a maior história que foi contada por Tomino.
Apesar desta característica visual de velha guarda, a sua produção manifesta a mais alta excelência do presente. Todo e qualquer aspeto da sua animação, direção e composição é exímia. Cada segundo desta obra mostra como nada foi deixado ao acaso e a mais alta perícia e cuidado foram empregados para traduzir esta história em movimento. Mesmo algo de comummente contencioso, a utilização de CGI para os seus aspetos mais mecânicos, é aqui executado com a mais alta mestria presente na indústria. Chega mesmo ao patamar de escolha inspirada, pois ajuda a reforçar a temática da desumanidade de guerra. Neste aspeto, atinge o brilho do momento climático de Mobile Suit Gundam 0080: War in the Pocket. Destaco, também, a utilização de cor que, apesar de claramente tirada de outros tempos, aqui dá sublimemente vida ao cenário e personagens, de forma a contrastar com a violência do seu término.
Como última nota, gostaria de observar a forma como o anime utiliza a sua banda sonora. Uma composição orquestral adequada à magnitude da opera espacial a ser realizada, destaca-se na maneira como se cala nos momentos mais oportunos. Nas alturas em que ocorre um grande conflito, atrocidade ou combate, a música atinge um crescendo antes de ser abruptamente sufocada, de maneira a deixar a cacofonia apocalíptica da guerra tomar primeira plano. O zumbido agudo de mísseis, o vomitar grave de artilharia e os berros laboriosos de explosões servem como a única banda sonora adequada para a carnificina. Plataformas de guerra são como baleias mortíferas que agonizam com cada tiro e ferida, refletindo o sofrimento das suas tripulações. A destruição não é gratuita. Torna-se evidentemente claro que afundar uma destas máquinas trata-se de um ato de inevitável violência homicida, oque requer golpe atrás de golpe para cumprir o seu objetivo.
Mobile Suit Gundam: The Origin – Conclusão
Este anime, contando com a sua versão OVA e televisiva, demorou entre 2015 e 2019 para ser completado. Nesse tempo, a realidade que o seu primeiro episódio retrata começou a tomar raíz. Um programa cujo principal ímpeto temático consistia no perigo e a ascensão da extrema-direita, estreou um ano antes do retorno de retórica fascista ao mainstream político. Mais que isso, alertava para o tratar-se de um movimento deliberado e calculado na sua malícia, explorando e abusando os direitos e liberdades da sociedade democrática para a destruir e substituir por um governo nos moldes dos piores que alguma vez apareceram na história. Um espírito retrógrado de aspirações neo-aristocráticas, cuja mentira de luta pelo povo apenas visa a fazer deste escravos raivosos. Então com o perigo de uma Terra cada vez mais inabitável, estamos apenas a ver a transformação de um ambiente político propício a fascistas.
Poucas parecem ser as pessoas que denunciam e acham inaceitável esta situação, ao passo que o normal parece ser defender a extrema-direita por detrás de uma falsa pretensão de liberdade de expressão. Sempre a defender que um monstro pode dizer as piores barbaridade, mas nunca a fazer o mesmo pelas pessoas que exercem o mesmo direito para o criticar. Nosso é um tempo que caminha para a turbulência, se o precedente histórico for qualquer indicação. E, mesmo assim, estamos mais que dispostos a repetir os erros do passado, independentemente da catástrofe. Por sua vez, novos problemas estão ser resolvidos com atitudes retrógradas claramente insuficientes para um futuro saudável. Nosso é um tempo que requer mais de nós como cidadãos, do género que irá definir os séculos vindouros e, até mesmo, o futuro da nossa existência coletiva.
Eu iniciei esta análise com uma descrição seca e fria da morte numa das chacinas mais sanguinárias da história. O início de uma obra cujo impacto e objetivo artístico é claro e sem remorsos em criticar algo que parece ter cegado as pessoas hoje. Nessa medida, só acho adequada essa associação ao anime em questão. Uma obra que, na sua reinterpretação de uma história com cerca de 40 anos, a expande e enriquece ao mesmo tempo que é capaz de ser atual e fresca. Um berro de um passado que lutou, sangrou e morreu para que autocratas e fascistas não tenham poder. Que relembra o que é viver em fascismo e de ser cúmplice à sua marcha, para além do seu véu de mentiras e manipulação. São assuntos graves e sérios na sua imediatidade, assuntos esses que esta obra faz o seu devido serviço em retratar.
Nesta nossa sociedade que apenas vê o indivíduo como insaciável consumidor, a verdade inegável é que o ser humano, como criatura de paixão e emoção, anseia sempre por aquela peça de arte que lhe irá expandir e elevar a alma.
No meu caso, tenho me visto desmotivado com a franquia Gundam, dado que o seu comentário ocorre, sobretudo, em merchandise. Uma preocupação que partilho com o seu pai, Yoshiyuki Tomino. Foi necessário uma obra de tão elevado calibre como Gundam: The Origin para galvanizar o meu espírito, para relembrar porque procuramos arte, porque nos damos ao trabalho de acompanhar anime.
O discurso mais intelectual à volta desta franquia destaca a sua omnipresente mensagem anti-guerra e não irei contrariar isso. Procurei realçar outra caracterização nesta análise. Uma que é orgulhosamente anti-fascista e que a sua mais proeminente mensagem não é separada dessa conotação ideológica.
Análises
Mobile Suit Gundam: The Origin
Um exemplar celestial do melhor que anime tem para oferecer, além de que também uma notável obra de arte anti-fascista.
Os Pros
- Animação e produção exímia
- Escrita de personagens e cenário sem igual
- Um discurso político inteligente e relevante para a atualidade
- Uma mensagem anti-guerra sem compromissos que lida com crimes de guerra e contra a humanidade a civis
- Uma denúncia vibrante do fascismo e da extrema-direita
- Uma estética diferente que lhe confere um ar mais prestigioso e maduro
- Uma as melhores obras produzidas na história do meio
Os Contras
- Um momento de fan service gratuito
- Uma interpretação da Batalha de Loum no início do primeiro episódio que entra em conflito temático com a restante obra