Sion Sono, depois de ter viajado para os E.U.A. para estudar e visto uma média de cinco filmes, entre pornos e longas-metragens de série B por dia, decidiu que, quando regressasse ao Japão, faria apenas filmes que os japoneses odiassem. “Suicide Club” é um deles.
O filme abre com 54 raparigas estudantes que, numa espécie de pacto coletivo, saltam juntas para a morte e são colhidas pelo metro. A onda de suicídios parece não ter fim, à medida que se espalham pelo país, e um trio de detetives trabalha incessantemente 24 horas por dia para rastrear o misterioso clube que parece estar a controlar as vítimas.
A cronologia dos eventos decorre em seis dias, com uma narrativa algo obscura, um conjunto de personagens mal desenvolvidas e um sentimento de desolação crescente face a certos momentos narrativos menos bem-sucedidos.
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Mitsuko (Saya Hagiwara) é o mais próximo que o filme tem de uma protagonista, sendo arrastada para o que parece ser uma conspiração bizarra, quando o seu namorado salta de um prédio e cai acidentalmente em cima dela. É uma protagonista não muito confiável, mas parece ser a única que consegue chegar perto deste tão mistificado Suicide Club. Esta aproxima-se mais do que qualquer outra personagem e quando é sequestrada e nós temos a oportunidade de conhecer o líder do culto, o integrante da banda de glam rock “Genesis’ Gang”, o filme faz um desvio e traz uma sequência musical, com as outras vítimas que foram raptadas tentando libertar-se das amarras que as prendem, tudo isto num abandonado armazém de bowling. Apesar de ser impressionante visualmente e genuinamente desagradável (a nível narrativo), o filme tem sequências bem desenvolvidas, como por exemplo o começo do filme com o suicídio coletivo das jovens estudantes ou então a sequência do suicídio coletivo na escola.
No entanto, a sua maior força é a mensagem que o filme transmite e o que é que ele representa no cinema japonês.
‘Ero-guro-nansensu’ : A cultura cinematográfica do choque
Apesar de o fenómeno de ‘j-horror’ ter surgido há décadas, aproximadamente depois do bombardeamento de Hiroshima e Nagasaki, este subgénero da cultura popular japonesa ganhou grande influência em finais do século XX e meados do século XXI, com a recreação da novela “Ringu”, de Koji Suzuki, para cinema, tornando-se no feito que foi o filme homónimo. “Suicide Club”, como tantos outros, faz parte desta onda de filmes que apresentam um novo estilo de horror que pretende chocar a sua audiência com imagética sensacionalista e grotesca.
O ‘j-horror’ tem vindo a ser considerado por autores ocidentais como uma forma de lidar com o trauma causado pelos bombardeamentos atómicos de Hiroshima e Nagasaki, a ocupação do país pelas Forças Aliadas, logo depois da II Guerra Mundial, e conflitos relacionados com a identidade nacional e perda coletiva de várias tradições, experiências estas que são latentes nos filmes do género de terror feitos a partir dos anos 1950. Muitos destes filmes levam ao público uma narrativa de vitimização, personificada na forma de uma mulher marcada, ou de um fantasma feminino sedento de vingança. Se não é um fantasma ou uma mulher, é um monstro – Godzilla carrega marcas de radiação, tornando-o não num monstro, mas sim numa vítima.
Jay McRoy escreveu em 2007 um dos poucos livros que estuda a fundo o cinema japonês de terror contemporâneo, “Nightmare Japan: Contemporary Japanese Horror Cinema”, onde aborda este género como uma mecanismo de a população lidar com as incertezas ligadas com a globalização, a recessão económica e o pessimismo em relação ao futuro, bem como as atrocidades cometidas em tempo de guerra, não só de forças externas mas também das forças imperiais nipónicas durante a II Guerra Mundial, que apenas foram reveladas ao público muito depois.
No cinema de terror japonês existem arquétipos narrativos solidificados, como os kaidan, narrativas baseadas em histórias de fantasmas ligados ao folclore do período Edo (exemplos são “Ju-On” e “Ringu”); as narrativas kaiju, com monstros gigantes (o flagrante “Godzilla”); filmes de tortura e splatter, que se focam mais no gore e body horror (“Ichi the Killer”); e as histórias pós apocalípticas, onde “Suicide Club”’ se encaixa.
“Suicide Club” também pode encaixar-se no subgénero de ‘media horror films’, dos quais também poderão fazer parte “Ringu” e “Pulse”: em “Ringu” temos o fantasma de Sadako que assinala a sua presença através da cassete amaldiçoada, telefonemas distorcidos e fotografias manipuladas, antes de entrar na casa das suas vítimas; em “Pulse“, pessoas recebem transmissões estranhas nos seus computadores com a mensagem “Would you like to meet a ghost?”.
Em “Suicide Club”, a Internet e as tecnologias móveis provocam ansiedade social nos jovens, isolando-os e matando-os no fim. Daí McRoy abordar a ideia de que os filmes de terror japoneses expressam os conflitos que a sociedade sofre, e que os corpos representados nos filmes são corpos sociais, que passam por transformações monstruosas (como em “Tetsuo: O Homem de Ferro”) e/ou são destruídos (como nos filmes de tortura, splatter e body horror). Esses corpos podem representar temas como a desintegração de coletivos, como as famílias, perda de identidade e de tradições e os efeitos da industrialização e da vinda da era digital, cujas consequências passam pelo isolamento, deterioração da saúde mental e da destruição do ambiente, entre outras.
Este termo ‘ero-guro-nansensu’ combina as abreviações das palavras inglesas como “erotic”, “grotesque” e “nonsense”, um termo dito “wasei-ego” – um idioma japonês baseado em palavras inglesas, que fora usado frequentemente nos media e que julga a sociedade como decadente e prone ao sencionalismo.
É complicado traçar uma definição concreta ao cinema ‘ero-guro nansensu’, ao contrário de certos movimentos no cinema como o neorrealismo italiano ou o expressionismo alemão. Na verdade, muito do cinema guro nasceu sob um outro género dominante no cinema japonês – o ‘Pinku Cinema’; ou então, muito do cinema ‘guro’ criado fora apenas projeto-fetiche de realizadores que apreciavam a obra de Edogawa Ranpo e Suehiro Maruo, por exemplo. Claro que há temas correntes como fetiches, sexualidade perversa, obsessão (sexual ou criminosa), humor negro, crimes bizarros e ambientes psicadélicos. De facto, Sono disse numa entrevista em 2006 ao jornal Offscreen, que o seu autor preferido é Edogawa Ranpo e é notável a sua influência em grande parte dos seus filmes.
Desconstruindo a palavra e a sua etimologia, ‘ero’ vem de “erotismo” e nesta altura era bastante comum relacionar com a sexualidade perversa e a criminalidade: sexo era exposto algo grotesco em si mesmo e poderia ser um motivo para cometer crimes, aliás, havia um número de temas divulgados nos jornais generalistas e científicos da época, como o sadomasoquismo, a homossexualidade, o travestismo e o voyeurismo, que depois eram narrativizados nas histórias de detetives por exemplo.
‘Guro’, um termo “wasei eigo” da palavra inglesa “grotesque”’, significa “grotesco, cruel, bizarro”. É um termo relacionado com deformidade, dentro e fora. April Goehrke na sua dissertação “Ero ka? Guro nanoka? Erotic Grotesque Nonsense and Escalation in Mass Culture” apresenta várias definições para o movimento ‘ero-guro-nansensu’, mas explica que se entende
‘guro’ como “algo ou alguém que tenta ser o que não o é” e que relaciona o termo com a arte do mangá, na medida em que a deformidade é usada como parte da estrutura narrativa ou da comunicação visual.
‘Algo que não é’ é algo que foge à normatividade, uma violação às normas impostas, quer estas sejam sociais, narrativas ou visuais. ‘Guro’ é entretenimento para muitos, mas será sempre associado à violência e ao gore, coisas naturalmente desagradáveis e ligadas a ações condenáveis e grotescas. Para ‘nansensu’ (‘nonsense’) não há muita leitura acessível, tirando um capítulo de William J. Tyler “Introduction: making sense of nansensu”, que faz parte de uma edição de 2009 de um jornal científico europeu chamado “Japan Forum”, especializado em estudos japoneses em variadas áreas, e onde ele próprio aponta para esta lacuna devido ao facto de haver um estigma com este conceito e de este ser visto como algo banal. Nonsense é algo que pode ser usado para quebrar convenções no estilo de narrativa: houve sempre um propósito ao usar este estilo, e temos belos exemplos como os contos de Lewis Carrol; ou então simplesmente tolice sem sentido, como os filmes dos Irmãos Marx.
“Suicide Club” estreou em 2002, poucos anos depois de haver um pico nas taxas de suicídio após a crise financeira asiática de 1998. Obviamente que o filme apresenta um comentário social sobre os últimos acontecimentos, mas como? O filme fala sobre como os jovens se desassociam de si próprios e perdem os laços uns para com os outros. Um dedo também é apontado à influência dos mass media e ao poder “suicida” da Internet.
Vejamos: música pop, computadores, telemóveis, caras jovens e bonitas dançando e cantando sobre a forma correta de viver as nossas vidas. Entre a depressão da escola/emprego e os conflitos intra e interpessoais da adolescência e idade adulta, apercebemo-nos de que vivemos numa metrópole de plástico, manufaturada e que as tais meninas (do grupo ficcional ‘Dessert’) dançam e cantam sobre a falta de comunicação na era digital e são a prova do distanciamento das pessoas causado pelas linhas turvas daquilo que é real e daquilo que é plástico.
Aqui não só se perde a capacidade e o livre arbítrio de como viver, mas também o facto de que seremos esquecidos quando morrermos: quando nesta era da informação tudo perdura e tudo permanecerá até os servidores falharem. Até à última pessoa que pise os pés neste planeta com acesso à Internet, nós estaremos conectados, ligados e há a possibilidade de os resquícios da tua vida estarem a ser observados – daí nós termos este impulso de acabar com a nossa vida.
“Suicide Club” pode ser visto como uma caricatura mórbida que explora as taxas extremamente altas de suicídio no Japão, os efeitos do uso das tecnologias modernas (internet) e a superficialidade da cultura pop.
Sono preveu a cultura da internet e a morte partilhada da humanidade como antes existia. Nesta era digital, qualquer um pode tornar-se numa estrela pop, num ídolo, onde se pode controlar os outros como apetecer, tudo para transmitir uma mensagem falsa, superficial.
Em entrevista à 3am magazine, Sono disse o seguinte “I hope Japanese hate me. This is a hate movie. I hope almost all people hate this movie. This title is Suicide Club. So I made it. Yes, and truly every Japanese person hates it.” Sem dúvida que o filme, quando saiu, gerou controvérsia com a sua imagética surrealista e perturbante e os seus temas sensíveis, mas ganhou o estatuto de filme de culto, não só dentro do género de horror, mas também no cinema japonês e no cinema mundial do virar do século, devido ao retrato radical da forma como as tecnologias correntes foram veículo para a raíz desconhecida e imparável do mal e também da epidemia de suicídios que surgiram por todo o país. Uma proposta algo arrojada e algo contraditória num Japão que ainda procura viver com o pós- ‘Aum Shirinkyo’.
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