Há umas semanas atrás, tive a belíssima oportunidade de comprar o Uzumaki, do mangaka japonês Junji Ito. Tive o imenso prazer de reler a obra e de, realmente, ter pesadelos outra vez. Raramente tenho pesadelos, mas ao ler Uzumaki, encontrei-me com um certo tipo de sonho, impossível de explicar, e igualmente impossível de sacudi-lo, que se prolonga por dias, tal como as narrativas de Ito.
O que mais se ouve falar sobre Junji Ito é que este é um verdadeiro mestre do horror lovecraftiano. As suas histórias são conhecidas pelo seu terror lento, subtil, sobre assuntos como a descoberta gradual de verdades antigas tão grandes e terríveis para suportarmos, que sucumbimos à insanidade. Algumas das obras de Ito são consideradas como obras-primas da escola japonesa do horror. Tal como Uzumaki, a história de uma cidade japonesa, costeira e sedentária, que, lentamente, se consome pela grotesca loucura de uma antiga maldição que devora o mundo uma e outra vez.

Ou então Gyo, o seu épico sobre abominações das profundezas do oceano, vingando-se das contínuas transgressões da humanidade. Uma história que nos fará olhar, com olhos diferentes, para os nossos oceanos, que ainda permanecem menos explorados do que as profundezas do universo.
É aí que acontece a Hellstar Remina, em que o mundo fica preso no caos completo e na loucura face à obliteração cósmica literal por uma forma de vida antiga e devoradora de galáxias do espaço exterior. Estas narrativas de horror cósmico em grande escala são algumas das suas obras mais difundidas, conhecidas pelo público do Ocidente. No entanto, se lermos outras obras de Ito, apreciamos as suas histórias mais condensadas, íntimas e completamente kafkaescas. Ito é inigualável quando se trata de elaborar narrativas curtas e auto-contidas, que se concentram numa única emoção, simultaneamente trazendo detalhes e nuances para apoiar e cimentar a sua mensagem.
Ao longo de uma carreira que se estende por mais de 30 anos, Ito criou uma obra imensa de contos e graphic novels. Ito iniciou a sua vida profissional como técnico dentário no início da década de 1990 e é fácil ver como a sua formação médica alimentou o seu despudor hiper-realista e visceral da anatomia humana.
Ito só começou a desenhar e a escrever a partir dos seus 20 anos, o que talvez explique porque é que tanto do seu horror não está preocupado com memórias da infância – poucas bonecas ou fantasmas aparecem no seu trabalho – mas sim com os desafios da modernidade e da vida adulta: o medo de interações sociais, o medo da intimidade, o medo da perda de reputação e status. Nascido em 1963, teve uma infância relativamente calma (embora tenha vivido numa casa que exigia percorrer um túnel subterrâneo para chegar à casa de banho, o que definitivamente parece ser o tipo de eventos de infância que transformam alguém num escritor deste género). Tornou-se um grande fã do género “weird fiction”, bem como das histórias do escritor Edogawa Ranpo. Até adaptou algumas das histórias de Ranpo, como The Human Chair e An Unearthly Love – ambas aparecem na coleção Venus in the Blind Spot.
As suas tentativas de publicação foram inicialmente bem-sucedidas – a sua história de estreia em 1987, Tomie, sobre uma rapariga que regressa dos mortos, é ainda uma das suas mais conhecidas. Ganhou ainda maior fama com Uzumaki, de 1998, ou Spirals. Muitos fãs do horror consideram Uzumaki uma obra-prima moderna; no entanto, uma adaptação cinematográfica que foi lançada em 2000, que não foi muito brilhante.
Uma das qualidades que definem o trabalho de Ito é a sua imagética algo selvagem e tenebrosa. Mesmo sem termos o contexto da história, há um forte fascínio visual no seu traço.
Muitas vezes, Ito apresenta-nos objetos ou cenários tipicamente mundanos e insignificantes, em que geralmente não pomos muito pensamento, mas que existem comummente à nossa volta – espirais, ou poltronas – distorcendo elementos ou detalhes para criar uma fantasia perturbadora, mas que provoca a nossa mente. Estas ideias são ilustradas de uma forma muitas vezes imprevisível, parecendo mais como sequências de sonho do que propriamente narrativas lógicas.
Afinal, o que é que vai na mente de Junji Ito?
Sim, primeiramente, a obra de Ito é assustadora, devido ao quão afastado da realidade e dos limites humanos parece estar. No entanto, em análise, o traço de Junji Ito atrai-nos inerentemente por várias razões.
Em obras como Uzumaki e Dissolving Classroom, vemos alterações gráficas, quase oníricas, da forma humana – o body horror, ou horror visceral, é um tipo de ficção onde o medo origina-se a partir de uma transformação não natural do corpo físico, incluindo fenómenos como a mutilação e a decomposição. Embora estejamos enojados por estas coisas, parecemos estar igualmente fascinados.
Em obras como Gyo, vemos o antagonista tomar a forma de monstro – isto é o que é conhecido como creature horror, que, expresso de uma forma simples – o mau da fita é um monstro horrível. Estes temas são pontos de partida para as narrativas de Ito, e vão de mãos dadas com o seu uso de body horror para transmitir uma sensação de desconforto, quase maníaco. A criatura repulsiva em Gyo não mata apenas pessoas, elas tomam conta dos seus corpos para sobreviver – transformando-os em pesadelos com pernas de aranha de metal.
Ito usa uma série de elementos para criar um reflexo distorcido da sociedade japonesa moderna: gosta de expor conceitos ou alegorias, que normalmente têm uma conotação positiva na cultura japonesa e depois distorcê-los completamente para corromper o seu significado. Este uso de alegorias tem geralmente uma corrente subterrânea de castigo e humilhação, onde as personagens são condenadas a sofrer pelos seus pecados, sendo os seus castigos, em muitos casos, muito desproporcionados.
Um dos exemplos mais comuns na sua obra é a subversão dos ideais japoneses da beleza feminina. Como em Tomie, uma história de uma bela jovem, que possui a capacidade espantosa de fazer com que qualquer homem se apaixone por ela. O senão é que, cada homem que se apaixona por ela, nutre o estranho desejo de assassiná-la. Uma maldição verdadeiramente sádica, que faz da sua existência um ciclo interminável de tormento.
Para além destes, muito do trabalho do autor está saturado num tom específico: as suas histórias focam-se frequentemente em seres humanos totalmente lixados da cabeça – tanto assustadores como loucos.
Tudo isto são ideias já exploradas, mas como é que isto é diferente de outros escritores?
Em Ito, há a sensação subjacente de que nada do que as personagens fazem realmente importa. Muitas vezes, no final da história, não há uma lição a ser aprendida, nem uma resolução. Mesmo aquilo que tradicionalmente consideramos como sendo os protagonistas nas suas histórias, alternativamente, assumem apenas o papel de simples personagens que, por acaso, seguimos – onde não temos realmente uma ligação emocional ou não nutrimos empatia – pelo menos, uma ligação insuficientemente forte para ser alvo de preocupação, quando estas acabam por encontrar o seu destino nas mãos de qualquer coisa estranha que entretanto ocorre.
De facto, estamos mais interessados em ver o que acontece como resultado desse evento, uma vez que o mistério começa lentamente a ser revelado. E, no final, acabamos muitas vezes por ficar com mais perguntas do que respostas. Ninguém se preocupa em compreender. Temos o lembrete de que nós não estamos em controlo.
E, sim, temos personagens, ao longo das histórias de Junji Ito, que se assemelham à essência de um vilão – o que é interessante notar aqui é que qualquer perceção de pensamento malicioso por parte delas, provem apenas dos seus desejos puramente humanos.
Por exemplo, Uzumaki apresenta uma ameaça abstrata sob a forma de uma força invisível – enquanto que em Glyceride, a desgraça toma a forma da família perturbada da narradora. E ainda assim, de alguma forma, a obsessão do seu pai pela gordura não tem a ver com ele – mas sim como se a própria gordura o tivesse possuído – visto quando ele sangra gordura, em vez de sangue. A própria gordura torna-se uma presença ameaçadora que assola a casa. Mesmo com a loucura humana, não se deixa de notar a presença arbitrária e a influência de algo maior em jogo.
As coisas bizarras que acontecem fora das ações das suas personagens – não há grande explicação para o que está realmente a acontecer, nenhuma razão moral por trás. As personagens vêem-se muitas vezes inexplicavelmente impelidas para os seus destinos, compelidas contra o seu discernimento, a descobrir o horror que os espera.
E não há nenhuma compreensão clara de quem ou o que está a puxar os cordelinhos, se existe alguma consciência por detrás disso. O trabalho de Junji Ito é mais “cosmocêntrico” do que antropocêntrico. Não admira que seja um grande aficionado da obra de H.P Lovecraft.
É o desconhecido que nos mantém curiosos, fascinados – esta é a razão pela qual não conseguimos desviar o olhar das suas histórias, mesmo quando não há uma empatia clara com as personagens. Questiona-nos. E na procura de respostas, podemos encontrar a verdade mais assustadora de todas – a de que não existe uma.
O que torna o trabalho de Junji Ito tão horripilante é que, perante estes terrores, não há ninguém no controlo. Claro, podemos criar a ilusão de que estamos no controlo das coisas que nos rodeiam. Mas é apenas uma ilusão. A humanidade, na sua plena fragilidade, só pode enlouquecer face a estes horrores incompreensíveis.
Se pedirmos aos fãs e aos críticos que escolham a melhor obra de Ito, é sempre uma escolha relativa e delicada, no entanto ouviremos unanimemente apenas uma resposta – Uzumaki. Originalmente lançado entre 1998 e 1999, na revista japonesa Big Comic Spirits, ao longo de 19 capítulos, Uzumaki é um pesadelo na sua forma mais pura, que se desenrola em câmara lenta, enquanto o leitor descobre, passo a passo, como esta estranha maldição que gira em torno de um obscuro padrão em espiral, assombra a pacífica cidade marítima de Kurôzu-cho.
Capítulo a capítulo, estas formas cada vez mais ameaçadoras da maldição começam, gradualmente, a infetar a população e a arruinar a aldeia. A princípio, nada parece ligar estes horríveis incidentes à parte de um fator comum – a espiral.
Mas à medida que a história evolui, testemunhamos como cada capítulo faz parte de uma cadeia maior de acontecimentos, são apenas um filamento de algo antigo, enorme e sobrenatural, uma maldição que tem assombrado esta vila durante centenas de anos. A sua história desdobrou-se sempre no mesmo padrão: primeiro manifesta-se sob a forma de fenómenos extraterrestres, como pessoas que de repente perdem a cabeça e que sistematicamente enlouquecem. Seguem-se catástrofes naturais, como furacões violentos e vórtices misteriosos no mar. Posteriormente, os próprios habitantes da cidade transformam-se em perversas abominações sobre-humanas. Até chegarmos ao eventual colapso total da sua comunidade.
Eventualmente Kirie e Shuichi, os protagonistas da narrativa, acabam por conseguir compreender apenas fragmentos deste terrível flagelo.
A espiral condenou a vila, e todos os que nela vivem, a serem inevitavelmente consumidos por ela, por mais que a confrontem. Quanto mais a população de Kurôzu-Cho resiste, mais depressa esta se afunda, sendo arrastada cada vez mais para o fundo da espiral.
Porquê este fascínio pela espiral?
A espiral é um dos padrões mais fascinantes da natureza. A base do nosso sistema de compreensão moderna é expressa num famoso teorema matemático: a Sequência de Fibonacci, que, misteriosamente, aparece em muitos fenómenos da natureza, sendo encontrada em todo o lado. Por exemplo, constrói a base teórica da nossa compreensão subjetiva da estética.
A distribuição de linhas e formas estabelece a chamada “proporção áurea”, muito usada na arte, na arquitetura e no design, provado que é subconscientemente agradável ao olho humano. A Sequência de Fibonacci também pode ser observada em toda a natureza: nas ramificações das árvores, colmeias, búzios, na nossa Via Láctea.
Kurôzu-Cho, uma cidade isolada, cujos habitantes são infligidos com a maldição da loucura. Uma força divinal que invade através do que é subterrâneo, demasiado grande para que os seres humanos possam sondar. E aqueles que até têm o mais pequeno vislumbre da sua verdade, são todos irreversivelmente atingidos pela insanidade. Não soa familiar? Reflete perfeitamente o enredo de uma das histórias mais reconhecidas de H.P Lovecraft: The Shadow over Innsmouth.
Junji Ito compreende algo essencial sobre o horror: o que realmente nos assusta não são as coisas que vagueiam pela noite. É o que se esconde no quotidiano que nos rodeia – é o que é mundano. É o conhecimento de que, logo abaixo da superfície da vida quotidiana, escondidos atrás da fachada de uma sociedade que sorri educadamente, a loucura, o desespero e a morte estão sempre pacientes, à espera de nos puxar para uma espiral abismática.
E o verdadeiro génio de Ito reside no seu entendimento de que, embora devêssemos saber melhor, quando confrontados com situações deste género, sucumbiremos sempre à tentação inexorável de nos aproximarmos de qualquer forma. E isso dá pesadelos.
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