Há umas semanas iniciei uma pesquisa sobre o termo Karoshi no âmbito do Gacha Pop (uma rubrica audiovisual do Jornal de Notícias, da qual faço parte) e o que li não poderia ter-me revoltado mais. Não que tivesse lido muitas “novidades”, mas é sempre uma sensação estranha estarmos a confirmar através de estudos, entrevistas e artigos aquilo que vemos em anime retratado.
Este artigo trata-se de um artigo de opinião sobre o “karoshi” e a cultura de trabalho japonesa. As referências e artigos onde fui buscar as informações encontram-se no final do artigo mas, acima de tudo, lerão neste artigo a minha reflexão sobre um dos aspectos que menos gosto da cultura japonesa.
Karoshi e a cultura de trabalho japonesa – Opinião
Karoshi é um termo japonês que significa, literalmente, “morrer de tanto trabalhar“. Infelizmente, tal causa de morte não só não é invulgar no Japão como reconhecida pelo governo e entidades patronais.
Esse flagelo social foi inicialmente identificado em 1987 (mas já era conhecido desde a década de 70), quando o Ministério da Saúde japonês começou a registar casos de morte repentina de uma série de trabalhadores de altos cargos.
Este problema é reconhecido pelo governo e, caso uma morte seja considerada por Karoshi, a família da vítima recebe uma compensação do governo, além de uma indenização da empresa.
Quando a lei foi implementada, as autoridades registaram cerca de 200 casos por ano. Mas, em 2015, os pedidos de indenização chegaram ao número recorde de 2.310, segundo relatório do Ministério do Trabalho do Japão.
Escusado será dizer que os números reais (e atuais) deverão ser muitos mais e, de acordo com o Conselho Nacional de Defesa para Vítimas de Karoshi, os números reais, em 2015, podiam chegar aos 10 mil por ano.
Claro qua a cultura workholic japonesa tem raízes culturais e históricas que me ultrapassam e sobre as quais pouco ou nada sei.
“Depois da derrota na Segunda Guerra Mundial, os japoneses passaram a ser os profissionais com o mais longo horário de trabalho do mundo“
explica Cary Cooper, especialista em stress da Universidade de Lancaster, na Grã-Bretanha.
No Japão pós-guerra, o trabalho devolveu aos homens um propósito. Havia estímulos financeiros e motivação psicológica, a vida passou a girar em torno do emprego.
Contudo, se tal fazia sentido em 1945, não se pode esperar que o faça em pleno século 21. Infelizmente, o Japão é conhecido por ser resistente à mudança, à diferença e ao confronto geracional.
Não quero de todo ser injusta para com a cultura japonesa, mas tal como li num recente artigo da BBC as mudanças sociais no que diz respeito à cultura de trabalho são lentas, demasiado lentas.
O coletivismo japonês pressupõe que o bem geral é sempre mais importante que o bem estar individual. Uma ideologia interessante, e com vantagens em muitos ramos do dia a dia japonês, todavia, perigoso quando se trata de leis do trabalho.
Nesse mesmo artigo encontram-se duas entrevistas muito interessantes a japoneses assalariados. Estes partilham que, no máximo, tiraram 2 dos 22 dias de férias a que têm direito, por ano. Isto porque “parece mal” tirar dias de férias no Japão. Há censura entre os colegas de trabalho, superiores hierárquicos e patrões. Não é bem visto ao ponto das pessoas se sentirem culpadas por tirarem alguns dias de férias!
Mais! Em caso de doença, poucos são os que faltam; e sair mais cedo do que os restantes colegas é mal visto e “cria mau ambiente de trabalho”.
Esta ideologia de que o bem estar geral (e da empresa) deverá sobrepor-se sempre ao bem estar pessoal tornam muito difícil a execução das medidas e recomendações governamentais que começam a existir. No fundo, estão a lutar contra uma mentalidade ancestral e que é perpetuada por superiores hierárquicos – o que leva a uma outra barreira: o respeito absoluto pela hierarquia.
O não poder dizer que não a um superior hierárquico, a censura social por ser alguém que reivindica os seus direitos, a normalização de condutas passivas e submissas como algo positivo, tudo dogmas sociais perpetuados ao longo de gerações.
Um cenário muito comum – e retratado múltiplas vezes em anime:
Imaginem trabalhar 12 horas por dia, mesmo que o estado preconize as 8 horas por dia, e ainda ter que servir bebidas aos superiores hierárquicos (alguns apenas “senpais”, ou seja alguém que apenas está na empresa há mais tempo) porque estes decidiram que iam jantar fora contigo. E não, não podes dizer que não.
Mais, só sais da empresa quando o trabalho termina, idealmente depois do patrão ir embora. Ah!… e se for para fazer direta ou ficar a trabalhar no local de trabalho, não se pode estranhar. Ainda recebes uma palmadinha nas costas a reforçar o quão bom trabalhador és! Se tinhas opção? Não. Tinhas que ficar na mesma. Com sorte, apanhas o último comboio do dia.
Todas estas situações criam em mim uma repulsa difícil de conter. Como é possível manter-se a sanidade mental nestas condições? Claramente que a saúde física já lá foi ou não será tão comum morrer de Karoshi.
O que mais me chateia é que, apesar do governo ter consciência do problema, a lei do trabalho é ineficiente. Peguemos nos exemplo do tempo de “recuperação de turno” exigido por lei.
Em países europeus, no contrato, está contemplado no mínimo 11h de intervalo entre turnos para permitir o trabalhador descansar. No Japão, existe a lei… mas não contempla o “número mínimo de horas entre cada turno”, o que leva inevitavelmente a abusos por parte das empresas cooperativas já tão “habituadas” a um sistema de abuso de horário.
Mais, num artigo que li, segundo um questionário feito a empresas, 17,1% desconhecia que existia uma regra sobre os intervalos entre turnos…
Como assim?!
Uma lei instalada em 2014 e em 2022 (o artigo referia-se ao estudo realizado no ano de 2022) um número substancial de empresas nem sequer sabia que existia uma lei do trabalho?
Karoshi e a cultura de trabalho japonesa – O retrato em anime
A cultura opressiva e abusiva do Japão é muito bem retratada em anime. Por vezes de forma mais direta, como o maravilhoso primeiro episódio de Zom 100 onde vemos o dia a dia de Akira; e na série Net-juu no Susume onde acompanhamos uma jovem adulta completamente desfeita psicologicamente devido à cultura de trabalho japonesa.
No fundo, tudo o que seja obras sobre o dia a dia de profissões citadinas descreve um pouco do que é trabalhar no Japão e, até morrer de karoshi, como é o caso de Bakuman, onde dão a entender que o tio do protagonista tinha falecido por “trabalhar de mais”.
Se pensarmos, faz muito sentido o boom atual de isekais onde o protagonista adulto (30+) morre e reencarna num mundo pacífico ou onde ele é um badass. No fundo, é o desejo de viver uma vida pacífica, e sem abusos, retratado na arte. Claramente, um reflexo dos desejos do público-alvo dessas obras.
Existe alguns títulos de anime onde o protagonista morre especificamente de karoshi e reencarna num mundo de fantasia, como é o caso de By the Grace of the Gods e Slime 300. Ambos títulos super relaxantes, onde o ex-trabalhador é recompensado com uma vida plena e sem qualquer stress.
Como pessoa totalmente externa e com uma vida, cultura e educação diferentes do ambiente japonês é muito fácil opinar sobre Karoshi e a cultura de trabalho japonesa. Sei que acaba quase por ser injusto. Todavia, defender os direito humanos é positivo e cabe a cada um de nós pesquisar e, com respeito face às outras culturas, opinar (que é uma liberdade nossa, felizmente).
Espero que tenham gostado deste artigo, deixem nos comentários a vossa opinião!
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Fontes: BBC | Japan Times | BBC