A primeira série anime de Gin no Saji (Silver Spoon), despertou a minha atenção pela sua premissa e tema central: o mundo rural, que, de alguma forma, conseguiu apresentar vários dos assuntos que tem sob a sua alçada. No entanto, para além disto, não fiquei muito entusiasmado com a produção, como o demonstra a minha análise à dita-cuja, em 2014.
Acontece que, pela simples teimosia de, no final desse artigo de opinião, ter prometido uma análise à sequela – só não esclareci se seria objectiva ou subjectiva – decidi vê-la até ao fim, para agora escrever este texto. Mas este regresso, dominado por um espírito de contrariedade da minha parte, tinha tudo para não ser promissor. E se os primeiros minutos também não ajudaram a inverter esta situação, a verdade é que, com o passar do tempo, a minha atenção no ecrã redobrou e a minha teimosia em ver Gin no Saji 2 começou a ser justificada.
Ora, se esta mudança de espírito teve mérito próprio da trama, de realçar que isso não aconteceu por um momento de grande hype – daqueles que duram uns segundos e reconfiguram as expectativas do espectador – mas por um sorrateiro prolongamento de momentos dotados de profundidade. Diálogos interessantes e propícios a reflexões sobre as vicissitudes da vida, comuns ou susceptíveis de nos tocarem a todos.
Das tarefas no campo para os problemas diários
A meu ver, esta mudança de foco marca a grande diferença entre as duas séries transmitidas. Ao mesmo tempo, é a grande responsável pela reconquista da minha atenção. Enquanto a produção de estreia se remeteu mais às tarefas da vida no campo e na escola de agricultura, – fruto do acompanhamento necessário à adaptação do protagonista, Yuugo Hachiken, à sua nova vida – esta continuação incide, a meu ver, de uma forma mais expressiva nos problemas das personagens principais (Hachiken, Mikage e Komaba). Adversidades que se estendem desde a escola à sua vida familiar, naquele que é um ambiente rural quase em vias de extinção na nossa sociedade tecnológica.
Porém, não menosprezar este ponto, pois é sempre com esta tela verde e respirável – no qual as peripécias rurais também mudam – que o elenco ganha complexidade. No meio de tudo isto, e de forma a conferir algum equilíbrio entre o drama e as pequenas alegrias diárias, existem, pelo meio, vários momentos cómicos que, na maioria das vezes, são bem sucedidos.
Ainda sobre os dilemas do elenco, de salientar que são estes quem, indirectamente, passam para fora do ecrã a ideia de um maior espírito de comunidade, seja na escola de agricultura de Ooezo, seja fora dela. Assim, e sem delongas, apraz-me dizer que as aventuras no campo são um dos alicerces desta sequela, mas é no enredo, com o qual o espectador se pode identificar, que a obra mais valoriza e se torna recomendável.
Uma série longe do presente, mas essencial para ele
Como consequência desta reunião de acontecimentos, sou forçado a dizer que a visualização de Gin no Saji 2 requer alguma preparação para que lhe seja feita justiça. Esquecendo questões pandémicas, a série encontra-se fora do presente, mas é fundamental para o mesmo. É claramente suspeito dizer o seguinte, mas eu gostaria de ter visto Gin no Saji – mesmo a prequela – após a leitura deste texto. Porque acho que o espectador deve ver esta adaptação do manga de Hiromu Arakawa (criadora de Fullmetal Alchemist), com conhecimento de alguns destes apontamentos.
Nos dias que correm, ver Gin no Saji é como sair do mundo citadino, do stress, e do universo tecnológico, para passar um dia no parque ou em contacto com a natureza. E o problema, parece-me, é que nós não estamos preparados para isso. Nós já não sabemos desligar, abrandar, ou pôr em práctica o verdadeiro significado de “não fazer nada”. Actualmente, até mesmo a palavra “procrastinar” parece traduzir-se mais um consumo oco e obsessivo de televisão, videojogos, etc, do que adiar tarefas para, precisamente, “não se fazer nada”.
Por outras palavras, parece difícil aderir ao simples passatempo de “reflectir sobre a vida”, que é precisamente um dos temas que Gin no Saji nos propõe, com as dúvidas e as questões das suas personagens. Se este é o primeiro ponto que complica a relação entre o espectador de hoje e a série, existe um segundo que também me parece pertinente, e sobre o qual falo já de seguida.
As tarefas da vida no campo e de uma escola de agricultura (do pouco que eu entendo) são repetitivas e sazonais. De igual modo, num passado bem recente, uma boa parte da classe trabalhadora executava o mesmo serviço profissional durante toda uma vida, sem se queixar dessa rotina. Tudo ao contrário de hoje, altura em que passamos a vida a saltar de emprego ou a fazer coisas diferentes de tempos a tempos. Desta forma, este grupo de “agricultores” que compõe o elenco demonstra que a simplicidade e as rotinas sazonais da vida do campo podem também corresponder a uma vida com significado. Em suma, que o trabalho no campo não é melhor nem pior que o existente na cidade. Apenas diferente, como são todas as nossas cabeças. Desta perspectiva, também se abrem alguns horizontes.
Um elenco sem vilões e com base no estereótipo da criadora
De facto, absorvido pelo mundo tecnológico e por este texto, tenho a desconfortável sensação que estou aqui a escrever a mais pura das ficções. Que toda esta ideia da agricultura e da vida no campo nunca existiu na realidade, apenas na minha cabeça. E digo isto porque existem outras duas características que diferenciam esta história.
A primeira é a ausência de vilões no lote de personagens. Não quer isto dizer que não hajam pessoas que não se entendam ou que se detestem no universo do campo. O escárnio, o maldizer e os conflitos estão por todo o lado. Contudo, aqui torna-se mais complicado ganhar uma forma verdadeiramente arrogante, tendo em conta a partilha de actividades semelhantes entre os estudantes e professores.
Ora, este ambiente, que a autora transporta para a escola de Ooezo e para as famílias de agricultores, contrasta com o ambiente selvagem que o mundo do trabalho citadino tantas vezes transparece, seja por via da exploração do empregador-empregado, ou pela concorrência desleal e de baixo-nível que tantas vezes se verifica entre funcionários.
De volta à obra e ao campo, parece que todos trabalham para o mesmo (o tal espírito comunitário supra referido), o que é um factor chave para este ambiente completamente diferente. Embora consciente que poderei estar a descorar possíveis rivalidades entre quintas (que se podem tornar muito sérias), abrigo esta minha ideia no facto da obra ser uma inspiração da própria vida da autora. Hiromu Arakawa cresceu numa quinta, em Hokkaido, juntamente com 4 irmãos. Como tal, acaba por ser minimamente coerente generalizar este espírito que a mangaka transmite sobre a vida no campo que ainda existe por aí em pequenos fragmentos.
Arte, Animação, Banda Sonora
Posto isto, resta-me abordar os aspectos mais técnicos da trama, onde não notei grandes diferenças em relação à prequela. A arte continua extremamente agradável, com as cores do campo e diversidade de tons claros a embelezarem a tela de uma maneira especial, ao passo que a animação se mantêm satisfatória.
Por outro lado, a banda sonora continua ajustada ao ambiente (por vezes) sossegado do campo, mas creio que lhe falta ser um pouco mais alegre e extrovertida nos momentos (raros) que convidam a isso, o que faz alguma diferença. Por outras palavras, parece-me normal a música passar despercebida durante grande parte das cenas, mas, nos momentos em que é “chamada ao palco” não acede a esse pedido.
Na realidade, o que parece acontecer é capitalizar toda essa energia para o opening e ending. Embora os dois sejam dotados de uma qualidade visual soberba, as músicas não se ficam atrás. Ou melhor: a do opening (“LIFE” dos Fujifabric) mantém a balança equilibrada; ao passo que, no ending, a “Oto no Naru Hou e” dos Goose House torna esse momento ainda mais valioso. É uma pena que esta última banda se tenha “desmembrado”. Afinal, convém não esquecer que, meses depois de Gin no Saji 2, o grupo sobressaía no opening de Shigatsu wa Kimi no Uso. Uma parte dos seus elementos dá agora forma aos Play.Goose.
Juízo Final
Depois de tudo isto, chego à conclusão que Gin no Saji está para o manga e anime como a cultura está para o Ser Humano, em termos de importância. Esta história parece-me difícil de cativar à primeira, fácil de cair no final da lista de prioridades em relação a outros conteúdos, mas é fundamental para a nossa consciência. Lembro ainda a questão da comida, essencial para a nossa sobrevivência, que tem as suas origens no campo e que diariamente damos como garantida no nosso prato (um assunto mais vincado na prequela).
Gin no Saji 2 evidencia a importância deste universo natural e animal, e a necessidade de comunicar-mos com ele com mais frequência – em último recurso, por esta via virtual que é a série – para abrandarmos o ritmo das nossas vidas e reflectirmos sobre a nossa existência. Tudo isto acontece por via do seu restrito grupo de personagens e das peripécias que as ocupam durante o dia e lhes tiram o sono à noite.
Infelizmente, parece que somos cada vez mais impotentes em fazer com que a natureza seja parte da nossa realidade. Da mesma maneira que tantos animais jovens são condenados à morte, para nos chegarem ao prato, sem puderem fazer nada contra isso, também o progresso parece, cada vez mais, ser uma onda que nos arrasta para o futuro tecnológico sem nos permitir olhar para trás e mantermo-nos saudáveis, seja ao nível físico e/ou intelectual.
Trailer Gin no Saji 2
Análises
Gin No Saji 2
Uma sequela que continua a apresentar peripécias do mundo rural, mas que, sobretudo, se destaca pela maneira soberba como explora o seu elenco. Um grupo de personagens com o qual o espectador se consegue identificar e, a partir desse ponto em comum, reflectir sobre as alegrias e dificuldades que surgem nos dois lados do ecrã televisivo.
Os Pros
- A evolução e complexidade de um enredo que, ironicamente, é curto e simples
- A arte
- O opening e o ending
Os Contras
- Nada de relevante a apontar